segunda-feira, 11 de março de 2024

Deus, um delírio ( gota 5 )

RICHARD DAWKINS

Deus, um delírio
Tradução Fernanda Ravagnani
COMPANHIA DAS LETRAS

2. A Hipótese de que Deus Existe

A religião de uma era é o entretenimento literário da seguinte.
Ralph Waldo Emerson

O Deus do Antigo Testamento é talvez o personagem mais desagradável da ficção: ciumento, e com orgulho; controlador mesquinho, injusto e intransigente; genocida étnico e vingativo, sedento de sangue; perseguidor misógino, homofóbico, racista, infanticida, filicida, pestilento, megalomaníaco, sadomasoquista, malévolo. Aqueles que são acostumados desde a infância ao jeitão dele podem ficar dessensibilizados com o terror que sentem. Um naïf dotado da perspectiva da inocência tem uma percepção mais clara. Randolph, filho de Winston Churchill, conseguiu — não sei como — permanecer ignorante em relação às Escrituras até que Evelyn Waugh e um irmão soldado, na vã tentativa de manter Churchill quieto quando eles estavam no mesmo destacamento, apostaram que ele não seria capaz de ler a Bíblia inteira em quinze dias: "Infelizmente isso não surtiu o efeito que esperávamos. 

Ele nunca tinha lido nada dela e está horrivelmente entusiasmado; fica lendo citações em voz alta: 'Garanto que vocês não sabiam que isso veio da Bíblia...', ou então fica se remexendo e dando risada: 'Meu Deus, Deus não é um merda?'".16 Thomas Jefferson — mais informado — tinha opinião parecida, descrevendo o Deus de Moisés como "um ser de caráter terrível — cruel, vingativo, caprichoso e injusto". 

É injusto atacar um alvo tão fácil. A Hipótese de que Deus Existe não deve ser sustentada ou ser derrubada com base em sua instância mais desagradável, Javé, nem em seu oposto, o insípido rosto cristão do "Jesus gentil, manso e suave".* (Para ser justo, essa persona efeminada deve-se mais a seus*

Referência ao hino "Gentle Jesus meek and mild", do metodista do século XVIII Charles Wesley. (N. T.)

seguidores vitorianos que ao próprio Jesus. Será que alguma coisa pode ser mais açucarada e enjoativa que o "Todas as crianças cristãs devem ser/ Calmas, obedientes, boas como ele",** de C. F. Alexander?) Não estou atacando as qualidades específicas de Javé, ou Jesus, ou Alá, ou de nenhum outro deus em particular como Baal, Zeus ou Wotan. Definirei a Hipótese de que Deus Existe de modo mais defensável: existe uma inteligência sobre-humana e sobrenatural que projetou e criou deliberadamente o universo e tudo que há nele, incluindo nós. Este livro vai pregar outra visão: qualquer inteligência criativa, de complexidade suficiente para projetar qualquer coisa, só existe como produto final de um processo extenso de evolução gradativa. Inteligências criativas, por terem evoluído, necessariamente chegam mais tarde ao universo e, portanto, não podem ser responsáveis por projetá-lo. Deus, no sentido da definição, é um delírio; e, como os capítulos posteriores mostrarão, um delírio pernicioso.

Não é de surpreender, já que ela se baseia mais em tradições locais de revelações específicas do que em provas, que a Hipótese de que Deus Existe apareça em várias versões. Os historiadores da religião reconhecem uma progressão de animismos tribais primitivos, passando por politeísmos como os dos gregos, romanos e nórdicos, até os monoteísmos, corno o judaísmo e seus derivados, o cristianismo e o islã. 

POLITEÍSMO 

Não está claro por que a passagem do politeísmo para o monoteísmo deva ser encarada como um aperfeiçoamento progressivo evidente. Mas ela é amplamente aceita como tal — uma pressuposição que provocou Ibn Warraq (autor de Why I am not a Muslim [Por que não sou muçulmano]) a conjecturar sagazmente que o monoteísmo está por sua vez fadado a subtrair mais um deus e se transformar em ateísmo. A Catholic encyclopedia coloca o politeísmo e o ateísmo no mesmo nível de desimportância: "O ateísmo dogmático formal é uma autonegação e nunca obteve de facto a aprovação racional de um número considerável de homens. Assim como o politeísmo, 

** "Christian children ali must be/ Mild, obedient, good as he." (N. T.)

por mais facilmente que se apodere da imaginação popular, jamais satisfará a mente de um filósofo".17

O chauvinismo monoteísta estava até bem recentemente encravado na lei de entidades beneficentes tanto da Inglaterra quanto da Escócia, a qual discriminava religiões politeístas para garantir o status de isenção de impostos ao mesmo tempo que facilitava a vida de entidades cujo objetivo fosse promover a religião monoteísta, liberando-as do rigoroso exame exigido, com bons motivos, das entidades beneficentes laicas. Minha idéia era convencer um integrante da respeitada comunidade hindu britânica a se manifestar e entrar com uma ação civil para pôr à prova essa discriminação esnobe contra o politeísmo. 

Bem melhor, é claro, seria abandonar de vez a promoção da religião como base para o status de entidade beneficente. As vantagens dessa medida para a sociedade seriam enormes, especialmente nos Estados Unidos, onde as somas de dinheiro isento de impostos sugadas por igrejas, e que enchem ainda mais os bolsos dos televangelistas, atingem níveis que poderiam ser descritos sem remorsos como obscenos. Oral Roberts, que tem um nome bem adequado, disse uma vez a sua audiência que Deus o mataria se ele não lhe desse 8 milhões de dólares. É quase inacreditável, mas funcionou. Livres de impostos! Roberts continua com a corda toda, assim como a "Universidade Oral Roberts" de Tulsa, Oklahoma. Suas instalações, estimadas em 250 milhões de dólares, foram encomendadas pelo próprio Deus, com essas palavras: "Mobilize seus alunos para ouvir Minha voz, para ir aonde Minha luz é fraca, aonde Minha voz soa pequena, e Meu poder de cura não é conhecido, até nos limites mais extremos da Terra. O trabalho deles superará o seu, e com isso estarei satisfeito". 

Pensando bem, meu litigante hindu imaginário provavelmente entraria no jogo do "Se não pode vencê-los, junte-se a eles". Seu politeísmo não é um politeísmo de verdade, mas um monoteísmo disfarçado. Há apenas um Deus — Brahma, o criador; Vishnu, o preservador; Shíva, o destruidor; as deusas Saraswati, Lakshmi e Parvati (mulheres de Brahma, Vishnu e Shiva); Ga-nesh, o deus-elefante, e as centenas de outros são apenas manifestações diferentes ou encarnações do mesmo Deus.

Os cristãos devem aprovar tal sofisma. Rios de tinta medieval, sem falar do sangue, foram gastos para explicar o "mistério" da Trindade, e para suprimir desvios como a heresia ariana. Ário de Alexandria, no século IV d. C., negou que Jesus fosse consubstancial (isto é, de mesma substância ou essência) com Deus. Que diabos isso queria dizer, você deve estar se perguntando. Substância? Que "substância"? O que exatamente se quer dizer com "essência"? "Muito pouco" parece a única resposta razoável. Mesmo assim, a controvérsia dividiu a cristandade ao meio por um século, e o imperador Constantino ordenou que todos os exemplares do livro de Ário fossem queimados. Dividir a cristandade brigando por minúcias — é o que a teologia sempre faz. 

Temos um Deus em três partes, ou serão três Deuses em um? A Catholic encyclopedia esclarece a questão, numa obra-prima do raciocínio teológico: 

Na unidade da Divindade há três Pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, sendo que essas Três Pessoas são distintas umas das outras. Assim, nas palavras do Credo de Atanásio: "o Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus, contudo não há três Deuses, mas um só Deus". 

Como se isso não estivesse suficientemente claro, a Encyclopedia cita o teólogo do século m são Gregório, o Milagreiro: 

Não há portanto nada que tenha sido criado, nada que tenha sido sujeitado a outro na Trindade: nem há nada que tenha sido acrescentado corno se uma vez não tivesse existido, mas entrado depois: portanto o Pai jamais esteve sem o Filho, nem o Filho sem o Espírito Santo: e essa mesma Trindade é imutável e inalterável para sempre. 

