segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Quando os chefes tudo veem, leem e escutam

Por Zephyr Teachout no New York Review of Books | Tradução: Vítor Costa e Maurício Ayer

Viagem ao universo da espionagem patronal. Como eles monitoram humor, sinais de cansaço e amizades dos empregados, até fora do expediente. A gestão despótica dos robôs-capatazes. A saída: enfrentar o poder privado, não só a tecnologia
Décadas atrás, quando me mudei para Nova York, me apresentei para uma vaga de assistente pessoal de um escritor. Imaginei que me tornaria uma amanuense, traduzindo pronunciamentos inspirados em poemas. Em vez disso, o que fiz foi encomendar e devolver suéteres, programar cortes de cabelo e fazer planos de refeições para literatos que nunca cheguei a conhecer. Minha chefe, seu marido (um gerente de investimentos) e seus filhos moravam na Park Avenue, em uma cobertura com cortinas georgianas e janelas com isolamento acústico triplo. Ela contratava serviços personalizados: personal trainers, personal shoppers, professor particular de poesia, personal coach de ópera. Eu era uma das quatro funcionárias em tempo integral, junto com duas babás irlandesas e uma empregada francesa. Durante nosso almoço de trinta minutos, nós quatro corríamos para a cozinha para usar a pequena torneira dourada que fornecia água fervente instantânea para fazer chá e sopa. Bebíamos, ríamos e reclamávamos da nossa chefe.

Durante uma dessas refeições, a babá-chefe começou uma ligação no canto da cozinha e depois rapidamente desligou o telefone. Apontando para o aparelho, ela murmurou que achava que nossa chefe estava ouvindo. Enquanto sorvíamos nossa sopa, eu disse que nossa chefe sempre me pedia relatórios sobre o que conversávamos e a babá sussurrou que tinha certeza de tê-la visto à espreita do lado de fora da porta da cozinha. Na hora foi engraçado, mas logo passou: uma pontada de ansiedade começou a se espalhar pela sala.

Algumas semanas depois, a empregada foi demitida. Não ficou claro se sua demissão tinha qualquer relação com algo que tenha sido dito. Mas uma vez que a paranoia mete as garras em você, ela não solta assim tão fácil. Nossos salários e aumentos eram imprevisíveis. Dois dos funcionários dependiam de green cards. Essas circunstâncias, que haviam sido objeto de tantas conversas, de repente se tornaram um motivo de insegurança. Nós, primeiro gradualmente, depois de uma vez, paramos de almoçar juntos.

Essa pequena e desanimadora experiência me vem à memória agora, quando vivemos uma explosão de investimentos corporativos em vigilância no local de trabalho. O ano de 1995, quando tive esse emprego, hoje parece quase pitoresco, uma era de ingenuidade no mundo da vigilância. Não havia Facebook ou Google seguindo as pessoas aonde quer que fossem, nem os assustadores anúncios personalizados. Naquela época, os estadunidenses passavam uma média de 30 minutos por mês online, e a vigilância da intimidade 24 horas por dia, 7 dias por semana, era reservada aos alvos de investigações do FBI.

Nos vários trabalhos que eu tive até os 24 anos, eu entrava e saía, começava a lavar a louça mais rápido quando o supervisor passava, pesava os grãos que colhia, negociava para sair mais cedo em troca de limpar uns banheiros a mais e escrevia relatórios para a professora da terceira série que eu ajudava na sala de aula. Até as gorjetas que recebi como garçonete eram problema meu, não dos restaurantes. Meus chefes me conheciam superficialmente – minhas roupas, minha produtividade geral – não o que eu pensava ou sentia fora do local de trabalho, a menos que eu decidisse compartilhar.

