Fazendeiro com espingarda em Mato Grosso do Sul. Foto Antonio Milena/Revista Veja
Grupo armamentista agora ambiciona o campo. Apoiado por entidades ruralistas como a Aprosoja, ele propõe a criação de vários clubes de tiro e caça, os CACs, em propriedade rurais. Movimentos sociais temem aumento de violência armada
Por Yolanda Pires, na Agência Pública
“Sou eu e não o Estado quem tem que defender a minha propriedade”, declarou o presidente do movimento Proarmas, Marcos Sborowski Pollon, em uma palestra dada a produtores rurais em Unaí (MG), em novembro de 2021. No evento, o atirador, advogado e pré-candidato a deputado federal (PL-MS) ensinou aos fazendeiros uma tática para ter mais armas e poder transitar com elas: abrir um clube de tiro dentro da fazenda.
“Ah, mas o que que isso tem a ver com a propriedade rural? Uai, eu subo um barranco, 5 horas de máquina no relógio, e monto um clube de tiro na minha propriedade. Aí eu posso ter um acervo muito mais extenso que todo mundo ali pode usar”, explicou Pollon. “A legislação diz que na legítima defesa e no desforço [defesa da propriedade] imediato da propriedade eu posso usar todos os meios disponíveis para conter a ameaça […] Então você fala: ‘eu tô indo treinar, o meu stand fica na fazenda’”, aconselhou.
A palestra em que Pollon recomendou o uso de armas para a defesa de propriedades do campo aconteceu no 1º Fórum de Segurança Alimentar e Proteção Rural de Unaí, evento promovido pelo Proarmas em parceria com a empresa goiana Terraras Imóveis Rurais e com o Movimento 7 de Setembro, que dois meses antes, no feriado de Independência, havia organizado manifestações em diversas cidades do país a favor do governo. Além de Pollon, também participou do evento o presidente da Associação de Produtores de Soja e Milho (Aprosoja) em Minas Gerais, Fábio Meirelles.
Mas essa não foi a única ocasião na qual o líder do Proarmas discursou para produtores rurais.
A Agência Pública apurou que, entre setembro de 2021 e julho deste ano, pelo menos sete eventos tiveram formato semelhante: foram palestras sobre segurança e proteção no campo promovidas por sindicatos rurais com a participação do Proarmas. Uma delas aconteceu em evento apoiado pelo Governo Federal e duas foram financiadas pela Aprosoja.
A Pública tentou contato com Pollon durante duas semanas por email e telefone, mas não obteve resposta. A reportagem chegou a falar com responsáveis pela agenda do pré-candidato, que também não responderam ao pedido de entrevista.
Perguntado se as armas de uso restrito podem ser usadas pelos CACs em caso de suposta legítima defesa, o Exército Brasileiro respondeu à reportagem que não tem competência para esclarecer tal assunto. Mas completou que “A concessão do CR [certificado de registro de armas de fogo para CACs] pela Força Terrestre permite ao interessado empregá-la nas atividades de caça, tiro esportivo e para compor uma coleção.”
Porém, o artigo 5º do decreto presidencial 9846/2019 prevê, em seu parágrafo 3º, que os CACs “poderão portar uma arma de fogo de porte municiada, alimentada e carregada”, ou seja, pronta para o uso, no trajeto entre a residência ou local de guarda autorizado e o clube de caça ou tiro, por meio da apresentação do CR e da Guia de Tráfego, expedidos pelo Comando do Exército. Por outro lado, o artigo 111 do decreto 10.030, de 30 de setembro de 2019, estabelece como infração administrativa “portar ou ceder arma de fogo constante de acervo de colecionador, atirador desportivo ou caçador para segurança pessoal, em desacordo com a legislação”. O Exército afirma que fiscaliza possíveis usos indevidos de clubes de tiro e caça e que executa ações a fim de “evitar o cometimento de irregularidades com Produto Controlado pelo Exército (PCE)”.