Quaisquer que tenham sido os milagres que deram a são Gregório seu apelido, não eram milagres de lucidez. Suas palavras carregam o traço obscurantista característico da teologia, que — diferentemente da ciência e da maioria dos outros ramos da sabedoria humana — não mudou em dezoito séculos. Thomas Jefferson, como tantas outras vezes, falou bem quando disse: "O ridículo é a única arma que pode ser usada contra proposições ininteligíveis. As idéias têm de ser definidas para que a razão possa agir sobre elas; e nenhum homem jamais teve uma ideia definida sobre a Trindade. Não passa do abracadabra dos charlatães que se autodenominam sacerdotes de Jesus".

A outra coisa que não posso deixar de ressaltar é a confiança pretensiosa com a qual os religiosos atribuem mínimos detalhes àquilo para o que nenhum deles tem nenhuma prova — nem poderia ter. Talvez seja exatamente o fato de que não há provas que sustentem as opiniões teológicas, para qualquer lado, que alimente a hostilidade draconiana característica em relação a quem tem uma opinião ligeiramente diferente, sobretudo, como ocorre, na área específica da Trindade.

Jefferson lançou o ridículo sobre a doutrina de que, nas palavras dele, "há três Deuses", em sua crítica ao calvinismo. Mas é principalmente o ramo católico romano da cristandade que empurra seu recorrente flerte com o politeísmo para a inflação descontrolada. A Trindade é (são?) acrescida de Maria, "Rainha do Céu", que só não é deusa no nome, mas que certamente coloca o próprio Deus em segundo lugar como alvo de preces. O panteão ainda é inchado por um exército de santos, cujo poder de intercessão faz com que eles sejam, se não semideuses, úteis em seus assuntos específicos. O Fórum da Comunidade Católica nos dá uma mão e lista 5120 santos,18 junto com suas áreas de especialidade, que incluem dores abdominais, vítimas de abusos, anorexia, vendedores de armas, ferreiros, fraturas de ossos, técnicos de explosivos e problemas intestinais, para ficar só no comecinho da lista. E não podemos esquecer os Coros Angélicos, organizados em nove ordens: Serafins, Querubins, Tronos, Dominações, Virtudes, Potestades, Principados, Arcanjos e os Anjos simples, incluindo nossos melhores amigos, os sempre atentos Anjos da Guarda. O que me impressiona na mitologia católica é em parte seu kitsch de mau gosto, mas principalmente a tranquilidade com que essa gente vai criando os detalhes. É uma invenção descarada. 

O papa João Paulo II criou mais santos que todos os seus antecessores de vários séculos juntos, e tinha uma afinidade especial com a Virgem Maria. Seus impulsos politeístas ficaram dramaticamente demonstrados em 1981, quando sofreu uma tentativa de assassinato em Roma e atribuiu sua sobrevivência à intervenção de Nossa Senhora de Fátima: "Uma mão materna guiou a bala". Não dá para não se perguntar por que ela não a guiou para que se desviasse de vez dele. Ou se pode questionar se a equipe de cirurgiões que o operou por seis horas não merece pelo menos uma parte do crédito; mas talvez as mãos deles também tenham sido maternalmente guiadas. O ponto relevante é que não foi só Nossa Senhora que, na opinião do papa, guiou a bala, mas especificamente Nossa Senhora de Fátima. Presume-se que Nossa Senhora de Lourdes, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de Medjugorje, Nossa Senhora de Akita, Nossa Senhora de Zeitoun, Nossa Senhora de Garabandal e Nossa Senhora de Knock estavam ocupadas com outros afazeres naquela hora. 

Como os gregos, os romanos e os vikings lidam com essas charadas politeológicas? Vênus era só outro nome para Afrodite ou elas eram duas deusas distintas do amor? Thor, com seu martelo, era uma manifestação de Wotan ou outro deus? Quem se importa? A .vida é curta demais para nos preocuparmos com a distinção entre os muitos produtos da imaginação. Como já tratei um pouco do politeísmo para evitar a acusação de negligência, não direi mais nada sobre ele. Em nome da concisão, vou me referir a todas as divindades, sejam poli ou monoteístas, como apenas "Deus". Também tenho consciência de que o Deus de Abraão é (para usar termos leves) agressivamente masculino, e esse fato aceitarei como convenção para o uso dos pronomes. Teólogos mais sofisticados declaram que Deus não tem sexo, embora algumas teólogas feministas queiram compensar injustiças históricas designando-a mulher. Mas, afinal de contas, qual é a diferença entre uma mulher inexistente e um homem inexistente? Imagino que, no cruzamento irreal entre teologia e feminismo, a existência possa mesmo ser um atributo menos importante que o gênero. 

Sei que aqueles que criticam a religião podem ser atacados por não dar o devido crédito à fértil diversidade de tradições e visões de mundo que vêm sendo chamadas de religiosas. Obras antropologicamente informadas, de O ramo de ouro, de James Prazer, a Religion explained, de Pascal Boyer, ou In gods we trust [Acreditamos em deuses], de Scott Atran, documentam de forma fascinante a bizarra fenomenologia das superstições e dos rituais. Leia esses livros e maravilhe-se com a riqueza da credulidade humana. 

Mas não é essa a natureza deste livro. Condeno o sobrenaturalismo em todas as suas formas, e o modo mais eficaz de prosseguir é me concentrar na forma que tem a maior chance de ser familiar aos meus leitores — a forma que influencia mais ameaçadoramente todas as nossas sociedades. É provável que a maioria dos meus leitores tenha sido criada em uma ou outra das três "grandes" religiões monoteístas da atualidade (quatro, se se contar o mormonismo), todas as quais remontam ao patriarca mitológico Abraão, e será conveniente manter essa família de tradições em mente ao longo do restante do livro. 

Este é um momento tão bom quanto qualquer outro para antecipar uma réplica provável ao livro, que se não aparecesse aqui surgiria, com certeza absoluta, numa resenha: "Eu também não acredito no Deus em que Dawkins não acredita. Não acredito num senhor de compridas barbas brancas que fica no céu". 

Aquele senhor é um elemento irrelevante de distração, e suas barbas são tão tediosas quanto compridas. Na verdade, a distração é pior que irrelevante. Sua bobice é calculada para desviar a atenção do fato de que aquilo no que o autor da crítica realmente acredita não é menos bobo. Sei que você não acredita num senhor barbado sentado numa nuvem, então não percamos mais tempo com isso. Não estou atacando nenhuma versão específica de Deus ou deuses. Estou atacando Deus, todos os deuses, toda e qualquer coisa que seja sobrenatural, que já foi e que ainda será inventada.

MONOTEÍSMO 

O grande e indizível mal no cerne de nossa cultura é o monoteísmo. A partir de um texto bárbaro da Idade do Bronze, conhecido como Antigo Testamento, evoluíram três religiões anti-humanas — o judaísmo, o cristianismo e o islã. São religiões de deus-no-céu. São, literalmente, patriarcais — Deus é o Pai Onipotente —, daí o desprezo às mulheres por 2 mil anos nos países afligidos pelo deus-no-céu e seus enviados masculinos terrestres.

 Gore Vidal 


A mais antiga das três religiões abraâmicas, e a clara ancestral das outras duas, é o judaísmo: originalmente um culto tribal a um Deus único e desagradável, que tinha uma obsessão mórbida por restrições sexuais, pelo cheiro de carne queimada, por sua superioridade em relação aos deuses rivais e pelo exclusivismo de sua tribo desértica escolhida. Durante a ocupação romana da Palestina, o cristianismo foi fundado por Paulo de Tarso como uma seita do judaísmo menos intransigentemente monoteísta e menos exclusivista, que olhou além dos judeus e para o resto do mundo. Vários séculos depois, Maomé e seus seguidores retomaram o monoteísmo inflexível do original judaico, mas não seu exclusivismo, e fundaram o islamismo a partir de um novo livro sagrado, o Corão, ou Qur'an, acrescentando uma forte ideologia de conquista militar à disseminação da fé. O cristianismo também foi disseminado pela espada, primeiro nas mãos romanas, quando o imperador Constantino o elevou de culto excêntrico a religião oficial, depois nas dos cruzados e depois nas dos conquistadores e outros invasores e colonizadores europeus, com acompanhamento missionário. Para a maior parte de meus propósitos, as três religiões abraâmicas podem ser tratadas como indistinguíveis. Exceto quando eu declarar o contrário, terei principalmente o cristianismo em mente, mas apenas porque por acaso essa é a versão com que tenho mais familiaridade. E não me preocuparei nem um pouco com outras religiões como o budismo e o confucionismo. Na verdade, o fato de elas serem tratadas não como religiões mas como sistemas éticos ou filosofias de vida quer dizer alguma coisa.