Acontece que as décadas de 1980 e 1990 representaram um ponto de virada na vigilância, foi o período em que as empresas iniciaram seus primeiros investimentos em monitoramento eletrônico de desempenho. Em 1987, cerca de 6 milhões de trabalhadores eram observados de alguma forma mediada, geralmente por uma câmera de vídeo ou gravador de áudio; em 1994, aproximadamente um em cada sete trabalhadores estadunidenses, cerca de 20 milhões, estava sendo monitorado eletronicamente no trabalho. Os números aumentaram constantemente a partir daí. Quando a tecnologia da fita de vídeo foi suplantada por dispositivos digitais que podiam escanear vários locais ao mesmo tempo, as primeiras câmeras instaladas para proteger as empresas contra roubo redirecionaram seu olhar insaciável das mercadorias para os trabalhadores.

O segundo grande ponto de virada no monitoramento eletrônico de desempenho está acontecendo agora. Ele é impulsionado pela tecnologia vestível (wearable tech), pela inteligência artificial e pela covid. O uso de software de vigilância pelas empresas aumentou 50% em 2020, o primeiro ano da pandemia, segundo algumas estimativas, e continuou a crescer.

Essa nova tecnologia de rastreamento é onipresente e intrusiva. As empresas rastreiam em nome da segurança, da eficiência ou apenas porque têm essa capacidade. Elas inspecionam, preservam e analisam movimentos, conversas, conexões sociais e afetos. Se a primeira expansão da vigilância foi uma apropriação territorial, afirmando autoridade sobre toda pessoa no trabalho, a segunda expansão diz respeito a como estilhaçar esse espaço. Está mudando a composição estrutural de como os humanos se relacionam uns com os outros e consigo mesmos.

Alguns motoristas de longa distância têm que dirigir um caminhão de 15 metros por mil quilômetros por dia com uma câmera de vídeo olhando para eles o tempo todo, observando seus olhos, seus dedos, seus espasmos, seus assobios, seus movimentos de pescoço. Imagine viver na frente daquela câmera intrometida com cara de chefe por meses a fio enquanto ela examina o seu táxi, que serve como sua casa na maior parte do tempo. Em um dos muitos fóruns furiosos do Reddit sobre câmeras voltadas para motoristas, um caminhoneiro escreveu que só suportaria uma câmera “se o proprietário da empresa me der um acesso irrestrito 24 horas por dia, 7 dias por semana, na casa dele”. “Essas poucas centenas de quilômetros por dia são o único tempo que tenho completamente para mim e sinto como se estivesse sendo marcado”, acrescentou outro. “Eu só quero cutucar meu nariz e coçar meu saco em paz.” Um motorista de ônibus descreveu o desejo humano de fazer uma cara estranha ou falar sozinho, ou mesmo cantar uma música… “Eu podia sentir menos cortisol fluindo pelo meu corpo no meu segundo emprego, onde os ônibus eram mais velhos e não tinham câmeras dentro. Isso te adoece e te deixa esgotado.”

Os empregadores leem os e-mails dos funcionários, rastreiam seu uso da internet e ouvem suas conversas. Enfermeiros e trabalhadores de estoque são obrigados a usar crachás de identificação, pulseiras ou roupas com chips que rastreiam seus movimentos, medindo os passos e comparando-os tanto com os dos colegas de trabalho quanto com os seus próprios de dias anteriores.

Os braceletes que agora com frequência circundam a pele do seu braço, acariciando o seu nervo mediano, podem no futuro ser usados para enviar sinais para você ou seu empregador, medindo quantos minutos você passa no banheiro. A Amazon, que rastreia minuciosamente cada momento da atividade de um funcionário do estoque, cada pausa e conversa, tem a patente de uma pulseira que, segundo o Times, “seria capaz de emitir impulsos de som ultrassônicos e transmissões de rádio para rastrear onde as mãos de um funcionário estavam em relação ao estoque de caixas” e, em seguida, vibraria para direcionar o trabalhador para a caixa correta. Um “boné inteligente” (SmartCap) usado em caminhões monitora as ondas cerebrais de cansaço.

Um software de recursos humanos pode monitorar o tom de voz dos trabalhadores. Uma grande empresa de tecnologia, a Cogito, divulga seu produto como “o coach alimentado por IA [que] melhora o desempenho dos humanos por meio de análise e feedback de voz em chamadas em tempo real”. Enquanto os trabalhadores ganham US$ 15 por hora atendendo reclamações de consumidores irritados em um cubículo, eles devem prestar atenção a uma tela pop-up que começa a piscar se eles falarem muito rápido, se houver sobreposição entre sua voz e a voz do cliente ou se fizerem uma pausa longa demais. “Empatia em larga escala”, orgulha-se a empresa.