Quem tiver interesse em construir um clube ou até se registrar como atirador esportivo, ou qualquer coisa, é muito fácil”, afirmou o líder do Proarmas em evento em Unaí (MG)
Presidente do Proarmas pediu votos para Bolsonaro em palestra para armar fazendeiros
“Não é sobre armas é sobre liberdade” — o slogan do Proarmas estampou uma das palestras de Pollon durante a Expoagro de Dourados. Antes de iniciar sua apresentação de quase uma hora de duração, o armamentista foi cortejado pelo pecuarista e produtor rural Rodolfo Nogueira, primeiro suplente da senadora Soraya (União Brasil-MS) e presidente do Partido Liberal (PL) no Mato Grosso do Sul (MS). “Você é orgulho para o sul-mato-grossense, pro douradense, um cara que realmente tem feito a diferença dentro do Congresso e fora, porque dentro você tá lá, articulando, lutando por nós”, disse Rodolfo para Pollon.
Ao subir no palco na exposição agropecuária, o líder do movimento armamentista novamente propôs a criação de clubes de tiro em propriedades rurais, que seria justificada por uma sucessão de supostas invasões violentas por movimentos camponeses. “Quem tiver interesse em construir um clube ou até se registrar como atirador esportivo, ou qualquer coisa, é muito fácil, é só ir em qualquer clube de tiro aqui da cidade e perguntar como é que faz, o pessoal vai ajudar vocês”, aconselhou.
Nas duas palestras sobre proteção rural, o advogado armamentista deu ainda declarações pela reeleição de Jair Bolsonaro. No fórum em Unaí, ele afirmou que qualquer um que vencer o atual presidente nas eleições de outubro irá desarmar totalmente a população. “Então não tem segunda via, terceira via, ou a gente trabalha para reeleger o Bolsonaro ou nós estamos no sal”, disse na ocasião.
Já em Dourados, Pollon finalizou o discurso com um apelo mais enérgico: “Esse ano nós vamos trabalhar juntos e reeleger o presidente para acabar de uma vez por todas com essa cambada de comunista vagabundo”, incitou a plateia. A exposição agropecuária foi realizada pelo Sindicato Rural da cidade e teve apoio e patrocínio do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal.
Em setembro do ano anterior, segundo matéria do jornal A Tribuna do Mato Grosso e imagens divulgadas em redes sociais, Marcos Pollon e André Pirajá — vice-presidente do Proarmas — falaram sobre a defesa da propriedade rural para associados da Aprosoja em Rondonópolis (MT). Além das palestras, a programação incluiu para os inscritos aula de “noções de práticas de tiro” no Clube Atiro, localizado na zona rural da cidade, também de acordo com A Tribuna. Não há registros das falas dos líderes do movimento nesse primeiro encontro.
Com o anúncio, no final de maio deste ano, da pré-candidatura de Pollon a deputado federal pelo Mato Grosso do Sul, o presidente do Proarmas intensificou a agenda no estado. Somente no mês de julho, ele falou sobre segurança no campo e sobre legislação e controle de armas nos sindicatos rurais de Campo Grande, Sidrolândia, Maracaju, Ponta Porã e Chapadão do Sul. Esta última teve como tema a “Legítima Defesa Armada” e foi realizada no sindicato rural da cidade no último dia 26. O tema foi o mesmo de uma palestra dada por Pollon no dia anterior (25), porém em um clube de tiro e caça localizado na zona rural de Costa Rica (MS), a 60 km de Chapadão do Sul. As agendas foram divulgadas nas redes sociais do pré-candidato.
Movimento Proarmas é liderado por herdeiros de produtores rurais
O decreto nº 9.846, assinado em junho de 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro, alterou as regras de compra e venda de armas e munições para CACs. Eles passaram a ter acesso a armamentos que antes eram de uso restrito das forças policiais e militares, como rifles de precisão, fuzis e pistolas semi automáticas. O decreto também permitiu que atiradores tenham até 60 armas, sendo 30 de uso permitido, com menor potencial ofensivo, e 30 de uso restrito, que estão entre os chamados Produtos Controlados pelo Exército. Um pacote de ações enviadas ao STF por partidos da oposição questionam a constitucionalidade desse e de outros decretos que flexibilizaram o acesso a armas. O julgamento, porém, está suspenso desde setembro de 2021, após pedido de vista do ministro Kassio Nunes Marques, indicado à suprema corte por Bolsonaro.