A definição simples da Hipótese de que Deus Existe com que comecei tem de ser significativamente engordada para acomodar o Deus abraâmico. Ele não criou apenas o universo; ele é um Deus pessoal que vive dentro dele, ou talvez fora dele (o que quer que isso signifique), possuidor das qualidades humanas desagradáveis às quais aludi. 

Qualidades pessoais, sejam agradáveis ou desagradáveis, não têm espaço no deus deísta de Voltaire e Thomas Paine. Comparado ao delinquente psicótico do Antigo Testamento, o Deus deísta do Iluminismo setecentista é um ser mais grandioso: respeitável por sua criação cósmica, altivamente despreocupado com as questões humanas, sublimemente indiferente a nossos pensamentos e esperanças particulares, alheio a nossos pecados ou penitências resmungadas. O Deus deísta é um físico que encerra toda a física, o alfa e ômega dos matemáticos, a apoteose dos projetistas; um hiperengenheiro que estabeleceu as leis e as constantes do universo, ajustou-as com uma precisão e uma antevisão extraordinárias, detonou o que hoje chamamos de big bang, aposentou-se e ninguém nunca mais soube dele. 

Em épocas de fé mais exacerbada, os deístas foram considerados iguais aos ateus. Susan Jacoby, em Freethinkers: A history of American secularism [Livrespensadores: uma história do secula-rismo americano], lista uma seleção dos epítetos lançados contra o pobre Tom Paine: "Judas, réptil, porco, cachorro louco, bêbado, nefasto, arquibesta, bruto, mentiroso e, é claro, infiel". Paine morreu abandonado por ex-amigos políticos envergonhados com suas opiniões anticristãs (com a honorável exceção de Jefferson). Hoje em dia, a situação mudou tanto que é mais provável que os deístas sejam contrastados com os ateus e agregados aos teístas. Afinal, eles realmente acreditam numa inteligência suprema que criou o universo.

SECULARISMO, OS PAIS FUNDADORES E A RELIGIÃO DOS ESTADOS UNIDOS 

É tradição assumir que os Pais Fundadores da República americana eram deístas. Sem dúvida muitos eram, embora já tenha sido alegada a possibilidade de que os maiores deles tenham sido ateus. O que eles escreveram sobre religião em sua época não me deixa dúvidas de que a maioria teria sido ateia em nossos tempos. Mas, quaisquer que tenham sido as opiniões religiosas de cada um deles para aquela época, a única coisa que eles eram coletivamente é secularistas, tópico para o qual me volto neste trecho, começando com uma citação — talvez surpreendente — do senador Barry Goldwater em 1981, mostrando claramente a determinação com que o presidenciável e herói do conservadorismo americano sustentava a tradição laica da fundação da República: 

Em nenhuma outra posição as pessoas são tão irremovíveis como em suas crenças religiosas. Não se pode arregimentar aliado mais poderoso num debate do que Jesus Cristo, ou Deus, ou Alá, ou como quer que se denomine esse ser superior. Mas, como toda arma poderosa, o uso do nome de Deus para benefício próprio deve ser usado criteriosamente. As facções religiosas que estão crescendo em toda a nossa nação não estão usando seu trunfo religioso com sabedoria. Estão tentando obrigar os líderes do governo a seguir cem por cento de sua posição. Se você discorda desses grupos religiosos numa questão moral específica, eles reclamam e o ameaçam com a perda de dinheiro, a perda de votos ou ambas. Estou sinceramente farto de pregadores políticos em todo este país me dizendo que, como cidadão, se eu quiser ser uma pessoa de moral, tenho de acreditar em A, B, C e D. Quem eles pensam que são? E de onde eles tiram a ideia de que têm o direito de impor suas crenças religiosas a mim? E fico ainda mais furioso porque sou um legislador que é obrigado a suportar as ameaças de todo grupo religioso que acha que tem algum direito divino de controlar meu voto em todas as votações do Senado. Hoje os advirto: vou combatê-los sem cessar se eles tentarem impor suas convicções morais a todos os americanos em nome do conservadorismo.19 

 As opiniões religiosas dos Pais Fundadores são objeto de grande interesse dos propagandistas da direita americana atual, ansiosa por empurrar sua versão da história. Contrariamente à visão deles, o fato de que os Estados Unidos não foram fundados como uma nação cristã foi bem cedo declarado nos termos do tratado de Trípoli, elaborado em 1796, durante a presidência de George Washington, e assinado por John Adams em 1797:

Como o governo dos Estados Unidos da América não é, em nenhum sentido, fundamentado na religião cristã; como não tem em si nenhum caráter de inimizade contra as leis, a religião ou a tranquilidade dos muçulmanos; e como os ditos estados jamais entraram em guerra nem executaram nenhum ato de hostilidade contra nenhuma nação maometana, os lados declaram que nenhum pretexto derivado de opiniões religiosas jamais deverá causar a interrupção da harmonia existente entre os dois países.

 As palavras que abrem essa citação hoje causariam furor nas autoridades de Washington. Mas Ed Buckner demonstrou de maneira convincente que elas não causaram discórdia na época, 20 nem entre políticos nem no público.

Muitas vezes já se ressaltou o paradoxo de que os Estados Unidos foram fundados com base no secularismo e hoje são o país mais religioso da cristandade, enquanto a Inglaterra, com uma Igreja estabelecida e chefiada por seu monarca constitucional, está entre os menos religiosos. Constantemente me perguntam por que isso acontece, e eu não sei a resposta. Imagino ser possível que a Inglaterra tenha ficado cansada da religião depois do seu pavoroso histórico de violência entre crenças, com protestantes e católicos obtendo alternadamente a supremacia e sistematicamente assassinando o outro grupo. Outra sugestão emana da observação de que os Estados Unidos são um país de imigrantes. Um colega me aponta que os imigrantes, arrancados da estabilidade e do conforto de sua família na Europa, podem muito bem ter adotado a Igreja como uma espécie de parente substituto em terra estrangeira. É uma ideia interessante, merecedora de mais pesquisas. Não há dúvida de que muitos americanos encaram sua igreja local como uma unidade importante de identidade, que tem, sim, alguns dos atributos de família.

Outra hipótese é que a religiosidade dos Estados Unidos provém, paradoxalmente, do secularismo de sua Constituição. Precisamente porque os Estados Unidos são legalmente laicos, a religião se transformou num empreendimento liberado. Igrejas rivais competem por congregações — e pelo gordo dízimo que elas trazem consigo — e a concorrência é marcada por todas as técnicas agressivas de venda do mercado. O que funciona para o sabão em pó funciona para Deus, e o resultado é algo que se aproxima de uma mania de religião nas classes menos instruídas. Na Inglaterra, por outro lado, a religião, sob a égide da Igreja estabelecida, transformou-se em pouco mais que um passatempo social agradável, quase não mais reconhecível como religião. Essa tradição inglesa é bem descrita por Giles Fraser, um sacerdote anglicano que também é monitor de filosofia em Oxford, em um texto publicado no The Guardian. O subtítulo do artigo de Fraser é "O estabelecimento da Igreja da Inglaterra tirou Deus da religião, mas há riscos numa abordagem mais vigorosa da fé": 

Houve um tempo em que o vigário da região era figurinha carimbada da dramatis personae inglesa. Aquele homem excêntrico e gentil, apreciador de chá, com seus sapatos lustrosos e jeito bondoso, representava um tipo de religião que não deixava desconfortáveis as pessoas que não eram religiosas. Ele não teria um chilique existencial nem o colocaria contra a parede perguntando se você já foi salvo, menos ainda lançaria cruzadas desde o altar ou plantaria bombas de beira de estrada em nome de algum poder maior. 21

(Ecos de "Nosso Padre", de Betjeman, que citei no início do capítulo 1.) Fraser continua e diz que "o vigário simpático do campo na prática imunizou boa parte dos ingleses contra o cristianismo". Ele encerra seu artigo lamentando a tendência mais recente da Igreja da Inglaterra de levar de novo a religião a sério, e sua última frase é uma advertência: "O temor é que podemos ter libertado o gênio do fanatismo religioso da lâmpada do establishment em que ele estava adormecido havia séculos".