Em certo sentido, rastrear o comportamento na intimidade não é novidade: o modelo de negócios de empresas de tecnologia como Facebook e Google, afinal, depende do rastreamento de usuários dentro e fora de seus sites. A mercantilização dos dados está em sua terceira década de existência. Mas vigilância e gerenciamento automático no trabalho são diferentes. Os trabalhadores não podem optar por sair sem perder seus empregos: você não pode desligar a câmera no caminhão se isso for contra a política da empresa; você não pode arrancar o dispositivo de gravação do seu cartão de identificação. E a vigilância do trabalhador vem com uma poderosa ameaça implícita: se a empresa perceber muita fadiga, você pode ser excluído da próxima promoção. Se a máquina ouvir algo que não gostar, você pode ser demitido.

As implicações políticas da vigilância onipresente no emprego são monumentais. Embora os chefes sempre tenham ouvido as conversas dos trabalhadores, eles só podiam fazer isso raramente – qualquer coisa além disso era logisticamente impossível. Agora não. Os funcionários precisam assumir que tudo o que dizem pode ser gravado. O que acontece quando todas as palavras e o tom dessas palavras podem ser gravados e reproduzidos? Sussurrar não funciona mais.

Em muitos casos, a vigilância ao trabalhador é instalada por razões explícitas de segurança, por exemplo, as câmeras térmicas instaladas para proteger clientes e colegas de um trabalhador que esteja com febre. Mas ela não é, ao que parece, boa para o nosso bem-estar. A vigilância eletrônica coloca o corpo da pessoa rastreada em um estado de hipervigilância perpétua, o que é particularmente ruim para a saúde – e ainda pior quando acompanhada de impotência em reagir. Os funcionários que sabem que estão sendo monitorados podem apresentar ansiedade, desgaste, ou ficar extremamente tensos e irritados. O monitoramento causa uma liberação de substâncias químicas de estresse e as mantém fluindo, o que pode agravar problemas cardíacos. Pode levar a distúrbios do humor, hiperventilação e depressão. Professores de administração das Universidades Cornell e McMaster realizaram recentemente uma pesquisa sobre monitoramento eletrônico em call centers e mostraram que o estresse causado por isso era tão grande quanto o estresse causado por clientes abusivos. Os trabalhadores sentem que o monitoramento é usado para disciplinamento, não para melhoria do que seja, que as expectativas não eram razoáveis ​​e o uso do monitoramento era injusto. Eles preferiam um chefe humano a um espião robô sempre presente com o poder de afetar seus contracheques.

É alguma surpresa que a saúde mental dos caminhoneiros esteja sofrendo? Ou que os funcionários do call center estejam se deprimindo? Caminhoneiros e trabalhadores de call center relatam uma espécie de neblina desestabilizadora, uma camada constante de incerteza e paranoia: qual gesto de mão, qual pausa no banheiro, qual conversa foi que me fez perder aquele bônus? “Sei que estamos trabalhando, mas, quero dizer, tenho medo de coçar o nariz”, disse um motorista da Amazon ao Insider em uma matéria sobre as câmeras voltadas para o motorista da empresa. A matéria não mencionou o nome dele, por medo de represálias.

Em 2011, Travis Kalanick, fundador da Uber, convidou os moradores de Chicago para uma festa no Elysian Hotel. Em uma grande tela, ele exibiu o que inicialmente chamou de “God View” (visão de Deus) e depois renomeou “Heaven” (Paraíso), um mapa no qual a empresa conseguia rastrear os motoristas, sem que eles soubessem. Os participantes assistiram com espanto a centenas de carros que circulavam pela cidade em tempo real, atordoados em seu poleiro no topo do mundo.