Segundo dados da Receita Federal, Pollon fundou o Proarmas um ano após a assinatura do decreto, em junho de 2020, enquanto também presidia uma comissão Ordem dos Advogados do Brasil no Mato Grosso do Sul (OAB/MS). Através dela, Pollon defendia o porte de armas para advogados e frequentava gabinetes do Congresso Nacional, como mostra o primeiro vídeo publicado em seu canal no YouTube.
Passados dois anos de sua criação, o líder armamentista afirma que o Proarmas é hoje o maior movimento de direita do Brasil, declaração que foi dada por ele em entrevista recente ao deputado federal Eduardo Bolsonaro. A organização conta, segundo ele, com cerca de 1,5 mil colaboradores em todos os estados e uma equipe jurídica de mais de 120 advogados. Em Dourados, Pollon teceu elogios ao filho 03 do presidente. “O Eduardo Bolsonaro é um monstro tocando essa pauta [do armamento], se não fosse ele eu não conseguia 10% do que eu faço hoje”, afirmou.
Em Dourados, embalado pelas lembranças da cidade natal, Pollon contou que seu bisavô era tropeiro de gado e levava bois e cavalos do pantanal de Mato Grosso do Sul até São Paulo. “E foi trabalhando como tropeiro que ele construiu suas propriedades lá no estado de São Paulo, […] ali no entroncamento, ali em Amambai [MS] também. E o tempo vai passando, e o banco vai tomando, e quando chega na nossa vez já não sobrou muita tralha”, disse Marcos Pollon, em tom de brincadeira. De acordo com o advogado, a família mantém hoje apenas uma fazenda em Sidrolândia (MS), a 182 km de Dourados, na qual cultivam soja e milho.
Como advogado, antes de fundar o Proarmas, ele afirma em suas falas que sempre atuou exclusivamente na defesa de produtores rurais e do agronegócio. Além disso, foi presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS, na gestão de 2016 a 2018. “Então sempre era comum a gente ter que lidar com reintegração de posse, ocupação de movimentos indígenas, ocupação de sem-terra, aquela coisa toda”, detalhou, durante o fórum de Unaí.
Assim como Pollon, André Bedin Pirajá, o vice-presidente do Proarmas, também vem de uma família dona de terras. Liamara Inês Bedin, mãe de André, é sócia-administradora da Bedin Agropecuária, que, segundo a Receita Federal, tem R$ 8,6 milhões de capital e é voltada para a criação de gado para corte. Outra empresa da família, a Bedin Colonizadora e Construtora, é focada em empreendimentos imobiliários e tem patrimônio avaliado em R$ 5,3 milhões, também de acordo com a Receita Federal.
As duas empresas, que juntas integram o Grupo Bedin, têm sede em Itaúba (MT) e foram abertas no início dos anos 1980. O município foi fundado apenas em 1986, e de acordo com documento da Prefeitura, os irmãos Bedin foram os primeiros colonizadores, que lá adquiriram terras em 1973. Com o surgimento de Itaúba, os indígenas do povo Kawaiwete, que habitavam a região, foram “confinados em reservas especialmente destinadas à seu povo”, segundo informa o site oficial da prefeitura municipal.
O vice-líder da associação armamentista fundou, em janeiro deste ano, o grupo Produtores Rurais pela Liberdade. Em uma entrevista ao programa Boi em Pauta no último mês de abril, ele disse que o movimento é um “braço” do Proarmas. “Eu gosto de dizer que o Proarmas inclui o produtor rural, mas o Produtores Rurais pela Liberdade tem temas caros”, declarou.
A reportagem também procurou Pirajá através do grupo Proarmas para esclarecimentos, que não respondeu.
A nova organização oferece cursos sobre manuseio de armas de fogo, em parceria com a empresa Jhony Tactical. O “braço” ruralista do Proarmas também elaborou uma cartilha sobre segurança no campo que é divulgada nas redes sociais de Pirajá. O material é um resumo dos conselhos que são dados aos produtores rurais pelos líderes do movimento.
Em uma feira agropecuária em Sinop (MT), cidade vizinha à que foi colonizada pelos antecedentes do vice-líder do Proarmas, foi ele quem representou o movimento e falou sobre “Liberdade e Segurança no Campo”. O evento foi promovido em abril pelo Sindicato Rural com patrocínio da Aprosoja. A Agência Pública, no entanto, não teve acesso ao conteúdo da palestra.