O gênio do fanatismo religioso está à solta nos Estados Unidos atuais, e os Pais Fundadores teriam ficado horrorizados. Seja ou não correto abraçar o paradoxo e culpar a Constituição laica que eles elaboraram, os fundadores eram certamente secularis-tas que acreditavam na separação entre religião e política, e isso é o bastante para colocá-los firmemente do lado daqueles que são contra, por exemplo, a exibição ostentatória dos Dez Mandamentos em lugares públicos estatais. Mas é tentador especular que pelo menos alguns entre os fundadores tenham ido além do deísmo. Quem sabe eles tenham sido agnósticos ou até absolutamente ateus? A declaração de Jefferson a seguir é indistinguível do que hoje chamaríamos de agnosticismo:

Falar de existências imateriais é falar de nadas. Dizer que a alma, os anjos e deus são imateriais é dizer que eles são nadas, ou que não existe deus, nem anjos, nem alma. Não consigo pensar de outra maneira [...] sem mergulhar no abismo insondável dos sonhos e fantasmas. Satisfaço-me e fico suficientemente ocupado com as coisas que existem, sem me atormentar com as coisas que podem até existir, mas das quais não tenho provas.

Christopher Hitchens, em sua biografia Thomas Jefferson: Author of America, acha provável que Jefferson tenha sido ateu, mesmo naquela época, quando isso era bem mais difícil:

Quanto a se ele era ateu, temos de manter nossas reservas, no mínimo pela prudência que ele foi obrigado a observar durante sua vida política. Mas, como ele escreveu para o sobrinho Peter Carr, já em 1787, não se deve se afastar da dúvida por medo de suas conseqüências. "Se ela terminar na crença de que Deus não existe, encontrarás incentivos à virtude no conforto e no prazer que sentes nesse exercício, e no amor dos outros que te atingirá."

Considero emocionante o conselho de Jefferson, ainda na carta a Peter Carr:

Joga fora todos os medos de preconceitos servis, sob os quais as mentes dos fracos se curvam. Coloca a razão firmemente no trono dela, e apela ao tribunal dela para todos os fatos, todas as opiniões. Questiona com coragem até a existência de Deus; porque, se houver um, ele deve aprovar mais o respeito à razão que o medo cego.

 Declarações de Jefferson, como a de que "o cristianismo é o sistema mais pervertido que já brilhou sobre o homem", são compatíveis com o deísmo, mas também com o ateísmo. Assim como o anticlericalismo robusto de James Madison: "Por quase quinze séculos o establishment legal do cristianismo esteve em teste. Quais foram seus frutos? Mais ou menos, em todos os lugares, orgulho e indolência no clero; ignorância e servilismo nos leigos; em ambos, superstição, intolerância e perseguição". Pode-se dizer o mesmo sobre a declaração "faróis são mais úteis que igrejas", de Benjamin Franklin. John Adams parece ter sido um deísta do tipo fortemente anticlerical ("As terríveis engrenagens das assembleias eclesiásticas [...]") e foi autor de ótimas tiradas contra o cristianismo em particular: "Pelo que entendo da religião cristã, ela foi, e é, uma revelação. Mas como foi possível que milhões de fábulas, histórias, lendas tenham se misturado tanto à revelação judaica quanto à cristã e as transformado na religião mais sangrenta que já existiu?". E, em outra carta, desta vez para Jefferson, ele diz: "Quase estremeço só de pensar em aludir ao exemplo mais fatal dos abusos de sofrimento que a história da humanidade já preservou — a Cruz. Pense nas calamidades que essa máquina de sofrimento já produziu!". 

Fossem Jefferson e seus colegas teístas, deístas, agnósticos ou ateus, eles eram também secularistas apaixonados, que acreditavam que as opiniões religiosas de um presidente, ou sua falta, só interessavam a ele mesmo. Todos os Pais Fundadores, quaisquer que fossem suas crenças religiosas particulares, teriam ficado perplexos ao ler a reportagem do jornalista Robert Sherman sobre a resposta que George Bush pai deu quando Sherman perguntou se ele reconhecia a igualdade de cidadania e patriotismo dos americanos ateus: "Não, não sei se ateus deviam ser considerados cidadãos, nem se deveriam ser considerados patriotas. Esta é uma nação regida por Deus".22 Pressupondo que o relato de Sherman esteja correto (infelizmente ele não gravou a declaração, e nenhum outro jornal publicou a reportagem na época), faça a experiência de substituir "ateus" por "judeus" ou "muçulmanos" ou "negros". Isso dá uma ideia do preconceito e da discriminação que os ateus americanos têm de enfrentar hoje em dia. O artigo "Confessions of a lonely atheist" ["Confissões de uma ateia solitária"], de Natalie Angier, no The New York Times, é uma descrição triste e tocante de sua sensação de isolamento por ser ateia nos Estados Unidos atuais.23 Mas o isolamento dos ateus americanos é uma ilusão, assiduamente cultivada pelo preconceito. Os ateus americanos são mais numerosos do que a maioria das pessoas imagina. Como disse no prefácio, eles superam de longe em número o de judeus religiosos, embora o lobby judeu seja conhecido por sua enorme influência em Washington. O que os ateus americanos poderiam conseguir se se organizassem adequadamente?*

* Tom Flynn, editor da Free Inquiry, fala bem e com contundência ("Secularisrm’s breakthrough moment" ["O momento revolucionário do secularismo"], Free Inquiry, 26/3/2006, pp. 16-7): "Se os ateus são solitários e oprimidos, a culpa é só nossa. Numericamente, somos fortes. Vamos começar a exercer nosso peso".

David Mills, em seu admirável livro Atheist universe, conta uma história que você chamaria de uma caricatura pouco realista de intolerância policial, se fosse ficção. Um curandeiro cristão fazia uma "Cruzada dos Milagres" que chegava à cidade de Mills uma vez por ano. Entre outras coisas, o curandeiro incentivava os diabéticos a jogar sua insulina fora, e os pacientes de câncer a desistir da quimioterapia e a rezar por um milagre. Com bons motivos, Mills decidiu organizar uma manifestação pacífica para advertir as pessoas. Mas ele cometeu o erro de contar sobre suas intenções à polícia e pedir proteção policial para possíveis ataques dos defensores do curandeiro. O primeiro policial com quem ele falou perguntou: "Você vai protestar por ele ou contra ele?". Quando Mills respondeu "contra ele", o policial disse que pretendia ir ele mesmo ao ato e que planejava cuspir no rosto de Mills quando passasse diante da manifestação.

Mills resolveu tentar a sorte com um segundo policial, que disse que, se algum defensor do curandeiro atacasse Mills com violência, Mills seria preso por estar "tentando interferir na obra de Deus". Mills foi para casa e tentou telefonar para a delegacia, na esperança de encontrar um pouco mais de solidariedade num nível superior. Finalmente conseguiu falar com um sargento, que disse: "Vá para o inferno, amigo. Nenhum policial quer proteger um ateu maldito. Espero que alguém o acerte direitinho". Parece que naquela delegacia estavam em falta o leite da bondade humana e o senso do dever. Mills conta que falou com sete ou oito policiais naquele dia. Nenhum quis ajudar, e a maioria lhe fez ameaças diretas de violência.

São muitas as histórias de preconceitos contra ateus, mas Margaret Downey, fundadora da Rede de Apoio Antidiscrimina-ção (Anti-Discrimination Support Network — ADSN), mantém registros sistemáticos de casos como esse, através da Freethought Society of Greater Philadelphia.24 Seu banco de dados de incidentes, divididos nas categorias comunidade, escola, local de trabalho, mídia, família e governo, inclui exemplos de perseguição, perda de emprego, rejeição familiar e até assassinato.25 As provas documentadas por Downey do ódio e da incompreensão dirigidos aos ateus tornam mais fácil crer que, de fato, é virtualmente impossível para um ateu honesto ganhar uma eleição pública nos Estados Unidos. Há 435 membros na Câmara dos Deputados e cem no

Senado. Presumindo que a maioria desses 535 indivíduos seja uma amostra culta da população, estatisticamente é quase inevitável que um número significativo deles seja de ateus. Eles devem ter mentido ou escondido sua verdadeira convicção para ser eleitos. Quem pode culpá-los, considerando o eleitorado que tiveram de convencer? É consenso universal que admitir o ateísmo seria um suicídio político instantâneo para qualquer presidenciável.