Esta anedota, de Super Pumped: The Battle for Uber, de Mike Isaac, mostra Kalanick exultante, saboreando seu poder de dominação. Mais frequentemente vemos ele, e a empresa, exibindo sua habitual paranoia, espionando para proteger a fortaleza. O livro começa contando o caso em que Kalanick, para responder à fiscalização, contrata “funcionários que eram ex-CIA, NSA e FBI” com o objetivo de construir uma “força de espionagem corporativa de alto desempenho” que “espionava funcionários do governo, analisava profundamente suas vidas pessoais e às vezes os seguia até suas casas”. Uma vez que os espiões corporativos identificaram quem eram os fiscais que estavam tentando documentar um caso e mostrar que a Uber estava violando leis locais, a empresa criou um código para garantir que esses fiscais nunca conseguissem chamar motoristas da Uber e, portanto, não pudessem investigar violações das leis de trabalho locais. Em substituição, a Uber apresentava a eles um modelo simulado do aplicativo com carros falsos. O fiscal achava que tinha conseguido um motorista, mas este nunca aparecia. A Uber chamou o programa de “Greyball” (bola cinza).

Isaac é repórter de tecnologia do New York Times e escreve frequentemente sobre o Vale do Silício. Ele revelou a história do Greyball no Times em 2017, dois anos antes de seu livro ser publicado. Seu fascinante retrato da Uber mostra a empresa desde seus primeiros dias até a expulsão definitiva de Kalanick, retornando várias vezes ao modo como a Uber usava a vigilância para ampliar seu poder. A empresa rastreava os clientes depois que eles deixavam suas corridas, extraía dados de cartão de crédito para tirar informações sobre os concorrentes e espionava motoristas que dirigiam para empresas rivais. Ela construiu um “Grupo de Serviços Estratégicos” que usava “redes privadas virtuais, laptops baratos e pontos de acesso sem fio pagos em dinheiro”. A Uber também se fez passar por motoristas em chats de grupos privados para aprender sobre rivais, tirou fotos de funcionários, seguiu pessoas e gravou conversas privadas de concorrentes.

Isaac demonstra como Kalanick gastou dezenas de milhões de dólares em espionagem e atividades relacionadas. Em julho, Mark MacGann, ex-lobista-chefe da Uber na Europa, Oriente Médio e África, vazou para The Guardian mais de 124 mil documentos que mostravam a extensão do desrespeito à lei da Uber entre 2013 e 2017 e como os executivos cortejavam chefes de Estado para construir seu império.

Em 2017, após uma série de escândalos de assédio sexual e discriminação no local de trabalho, Kalanick foi substituído como CEO por Dara Khosrowshahi, anteriormente chefe da Expedia. Khosrowshahi mudou a empresa em vários aspectos desde que assumiu, mas a questão da vigilância não parece ter diminuído.

No período coberto pelo livro de Isaac, a Uber supostamente recebia de 20 a 25% do custo da viagem, além de complementos. Este ano, Khosrowshahi lançou um novo sistema para pagar motoristas e preços de corridas em algumas cidades. A tarifa é baseada em “vários fatores” – incluindo, de acordo com o site de notícias investigativas online The Markup, “tarifas básicas, distância e duração estimadas da viagem, demanda em tempo real no destino e preços de pico”. Dessa forma, a remuneração dos motoristas ficou menos transparente e pode variar. Um motorista compartilhou capturas de tela de seus pagamentos com The Markup. Uma mostrava-o recebendo US$ 14 por uma corrida enquanto a Uber recebia US$ 13, outro o mostrava recebendo US$ 6 dólares enquanto a Uber levava US$ 9. Ninguém sabe por que o pagamento do motorista flutuava. Sabemos que a Uber rastreia muitas métricas, como a velocidade com que os motoristas freiam, para onde vão, suas classificações, as viagens que aceitam e cancelam, quanto tempo levam para chegar a algum lugar: parece provável que o pagamento esteja vinculado a todos esses dados.