Pollon comemorou presença de Eduardo Bolsonaro no Sindicato Rural de Dourado. Eduardo foi a principal liderança política na passeata Proarmas realizado em 9 de julho
Representantes de movimentos sociais do campo temem aumento de violência armada
Para Antônio Eduardo Serqueira de Oliveira, Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o aumento das armas nas mãos de fazendeiros está associado ao entendimento de que as retomadas de terras indígenas e ocupações de movimentos sociais rurais seriam invasões a serem combatidas. “E aí dava essa autonomia para que os fazendeiros, como eles falam, se defendessem dessas invasões, e isso colocava as comunidades indígenas e a população do campo sob um risco maior, e isso de fato ocorreu”, reforça Serqueira.
A situação hoje, segundo ele, é de insegurança e de constantes ameaças contra defensores de direitos humanos e populações tradicionais, principalmente no meio rural. “Hoje existe esse medo, existem as precauções e existe uma política de impunidade […] com relação a esse tipo de violência cometida contra defensores de direitos humanos”. Ele menciona também que o Cimi, em casos de conflitos com fazendeiros, sempre orienta aos indígenas que não reajam a provocações. “Se tiver que recuar, recue, mas não coloque sua vida em risco”, orienta.
Paulo* é educador e ativista em defesa de trabalhadores rurais e comunidades tradicionais no oeste da Bahia. Ele relata que houve aumento significativo de clubes de tiro na região onde mora, que faz parte da fronteira agrícola conhecida como Matopiba. Nas cidades que integram o extremo oeste da Bahia, de acordo com dados do Exército, há atualmente 14 clubes de tiro registrados e autorizados pela caserna, além de 12 estabelecimentos credenciados para venda de armas e 2 autorizados para importação de armamentos e munições.
A facilitação de acesso à armas para CACs tem gerado, segundo ele, um “clima estranho” e de tensão na cidade e nas comunidades tradicionais. “A quantidade de clubes de tiro é um reflexo disso […] a gente tem [se] deparado com isso de forma muito assustadora”, afirma. Por medo de possíveis represálias e a pedido do entrevistado, a reportagem alterou o seu nome e decidiu não divulgar a identidade da organização em que Paulo atua hoje.
O temor do ativista tem motivações recentes. Em meados do mês passado, famílias camponesas que moram em uma comunidade de Fecho de Pasto, no oeste baiano, tiveram as casas delas invadidas por homens encapuzados que portavam armas pesadas. Mais de 50 entidades e movimentos sociais do campo e da cidade enviaram um ofício, no último dia 19, denunciando a violência. O grupo de invasores, de acordo com Paulo*, era comandado por uma família que reivindica a propriedade do território.
Vice-presidente da Associação Brasileira dos Advogados do Povo (Abrapo), Marino D’Icahary, receia que a violência armada no campo se intensifique nos próximos meses, independente de quem for eleito a presidente nas eleições de outubro. “E é por isso que eu tô te falando que eu estou com medo, que eu tenho quase certeza de que a coisa vai piorar, e esse enfrentamento vai ficar mais aberto e generalizado e escancarado com esse povo super treinado, milícias, entendeu?”, indaga. D’Icahary representa dez dos 23 integrantes da Liga dos Camponeses Pobres (LCP) que respondem a processo judicial após a ocupação de uma fazenda em Seringueira (RO). Ele defende que as propriedades ocupadas pelo movimento sejam destinadas à criação de assentamentos para as famílias camponesas.
Nas duas palestras sobre segurança no campo mencionadas na reportagem, em Unaí e Dourados, Pollon atribui à LCP casos que envolvem assassinatos, torturas, morte de animais e estupro. A Pública optou por não reproduzir as falas, que descrevem cenas fortes.
Apenas em 2021 houve 38 conflitos na zona rural de Rondônia, que envolveram mais de 4.500 famílias, de acordo com os dados mais recentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT). No mesmo ano, onze pessoas foram assassinadas e dessas, sete eram sem-terras e uma era apoiadora do movimento. Em números absolutos, de todos os estados da federação, Rondônia foi o que houve mais mortes no campo em 2021, conforme apontam os dados.
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