Esses fatos do clima político atual nos Estados Unidos, e tudo o que eles implicam, teriam horrorizado Jefferson, Washington, Madison, Adams e todos os seus amigos. Tenham sido eles ateus, agnósticos, deístas ou cristãos, teriam recuado alarmados diante dos teocratas da Washington do início do século XXI. Teriam se apoiado nos fundadores secularistas da índia pós-colonial, especialmente o religioso Gandhi ("Sou hindu, sou muçulmano, sou judeu, sou cristão, sou budista!") e o ateu Nehru:

O espetáculo daquilo que é chamado de religião, ou qualquer tipo de religião organizada, na índia ou em qualquer outro lugar, enche-me .de horror e já o condenei com frequência, no desejo de eliminá-lo. Quase sempre ele parece significar crença e reação cegas, dogma e intolerância, superstição, exploração e a preservação de direitos adquiridos.

A definição de Nehru para a índia laica sonhada por Gandhi (se esse sonho tivesse sido realizado, em vez da partição do país em meio a uma canificina entre fés) poderia quase que ter sido escrita pelo próprio Jefferson:

Falamos de uma índia laica [...] Algumas pessoas acham que isso significa algo contrário à religião. Obviamente isso não está cor-reto. O que isso significa é que é um Estado que honre todas as crenças igualmente e que lhes dê oportunidades iguais; a índia tem um longo histórico de tolerância religiosa [...] Num país como a índia, que tem muitas crenças e religiões, não é possível construir um nacionalismo real senão com base no secularismo.26

O Deus deísta com frequência associado aos Pais Fundadores com certeza já é bem melhorado se comparado ao monstro da Bíblia. Infelizmente, não é muito mais provável que ele exista, ou tenha existido. Em qualquer das formas de Deus, a Hipótese de que Deus Existe é dispensável.* A Hipótese de que Deus

* "Majestade, não preciso dessa hipótese", disse Laplace quando Napoleão questionou como o famoso matemático havia conseguido escrever seu livro sem mencionar Deus.

existe também está muito próxima de ser descartada pelas leis da probabilidade. Tratarei disso no capítulo 4, depois de falar sobre as supostas provas da existência de Deus no capítulo 3. Enquanto isso, volto-me para o agnosticismo, e à ideia equivocada de que a existência ou a inexistência de Deus é uma dúvida intocável, para sempre fora do alcance da ciência.

A POBREZA DO AGNOSTICISMO 

O atleta de Cristo que nos dava sermões do altar da capela da minha escola admitiu ter um respeito secreto pelos ateus. Eles pelo menos tinham a coragem de declarar suas convicções equivocadas. O que ele não suportava eram os agnósticos: covardes em-cima-do-muro, sem-sal-e-sem-açúcar. Em parte ele tinha razão, mas pelo motivo totalmente errado. Na mesma linha, de acordo com Quentin de Ia Bédoyère, o historiador católico Hugh Ross Williamson "respeitava o crente religioso comprometido e também o ateu comprometido. Ele reservava seu desprezo para as mediocridades insossas que circulavam no meio".27 

Não há nada de errado em ser agnóstico nos casos em que não há provas nem para um lado nem para o outro. É a posição mais razoável. Carl Sagan tinha orgulho de ser agnóstico quando lhe perguntavam se havia vida em outros lugares do universo. Quando ele se recusou a se comprometer, seu interlocutor o pressionou pedindo sua opinião "por instinto", e ele respondeu, de forma imortal: "Mas eu tento não pensar pelo instinto. Não há problema nenhum em guardar suas reservas até que surjam provas".28 A questão da vida extraterrestre está em aberto. Podem-se apresentar bons argumentos para os dois lados, e não temos provas para nada mais que apenas esboçar as probabilidades de um ou outro lado. Esse tipo de agnosticismo é a posição apropriada para muitas dúvidas científicas, como sobre o que causou a extinção do fim do Permiano, a maior extinção em massa da história fóssil. Pode ter sido o impacto de um meteorito, como aquele que, mais provavelmente, de acordo com as evidências atuais, causou a extinção dos dinossauros mais tarde. Mas pode ter sido qualquer uma entre várias outras  causas possíveis, ou uma combinação delas. O agnosticismo sobre as causas dessas duas extinções em massa é razoável. E quanto à dúvida sobre Deus? Deveríamos ser agnósticos também em relação a ele? Muitas pessoas já disseram que sim, definitivamente, com frequência com um ar de convicção que beira o excesso. Elas estão certas?

Vou começar distinguindo dois tipos de agnosticismo. O Agnosticismo Temporário na Prática, ou ATP, é o legítimo em-cima-do-muro, quando realmente existe uma resposta definitiva, para um lado ou para o outro, mas para a qual ainda não temos evidências (ou não compreendemos a evidência, ou não tivemos tempo de ler a evidência etc.)- O ATP seria uma posição razoável em relação à extinção permiana. Há uma verdade lá fora, e um dia esperamos conhecê-la, embora no momento não a conheçamos.

Mas há também um tipo de em-cima-do-muro profundamente inescapável, que chamarei de APP (Agnosticismo Permanente por Princípio). O estilo APP de agnosticismo é adequado para dúvidas que jamais podem ser respondidas, não importa quantas provas coletemos, já que a própria ideia de prova não se aplica. A dúvida existe num plano diferente, ou numa dimensão diferente, além da zona que as provas podem alcançar. Um exemplo pode ser a velha charada filosófica: você vê o vermelho do mesmo jeito que eu? Quem sabe seu vermelho seja o meu verde, ou alguma coisa completamente diferente de qualquer cor que eu possa imaginar. Os filósofos citam essa como uma dúvida que jamais pode ser respondida, não importam quantas evidências possam um dia ficar disponíveis. E alguns cientistas e outros intelectuais estão convencidos — convencidos demais, na minha opinião — de que a existência de Deus pertence à categoria de APP para sempre inacessível. A partir daí, como veremos, eles muitas vezes fazem a dedução pouco lógica de que a hipótese da existência de Deus e a hipótese de sua inexistência têm exatamente a mesma probabilidade de estar certas. A opinião que defenderei é bem diferente: o agnosticismo sobre a existência de Deus pertence firmemente à categoria temporária, ou ATP. Ou ele existe ou não existe. É uma pergunta científica; um dia talvez conheçamos a resposta, e enquanto isso podemos dizer coisas bem categóricas sobre as probabilidades.

Na história das idéias, há exemplos de dúvidas que foram respondidas e que até então tinham sido consideradas para sempre fora do alcance da ciência. Em 1835, o consagrado filósofo francês Auguste Comte escreveu, sobre as estrelas: "Jamais poderemos estudar, por nenhum método, sua composição química ou sua estrutura mineralógica". Mas antes mesmo de Comte cunhar essa frase Fraunhofer tinha começado a usar seu espectroscópio para analisar a composição química do Sol. Hoje os espectroscopistas destroem diariamente o agnosticismo de Comte com suas análises a longa distância da composição química exata de estrelas distantes.29 Fosse qual fosse o status exato do agnosticismo astronômico de Comte, essa história sugere, no mínimo, que devemos hesitar antes de proclamar alto demais a veracidade eterna do agnosticismo. Ainda assim, em se tratando de Deus, boa parte dos filósofos e cientistas faz isso sem pestanejar, a começar pelo próprio inventor da palavra, T. H. Huxley.30

Huxley explicou seu novo termo ao rebater um ataque pessoal provocado pela palavra. O diretor do King's College de Londres, o reverendo dr. Wace, havia despejado desdém sobre o "agnosticismo covarde" de Huxley:

Ele pode preferir se autodenominar agnóstico; mas seu nome real é bem mais antigo — ele é um infiel; quer dizer, um descrente. A palavra infiel talvez carregue em si um significado desagradável. Talvez ela devesse mesmo. É, e deveria ser, uma coisa desagradável para um homem ter de dizer simplesmente que não acredita em Jesus Cristo.