Outras empresas, como as plataformas de entrega de alimentos DoorDash e Instacart, vêm fazendo algo semelhante, usando sistemas não transparentes para distribuir pagamentos personalizados. A Instacart costumava pagar um valor base aos entregadores, mas agora as decisões de pagamento são uma caixa preta. Os trabalhadores temem que a empresa esteja usando tudo o que sabe para pagá-los o menos possível. Mas eles não podem provar nada.

Tudo isso é desmoralizante e distópico, mas o que isso tem a ver com democracia? Elizabeth Anderson lançou em 2017 um livro vivaz e persuasivo, Private Government, que oferece uma parte da resposta. Anderson, filósofa política da Universidade de Michigan, dá um chacoalhão no leitor para tirá-lo da estranha rigidez que permeia a discussão pública sobre governo. O emprego é uma forma de governo, argumenta ela, muito mais relevante e imediata para a maioria das pessoas do que as questões relativas a Washington.

Uma empresa poderosa como a Amazon, por exemplo, define seus próprios termos de empregabilidade e, ao fazê-lo, impacta os motoristas de uma empresa como a UPS e o setor de logística em geral. Empregadores privados com influência em todo o setor têm poder de coerção: o que Anderson chama de poder de governo. Esse governo privado, personificado por grupos privados ou por monopólios econômicos sancionados pelo Estado, era o alvo central de intelectuais e ativistas como John Locke e os Levellers. Anderson vê em Locke, Adam Smith e outros uma crença de que o poder arbitrário de rebaixar e disciplinar é uma ameaça a uma sociedade livre, onde quer que apareça, e que o governo público e responsável deve nos proteger contra a tirania privada.

Muitos “pensadores e políticos modernos”, argumenta ela, são “como aqueles pacientes que não conseguem sentir metade de seus corpos”: eles “não conseguem perceber metade da economia: eles não conseguem perceber a metade que ocorre além do mercado, após o contrato de trabalho ser aceito”. Como resultado, as empresas são geralmente tratadas como sendo totalmente privadas.

Muitos trabalhadores do setor privado, escreve Anderson, vivem sob ditaduras em suas vidas profissionais. Normalmente, essas ditaduras têm autoridade legal para regular também a vida fora do expediente dos trabalhadores – suas atividades políticas, discurso, escolha do/a parceiro/a sexual, uso de drogas recreativas, álcool, tabagismo e exercícios físicos.

Para ela, trabalhadores de serviços que marcam ponto, ou técnicos e corretores de imóveis e cozinheiros que parecem dotados de liberdades substanciais, são sobrecarregados por um sistema legal que permite que as corporações demitam um trabalhador com base no que ele faz em atividades fora do horário.

Os direitos de expressão dos trabalhadores são praticamente inexistentes, exceto no que se refere explicitamente à organização trabalhista, o que, argumenta Anderson, é efetivamente letra morta nos dias de hoje devido à dificuldade de aplicação e ao medo de desafiar as táticas do patrão.

Como as coisas ficaram tão ruins? Anderson acredita que os problemas básicos que permitiram o atual ambiente de trabalho distópico remontam gerações. Quando a Revolução Industrial deslocou o “local principal do trabalho remunerado do lar para a fábrica”, importou a longa tradição de poder totalmente arbitrário de dentro do lar, em que os filhos não tinham liberdade em relação aos pais e às esposas tinham liberdade muito limitada em relação aos seus cônjuges. A Revolução Industrial poderia ter proporcionado uma fuga das tiranias privadas da vida doméstica, mas, em vez disso, as replicou.

Durante o apogeu da Ford Motor Company, seu Departamento Sociológico começou a inspecionar as casas dos trabalhadores. Anderson escreve:

“Os trabalhadores eram elegíveis para o famoso salário diário de US$ 5 da Ford apenas se mantivessem suas casas limpas, fizessem dietas consideradas saudáveis, se abstivessem de beber, usassem a banheira adequadamente, não aceitassem pensionistas, evitassem gastar muito com parentes estrangeiros e fossem assimilados às normas culturais americanas.”