Huxley não era um homem que deixasse passar esse tipo de provocação, e sua resposta, em 1889, foi tão afiada quanto poderíamos esperar (embora jamais se afastando do escrúpulo das boas maneiras: como o buldogue de Darwin, seus dentes foram afiados pela ironia polida vitoriana). Depois de ter dado ao dr. Wace sua merecida reprimenda e eliminado os vestígios, Huxley voltou à palavra "agnóstico" e explicou como chegou até ela. Os outros, afirmou ele,

tinham bastante certeza de ter alcançado uma certa "gnose" — a de que haviam, de forma mais ou menos bem-sucedida, solucionado o problema da existência; enquanto eu tinha bastante certeza de não tê-la alcançado, e tinha uma convicção bem forte de que o problema era insolúvel. E, com Hume e Kant ao meu lado, não me considerei presunçoso por me apegar àquela opinião [...] Então pensei e inventei o que considerei o título apropriado de "agnóstico".

Mais adiante em seu discurso, Huxley explicou que os agnósticos não têm credo, nem um credo negativo.

O agnosticismo, na verdade, não é um credo, mas um método, a essência do que está na aplicação rigorosa de um único princípio [...] De forma categórica, o princípio pode ser expresso assim: Em questões do intelecto, não finja que as conclusões estão correias quando elas não foram demonstradas ou não são demonstráveis. É isso que assumo como a fé agnóstica, que, se for mantida inteira e impoluta por um homem, ele não terá vergonha de encarar o universo, independentemente do que o futuro possa lhe reservar.

Para um cientista essas são palavras nobres, e não se critica T. H. Huxley levianamente. Mas Huxley, em sua concentração na absoluta impossibilidade de comprovar ou contraprovar Deus, parece ter ignorado a nuance da probabilidade. O fato de que não se pode nem comprovar nem contraprovar a existência de alguma coisa não coloca a existência e a inexistência em pé de igualdade. Não acho que Huxley teria discordado, e suspeito que, quando ele parecia fazê-lo, estava recuando para fazer uma concessão em um ponto, na intenção de reforçar outro. Todos nós já fizemos isso alguma vez na vida.

Ao contrário de Huxley, sugerirei que a existência de Deus é uma hipótese científica como qualquer outra. Mesmo sendo difícil de pôr à prova na prática, ela pertence à mesma categoria de ATP,ou agnosticismo temporário, quanto as controvérsias sobre as extinções do Permiano e do Cretáceo. A existência ou inexistência de Deus é um fato científico sobre o universo, passível de ser descoberto por princípio, se não na prática. Se ele existisse e resolves
se revelar esse fato, o próprio Deus poderia argumentar, inequivocamente, a seu favor. E, mesmo que a existência de Deus jamais seja comprovada nem descartada com certeza, as evidências existentes e o raciocínio podem criar uma estimativa de probabilidade que se afaste dos 50%.

Levemos, então, a sério a idéia do espectro de probabilidades e coloquemos ao longo dele os juízos humanos sobre a existência de Deus, entre dois extremos de certezas opostas. O espectro é contínuo, mas pode ser representado por sete marcos:

1 Teísta convicto. Probabilidade de 100% de que Deus existe. Nas palavras de C. G. Jung, "Eu não acredito, eu sei". 

2 Probabilidade muito alta, mas que não chega aos 100%. Teísta de facto. "Não tenho como saber com certeza, mas acredito fortemente em Deus e levo minha vida na pressuposição de que ele está lá." 

3 Maior que 50%, mas não muito alta. Tecnicamente agnóstico, mas com uma tendência ao teísmo. "Tenho muitas incertezas, mas estou inclinado a acreditar em Deus." 

4 Exatamente 50%. Agnóstico completamente imparcial. "A existência e a inexistência de Deus têm probabilidades exatamente iguais." 

5 Inferior a 50%, mas não muito baixa. Tecnicamente agnóstico, mas com uma tendência ao ateísmo. "Não sei se Deus existe, mas estou inclinado a não acreditar." 

6 Probabilidade muito baixa, mas que não chega a zero. Ateu de facto. "Não tenho como saber com certeza, mas acho que Deus é muito improvável e levo minha vida na pressuposição de que ele não está lá." 

7 Ateu convicto. "Sei que Deus não existe, com a mesma convicção com que Jung 'sabe' que ele existe."

Eu ficaria surpreso de encontrar muita gente na categoria 7, mas a incluo em nome da simetria com a categoria l, que é bastante populosa. É da natureza da fé que alguém seja capaz, como Jung, de ter uma crença sem nenhum motivo adequado para tal (Jung também acreditava que alguns livros específicos de sua estante explodiam com um grande estrondo). Os ateus não têm fé; e a razão, sozinha, não tem como levar alguém à convicção plena de que alguma coisa definitivamente não existe. Daí por que a categoria 7, na prática, é muito mais deserta que seu oposto, a categoria l, que tem tantos habitantes devotados. Coloco-me na categoria 6, mas tendendo para a 7 — sou agnóstico na mesma proporção em que sou agnóstico a respeito de fadas escondidas no jardim.

O espectro de probabilidades funciona bem para o ATP. É superficialmente tentador encaixar o APP (Agnosticismo Permanente por Princípio) no meio do espectro, com uma probabilidade de 50% da existência de Deus, mas isso não é correto. Os agnósticos APP declaram que não se pode dizer nada, nem para um lado nem para o outro, em relação à dúvida sobre a existência de Deus. A questão, para os agnósticos APP, é irrespondível por princípio, e eles devem se recusar terminantemente a se encaixar em qualquer ponto do espectro das probabilidades. O fato de que não tenho como saber se seu vermelho é a mesma coisa que meu verde não faz com que a probabilidade seja de 50%. A proposição que se pode oferecer é sem sentido demais para ser agraciada com uma probabilidade. Mesmo assim, é um erro comum, que encontraremos novamente, assumir, a partir da premissa de que a dúvida sobre a existência de Deus é um princípio irrespondível, que sua existência ou inexistência têm probabilidades iguais. 

Outra forma de expressar esse erro é em termos do ônus da prova, e nesse formato ele é demonstrado divertidamente pela parábola de Bertrand Russell sobre o bule celeste.31

Muitos ortodoxos falam como se fosse obrigação dos céticos contraprovar dogmas consagrados, e não dos dogmáticos comprová-los. Isso é, claro, um equívoco. Se eu sugerisse que entre a Terra e Marte há um bule de chá chinês rodando em torno do Sol numa órbita elíptica, ninguém seria capaz de contraprovar minha afirmação, desde que eu tenha tido o cuidado de acrescentar que o bule é pequeno demais para ser revelado até pelos nossos telescópios mais potentes. Mas, se eu prosseguisse dizendo que, como minha afirmação não pode ser contraprovada, é uma presunção intolerável por parte da razão humana duvidar dela, imediatamente achariam que eu estava falando maluquices. Se, porém, a existência do bule tivesse sido declarada em livros antigos, ensinada como a verdade sagrada todos os domingos e instilada na cabeça das crianças na escola, a hesitação em acreditar em sua existência se tornaria um traço de excentricidade e garantiria ao questionador o atendimento por psiquiatras numa era esclarecida ou por um inquisidor em eras anteriores.

Não perderíamos tempo falando disso porque ninguém, que eu saiba, tem adoração por bules;* mas, sob pressão, não hesitaríamos em declarar nossa forte crença de que positivamente não existe um bule em órbita. Mesmo assim, em termos estritos, seríamos todos agnósticos ao bule: não podemos provar, com certeza, que não existe um bule celeste. Na prática, afastamo-nos do agnosticismo do bule na direção do a-buleísmo. 

* Talvez eu tenha falado cedo demais. O The Independent on Sunday de 5 de junho de 2005 trouxe o seguinte item: "Autoridades malaias dizem que seita religiosa que construiu bule sagrado do tamanho de uma casa infringiu normas de planejamento". Veja também a BBC News em http://news.bbc.co.uk/2/hi/asia-pacinc/4692039.stm.

Um amigo, que foi educado como judeu e ainda observa o Shabat e outros costumes judaicos em nome da lealdade à sua herança histórica, descreve-se como um "agnóstico à fadinha do dente". Ele acha que Deus não é mais provável que a fadinha do dente. Não se pode contraprovar nenhuma das duas hipóteses, e ambas são igualmente prováveis. Ele é ateu exatamente na mesma enorme proporção que é um a-fadinheu. E agnóstico em relação aos dois, exatamente na mesma pequena proporção.

O bule de Russell representa, é claro, um número infinito de coisas cuja existência é concebível e não pode ser descartada com provas. O grande advogado americano Clarence Darrow disse: "Não acredito em Deus, pois não acredito na Mamãe Ganso".** O jornalista Andrew Mueller acha que se comprometer com qualquer religião específica "não é mais nem menos estranho que optar por acreditar que o mundo tem a forma de um losango e que é carregado pelo cosmos nas pinças de duas enormes lagostas verdes chamadas Esmeralda e Keith".32 Um favorito dos filósofos é o unicórnio invisível, intangível e inaudível cuja existência as crianças tentam todo ano negar com provas no Camp Quest.* Uma divindade popular na internet hoje em dia — e tão impossível de ser contraprovada quanto Javé ou qualquer outra — é o Monstro de Espaguete Voador, que muitos afirmam tê-los tocado com seus apêndices de massa.33 Adorei saber que o Evangelho do Monstro de Espaguete Voador foi publicado em livro,34 tendo sido muito aclamado. Não o li, mas quem precisa ler um evangelho quando simplesmente se sabe que é verdade? Aliás, tinha que acontecer — um Grande Cisma já ocorreu, resultando na Igreja Reformada do Monstro de Espaguete Voador.35 

** Mamãe Ganso (Mother Goose): referência à fictícia autora de uma série muito popular de contos infantis publicada em Londres no século XVIII. (N. T.) 

* O Camp Qüest eleva a instituição americana do acampamento de verão a uma nova e admirável dimensão. Diferentemente de outros acampamentos de verão que seguem estilo religioso ou do escotismo, o Camp Quest, fundado por Edwin e Helen Kagin em Kentucky, é administrado por humanistas laicos, e as crianças são incentivadas a pensar por si sós, com ceticismo, enquanto se divertem com todas as atividades ao ar livre tradicionais (www.campquest.org). Outros Camp Quests com um ethos semelhante surgiram no Tennessee, em Minnesota, em Michigan, em Ohio e no Canadá.

O ponto principal desses exemplos extremos é que eles são todos impossíveis de ser contraprovados, embora ninguém ache que a hipótese da existência deles esteja no mesmo nível de probabilidade que a hipótese de sua inexistência. A tese de Russell é de que o ônus da prova recai sobre os crentes, não sobre os incrédulos. A minha é de que a probabilidade a favor do bule (monstro de espaguete, Esmeralda e Keith, unicórnio etc.) não é igual à probabilidade contra ele.

O fato de que bules em órbita e fadinhas do dente não podem ter sua inexistência comprovada não é considerado, por nenhuma pessoa racional, o tipo de fato que solucione um debate interessante. Ninguém se sente obrigado a comprovar a inexistência dos milhões de coisas fantásticas que uma imaginação fértil e brincalhona é capaz de sonhar. Eu me divirto com a estratégia, quando me perguntam se sou ateu, de lembrar que o autor da pergunta também é ateu no que diz respeito a Zeus, Apoio, Amon Ra, Mithra, Baal, Thor, Wotan, o Bezerro de Ouro e o Monstro de Espaguete Voador. Eu só fui um deus além.

Todos nós nos sentimos no direito de manifestar um ceticismo extremo, chegando ao ponto da descrença pura e simples — exceto pelo fato de que, no caso de unicórnios, fadinhas do dente e dos deuses da Grécia, de Roma, do Egito e dos vikings, não há necessidade (hoje em dia) de se preocupar com isso. No caso do Deus abraâmico, porém, há a necessidade de se preocupar, porque uma proporção significativa das pessoas com quem dividimos o planeta acredita mesmo, convictamente, em sua existência. O bule de Russell demonstra que a onipresença da crença em Deus, se comparada à crença em bules celestes, na teoria não inverte o ônus da prova, embora pareça invertê-lo em termos de política na prática. O fato de que não se pode provar a inexistência de Deus é aceito e trivial, nem que seja só no sentido de que nunca podemos provar plenamente a inexistência de nada. O que interessa não é se a inexistência de Deus pode ser comprovada (não pode), mas se sua existência é possível Essa é outra história. Algumas coisas não comprováveis são julgadas, de modo sensato, bem menos possíveis que outras coisas não comprováveis. Não há motivo para achar que Deus está imune à análise ao longo do espectro das probabilidades. E certamente não há motivo para supor que, só porque Deus não pode ter sua existência comprovada ou descartada, a probabilidade de sua existência seja de 50%. Pelo contrário, como veremos.

MNI 

Assim como Thomas Huxley recuou para defender da boca para fora o agnosticismo completamente imparcial, bem no meio do meu espectro de sete estágios, os teístas fazem a mesma coisa na outra direção, e por motivos equivalentes. O teólogo Alister McGrath faz dessa questão o ponto central de seu livro Dawkins' God: Genes, memes and the origin oflife [O Deus de Dawkins: Genes, memes e a origem da vida]. Na verdade, depois de seu resumo admiravelmente justo de minhas obras científicas, este parece ser o único ponto de refutação que ele tem a oferecer: a alegação inegável, mas ignominiosamente fraca, de que não se pode descartar com provas a existência de Deus. Enquanto lia McGrath, uma página atrás da outra, me via anotando "bule" nas margens. Novamente invocando T. H. Huxley, McGrath diz: "Farto dos teístas e ateus que faziam declarações dogmáticas inúteis com base em evidências empíricas inadequadas, Huxley declarou que a questão sobre Deus não pode ser solucionada com base no método científico". 

McGrath prossegue citando Stephen Jay Gould num tom parecido: "Dizer para todos os meus colegas e pela milionésima vez (de debates universitários até tratados complexos): a ciência simplesmente não é capaz (por seus meios legítimos) de adjudicar a questão da possível superintendência de Deus sobre a natureza. Nem a afirmamos nem a negamos; simplesmente não podemos comentá-la como cientistas". Apesar do tom confiante, quase agressivo, da declaração de Gould, qual é, na verdade, sua justificativa? Por que não devemos comentar sobre Deus como cientistas? E por que o bule de Russell, ou o Monstro de Espaguete Voador, não são igualmente imunes ao ceticismo científico? Como argumentarei daqui a pouco, um universo com um superintendente criativo seria bem diferente de um universo sem esse superintendente. Por que não é uma questão científica?

Gould executou a arte de recuar a distâncias incríveis em um de seus livros menos admirados, Pilares do tempo. Ali ele cunhou a sigla MNI* para o termo "magistérios não interferentes":

* No original, NOMA: "non-overlapping magisteria". (N. T.)
 
A rede, ou magistério, da ciência abrange o âmbito empírico: do que o universo é feito (fato) e por que ele funciona desse modo (teoria). O magistério da religião estende-se para questões de significado definitivo e valor moral. Esses dois magistérios não se sobrepõem, nem englobam todas as dúvidas (considere, por exemplo, o magistério da arte e o significado de beleza). Para citar os velhos clichés, a ciência trata das rochas, e a religião da rocha eterna; a ciência estuda como funciona o céu, e a religião, como ir para o céu.

Parece ótimo — até que você pense um instante sobre o assunto. Quais são essas questões definitivas em cuja presença a religião é convidada de honra e a ciência deve respeitosamente se retirar?

Martin Rees, o respeitado astrônomo de Cambridge que já mencionei, começa seu livro Our cosmic habitat propondo duas candidatas a questões definitivas e dando uma resposta compatível com o MNI. "O mistério preeminente é por que afinal qualquer coisa existe. O que insufla a vida nas equações e as atualizou no cosmos real? Essas perguntas vão além da ciência, no entanto: elas são província de filósofos e teólogos." Eu preferiria dizer que, se elas de fato vão além da ciência, certamente também vão além da província dos teólogos (duvido que os filósofos agradeçam a Martin Rees por ter colocado os teólogos no mesmo saco que eles). Fico tentado a ir mais adiante e questionar em que sentido os teólogos poderiam ter uma província. Ainda me divirto quando me lembro da observação de um ex-Warden (chefe) de minha faculdade, em Oxford. Um jovem teólogo tinha se 

inscrito para uma bolsa num programa júnior de pesquisa, e sua tese de doutorado sobre a teologia cristã fez o Warden dizer: "Tenho sérias dúvidas se isso chega a ser um objeto de pesquisa".