Anderson ressalta que, embora a Apple não visite as casas das pessoas hoje, ela exige que os trabalhadores do varejo abram suas malas para inspeções antes de entrar no trabalho. Tratamos isso como algo normal, ela observa, mas deveríamos? Quase metade dos estadunidenses foi submetida a um teste de drogas sem suspeita. E muitos trabalhadores não têm proteção contra serem demitidos pelo que dizem nas mídias sociais. Para aqueles que afirmam que o local de trabalho não é um governo porque você pode pedir demissão, Anderson retruca: “É como dizer que Mussolini não era um ditador, porque os italianos podiam emigrar”.

O foco de Anderson não é a vigilância, mas seu trabalho sugere duas coisas. A primeira é que, para lidar com a espionagem constante, devemos nos concentrar na questão do poder, não apenas na tecnologia. Os direitos trabalhistas e a fiscalização antitruste devem ser respostas de primeiro nível às atuais – e cada vez piores – estruturas de poder. Em segundo lugar, devemos tratar a vigilância do empregador como fazemos com qualquer vigilância governamental – em outras palavras, com profunda suspeita. É um truísmo dizer que a vigilância governamental inibe o discurso e o debate e corrói a esfera pública; uma vez que possamos perceber o local de trabalho como um local de governo, talvez possamos construir um movimento político por maior liberdade nos lugares onde os trabalhadores estadunidenses passam a maior parte de suas horas de vida.

Para entender a realidade em que estamos, precisamos ser capazes de conversar uns com os outros sem medo de que nossas conversas sejam usadas contra nós. As conversas privadas entre os trabalhadores – e as amizades, debates, perguntas – fazem parte da coesão e conexão que possibilitam não apenas a organização trabalhista, mas a vida pública. Quando tudo o que dizemos está sendo ouvido – especialmente por um grupo menor e mais poderoso de empregadores – pode ser mais fácil não falar mais. Isso não é diferente do totalitarismo político contra o qual Hannah Arendt nos alertou, onde o Estado visa desintegrar o privado e o público, submergindo o privado no público e depois controlando o público. A conclusão lógica da vigilância no local de trabalho é que a esfera privada deixa de existir em casa porque ela deixa de existir no trabalho, onde a visibilidade sobre a vida do trabalhador é irrestrita.

Três anos atrás, enquanto eu estava escrevendo meu livro sobre monopólios e como eles agem como governos privados, conversei com criadores de frango que a cada mês recebiam valores diferentes dos grandes distribuidores de aves. Um fazendeiro se destaca na minha memória. Amoroso, bravo e desalentado, esse homem descreveu como era examinar um mês de pagamento de seu distribuidor de aves e não saber se o pagamento refletia uma concorrência justa com outros criadores, uma retaliação por algo que tenha falado ou uma evidência de que ele fazia parte de um experimento. Ele contou que outros fazendeiros confessaram que ficaram tão bravos que tinham vontade de matar os distribuidores.

Este sistema de pagamento é chamado de sistema de “torneio”. Os agricultores competem para serem os mais produtivos. Teoricamente, eles são pagos com base em quão produtivos são em relação a outros agricultores. No entanto, não há mecanismo de prestação de contas ou verificação de fatos: o distribuidor mantém todos os dados e, quando distribui os contracheques, os agricultores, totalmente dependentes do distribuidor para pagar suas contas, têm que aceitar que ele está sendo honesto.

Uma estrutura semelhante – um “torneio” – é o modelo de como a Amazon exerce poder sobre suas contrapartes, sejam elas governos, vendedores ou trabalhadores. No segundo livro de Brad Stone sobre o crescimento corporativo da Amazon, Amazon Unbound, ele aborda a enorme expansão da empresa na última década e o crescimento de seu poder político.

Jeff Bezos, no relato de Stone, estava profundamente envolvido em todos os aspectos de RH, tanto nos escritórios corporativos quanto nos depósitos. Ele adotou um sistema de pagamento e promoção chamado “stack ranking”, no qual os gerentes de nível médio classificavam seus funcionários e demitiam os de classificação mais baixa. Os gerentes tinham cotas de quantas pessoas precisavam demitir e esperavam classificá-los para chegar lá. Depois de uma matéria de primeira página no Times sobre como a cultura da empresa colocava os trabalhadores uns contra os outros, a prática foi encerrada.

Mas a filosofia – forçar as pessoas a lutar entre si, expulsar os de pior desempenho – continua ressurgindo em diferentes setores da empresa. Quando a Amazon contava com terceirizados para fazer as entregas, desenvolveu um aplicativo chamado “Rabbit” que rastreava a entrega. A equipe do Rabbit observava os motoristas, escreve Stone, “saltar refeições, passar pelos sinais de trânsito fechados e prender seus telefones nas pernas das calças para que pudessem olhar facilmente para a tela, tudo para cumprir prazos de entrega desafiadores”. Aqueles que não alcançavam as metas eram demitidos. Quando a Amazon decidiu que queria construir uma nova sede, anunciou um torneio para determinar a localização – obtendo gratuitamente os dados de 238 cidades no processo.

De acordo com Stone, repórter de tecnologia da Bloomberg News, Bezos ficou furioso quando o chefe de operações da Amazon tentou fazer com que a empresa incorporasse a abordagem “Lean” da Toyota, na qual os trabalhadores desenvolvem confiança e relacionamentos com seus gerentes com o objetivo de manter o relacionamento de longo prazo no emprego. Quando o vice de RH do mesmo departamento apresentou um artigo chamado “Respect for People”, Stone relata: “Bezos odiou. Ele não apenas criticou isso na reunião, mas chamou [o encarregado] na manhã seguinte para continuar a intimidação”. Em vez de uma força de trabalho estável, ele queria que os trabalhadores do centro de distribuição ficassem por no máximo três anos, a menos que conseguissem um novo emprego internamente. Ele limitou severamente os aumentos após três anos.

Para esses trabalhadores, a empresa impõe exigências extraordinárias: proíbe falar, rastreia tudo, demite trabalhadores que não cumprem suas cotas e espera que as condições sejam ruins o suficiente para que os trabalhadores desistam. Antes da pandemia, informou o Times, “a rotatividade de sua força de trabalho era de aproximadamente 150% ao ano”.

“Você passa 10 horas em pé, num local sem janelas e sem permissão para conversar com as pessoas – não há interações permitidas”, relatou um funcionário para uma matéria da Vox sobre o crescente número de ligações para o 911 dos centros de distribuição da Amazon. “Percebi em pouco tempo que eles forçam as pessoas a trabalhar até a morte, ou até que fiquem cansadas demais para continuar trabalhando.”

“Essa é uma das grandes razões pelas quais as pessoas querem se sindicalizar”, disse, ao Washington Post em dezembro passado, Chris Smalls, líder do Sindicato dos Trabalhadores da Amazon, que organizou um depósito em Staten Island este ano. “Quem quer ser vigiado o dia inteiro? Isso não é uma prisão. É um trabalho.”

Pode ser tentador ver a vigilância da Amazon como um problema puramente do local de trabalho e o pagamento variável orientado por vigilância como um problema puramente profissional, mas os empregadores não enfrentam limites legais para incorporar novos tipos de pagamento variável ao emprego formal – e abusos enfrentados por contratados independentes estão se fundindo com aqueles enfrentados pelos empregados formais. Este é um dos argumentos centrais de Your Boss Is an Algorithm, dos professores de direito Antonio Aloisi e Valerio De Stefano. O “Gig work”, onde o trabalhador é mais fraco, é um local de experimentação de novas técnicas gerenciais. Esses experimentos tornam-se o campo de provas para estratégias que são então levadas para outras formas de emprego.

O futuro, argumentam Aloisi e De Stefano, está na combinação das ferramentas de rastreamento e recompensa do trabalho temporário com contratos de trabalho que permitam mudanças nos salários. O kit de ferramentas existente é vasto:

O Activtrack inspeciona os programas usados ​​e informa aos chefes se um funcionário está sem foco, gastando tempo nas mídias sociais. O OccupEye registra quando e por quanto tempo alguém está longe de sua estação de trabalho. O TimeDoctor e o Teramind acompanham todas as tarefas realizadas online. Da mesma forma, o Interguard compila uma linha do tempo minuto a minuto que monitora todos os dados, como histórico da web e utilização de largura de banda, e envia uma notificação aos gerentes se os funcionários detectarem algo suspeito. O HubStaff e o Sneek, como rotina, tiram fotos de funcionários por meio de suas webcams a cada cinco minutos para gerar um cartão de ponto e os fazem circular para aumentar o moral. O Pragli sincroniza calendários profissionais e listas de reprodução de música para criar um senso de comunidade, e também possui um reconhecimento facial que pode exibir a emoção do mundo real de um trabalhador no rosto de seu avatar virtual.

No momento, pode haver provas limitadas de que essas ferramentas são usadas para variar a remuneração em locais de trabalho tradicionais. Mas os autores argumentam que essas ferramentas técnicas não são difíceis de combinar com as inovações legais nos contratos de trabalho. Contratos que permitem salários variáveis podem facilmente trazer muitas das condições do trabalho temporário para o emprego tradicional. As corporações podem em breve abandonar o modelo de salário fixo que tem sido uma característica dos empregos operacionais há décadas.

Não é coincidência que a vigilância rotineira do trabalho tenha seguido de perto a revolução antitruste de Reagan e o colapso da sindicalização do setor privado. Nada, exceto a sindicalização ou novas leis, impediria um empregador de pegar todos os dados que está coletando de sensores e gravações e usá-los para ajustar os salários com mais precisão, até que cada trabalhador receba o salário mais baixo pelo qual está disposto a trabalhar e todos os trabalhadores vivam com medo de retaliação. Isso não é mais ficção científica do que o Facebook e o Google servindo aos usuários conteúdo individualizado e anúncios projetados para nos manter conectados em seus serviços o maior tempo possível, permitindo que eles vendam o maior número possível de anúncios.

As roupas sob medida que minha chefe da Park Avenue usava eram uma distinção de privilégio, um degrau acima da fabricação em massa – ternos feitos para caber em seu corpo individual, sapatos feitos sob medida para os sulcos e arcos de seus pés. A promessa moderna da personalização tecnológica, com base em uma noção romantizada de individualidade e autenticidade, é que todos podemos viver em mundos feitos sob medida, com feeds de notícias ajustados às nossas preferências e interesses profissionais e de lazer. Você pode ser um dos poucos ouvintes que ama tanto Kenny Rogers quanto The Cure, mas o Spotify conhece você e pode trazer músicas que falam à sua alma única.

Mas estender esse ethos feito sob medida é muito pouco romântico: esses olhos podem ter a intimidade e a memória de um amante, mas carecem de qualquer afetuosidade. A consequência da tecnologia de vigilância moderna é que os salários sob medida estão chegando a todos os locais de trabalho. Os salários deprimidos dos não-sindicalizados massificados do final do século XX já eram alarmantes, mas os novos salários de IA moldados especialmente sob encomenda do século XXI permitem um novo nível de autoritarismo. Para pará-lo, teremos que proibir determinadas formas de espionagem e usar leis antimonopólio e trabalhistas para reestruturar o poder.

A tecnologia de rastreamento pode ser comercializada como ferramenta para proteger as pessoas, mas acabará sendo usada para identificar com precisão o pouco que cada trabalhador está disposto a ganhar. Será usada para rebaixar os salários e também para matar a camaradagem que antecede a sindicalização, dificultando a conexão com outros trabalhadores, envenenando a comunidade que possibilita o debate democrático. Será usada para romper a solidariedade pagando aos trabalhadores de forma diferente. E isso levará à ansiedade e ao medo que permeiam mais locais de trabalho, pois a névoa de não saber por que você recebeu um bônus ou rebaixamento molda o dia.

Isso importa porque o trabalho não é algo para se discutir depois de estabelecida a sociedade democrática: as relações construídas no trabalho são um alicerce essencial. Com trabalhadores totalmente atomizados, desencorajados a se conectarem uns com os outros, mas forçados a oferecer um retrato completo e privado de si mesmos a seus patrões, não consigo imaginar uma democracia.


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