Que conhecimento os teólogos podem acrescentar a dúvidas cosmológicas profundas que os cientistas não possam? Em outro livro repeti as palavras de um astrônomo de Oxford, que, quando lhe fiz uma dessas perguntas, disse: "Ah, agora vamos para além da esfera da ciência. Neste ponto tenho de ceder a palavra a nosso bom amigo, o capelão". Não fui sagaz o suficiente para verbalizar a resposta que mais tarde escrevi: "Mas por que o capelão? Por que não o jardineiro ou o cozinheiro?". Por que os cientistas têm um respeito tão covarde pelas ambições dos teólogos, sobre perguntas que os teólogos certamente não são mais qualificados a responder que os próprios cientistas? 

É um cliché chato (e, diferentemente de muitos clichés, não é nem verdade) dizer que a ciência se preocupa com perguntas sobre como, mas só a teologia está equipada para responder a perguntas sobre por quê. O que diabos é uma pergunta sobre por quê? Nem toda pergunta que começa com um "por que" é uma pergunta legítima. Por que os unicórnios são ocos? Algumas perguntas simplesmente não merecem resposta. Qual é a cor da abstração? Qual é o cheiro da esperança? O fato de que uma pergunta possa ser elaborada numa frase gramaticalmente correta não lhe dá sentido nem a faz merecedora de nossa atenção séria. Assim como, mesmo que a pergunta seja real, o fato de que a ciência não é capaz de respondê-la não implica que a religião o seja.

Talvez existam algumas perguntas genuinamente profundas e importantes que estarão para sempre fora do alcance da ciência. Quem sabe a teoria quântica já esteja às portas do insondável. Mas, se a ciência não pode responder a uma pergunta definitiva, o que faz alguém pensar que a religião possa? Suspeito que nem o astrônomo de Cambridge nem o de Oxford realmente acreditavam que os teólogos tenham um conhecimento especial que lhes permita responder a dúvidas profundas demais para a ciência. Suspeito que os dois astrônomos estavam, mais uma vez, recuando para ser polidos: os teólogos não têm nada de útil a dizer sobre mais nada; vamos jogar um bolinho para eles e deixá-los preocupados com uma ou duas perguntas a que ninguém consegue responder, e talvez jamais conseguirá. Ao contrário de meus amigos astrônomos, não acho nem que devamos jogar um bolinho para eles. Ainda não encontrei nenhum bom motivo para achar que a teologia (diferentemente da história bíblica, da literatura etc.) chegue a ser um objeto de pesquisa.

Da mesma maneira também podemos concordar que o direito da ciência de nos dar conselhos sobre valores morais é algo no mínimo problemático. Mas será que Gould realmente quer ceder à religião o direito de nos dizer o que é bom e o que é ruim? O fato de que ela não tem nada mais a contribuir para a sabedoria humana não é razão para dar à religião uma permissão total para nos dizer o que fazer. E qual religião? Aquela sob a qual por acaso fomos criados? A qual capítulo, então, de qual livro da Bíblia devemos recorrer? Pois eles estão longe de ser unânimes e alguns deles são horrendos, por qualquer padrão racional. Quantos literalistas leram o suficiente da Bíblia para saber que ela prescreve a pena de morte para o adultério, por recolher gravetos no dia de descanso e por ser insolente com os pais? Se rejeitarmos o Deuteronômio e o Levítico (como fazem todas as pessoas modernas e esclarecidas), por quais critérios devemos decidir quais valores morais da religião devemos aceitar? Ou devemos vasculhar todas as religiões do mundo até encontrar uma cujos ensinamentos morais nos sejam adequados? Se for assim, devemos perguntar novamente, por quais critérios vamos escolher? E, se tivermos critérios independentes para escolher entre as moralidades religiosas, por que não eliminar os intermediários e ir direto à escolha moral sem a religião? Retornarei a essas perguntas no capítulo 7. 

Simplesmente não acredito que Gould possa ter querido dizer mesmo boa parte do que escreveu em Pilares do tempo. Como costumo dizer, todos nós já recuamos de nossas posições para ser gentis com um adversário pouco merecedor mas mais poderoso, e só posso imaginar que era isso que Gould estava fazendo. É concebível que ele tenha tido mesmo a intenção de fazer sua declaração inequivocamente contundente de que a ciência não tem nada a dizer sobre a dúvida a respeito da existência de Deus: "Nem a afirmamos nem a negamos; simplesmente não podemos comentá-la como cientistas". Isso soa como o agnosticismo do tipo permanente e irrevogável, o APP em sua plenitude. Implica que a ciência não pode nem fazer juízos de probabilidade sobre a questão. Essa falácia extraordinariamente disseminada — muitos a repetem como um mantra, mas suspeito que poucos pensaram bem sobre ela — personifica o que chamo de "a pobreza do agnosticismo". Gould, aliás, não era um agnóstico imparcial, mas tinha fortes inclinações para o ateísmo de facto. Com que fundamento ele fez esse juízo, se não há nada a ser dito sobre a existência ou inexistência de Deus? 

A Hipótese de que Deus Existe sugere que a realidade em que vivemos também contém um agente sobrenatural que projetou o universo e — pelo menos em muitas versões da hipótese — o mantém, e até intervém nele com milagres, que são violações temporárias de suas leis grandiosas normalmente imutáveis. Richard Swinburne, um dos principais teólogos da Grã-Bretanha, é surpreendentemente claro sobre o assunto em seu livro Is there a God? [Será que Deus existe?]:

O que os teístas afirmam sobre Deus é que ele tem o poder de criar, conservar ou aniquilar qualquer coisa, seja grande ou pequena. E ele também pode fazer objetos se moverem ou fazerem qualquer outra coisa [...] Ele consegue fazer os planetas se moverem do modo como Kepler descobriu que eles se movem, ou fazer a pólvora explodir quando a acendemos com um fósforo; ou ele pode fazer os planetas se moverem de formas bem diferentes, e as substâncias químicas explodirem ou não explodirem sob condições bem diferentes daquelas que hoje governam seu comportamento. Deus não é limitado pelas leis da natureza; ele as faz e pode mudálas ou suspendê-las — se quiser.

Fácil, não? O que quer que isso seja, está bem longe do MNI. E, por mais que eles digam outras coisas, os cientistas que se alistam na escola de pensamento dos "magistérios separados" deveriam admitir que um universo com um criador sobrenaturalmente inteligente é um universo muito diverso daquele sem esse criador. A diferença entre os dois universos hipotéticos dificilmente seria mais fundamental em princípio, apesar de não ser fácil testá-la na prática. E ela derruba o dito complacente e sedutor de que a ciência deve ficar totalmente quieta sobre a alegação central da religião sobre a existência. A presença ou ausência de uma superinteligência criativa é indiscutivelmente uma dúvida científica, embora na prática ela não seja — ou ainda não seja — uma dúvida resolvida. O mesmo vale para a veracidade ou para a falsidade de cada uma das histórias sobre milagres que as religiões usam para impressionar multidões de fiéis.

Jesus teve um pai humano, ou sua mãe era virgem na época de seu nascimento? Existam ou não provas suficientes para decidir, trata-se de uma pergunta estritamente científica com uma resposta definida por princípio: sim ou não. Jesus ressuscitou Lázaro de entre os mortos? Voltou ele mesmo à vida, três dias depois de ser crucificado? Há uma resposta para cada pergunta dessas, possamos ou não descobri-la na prática, e é uma resposta estritamente científica. Os métodos que deveríamos usar para solucionar a questão, na improvável hipótese de provas relevantes um dia se tornarem disponíveis, seriam métodos pura e inteiramente científicos. Para representar a tese, imagine que, por algum conjunto incrível de circunstâncias, peritos em arqueologia desencavassem evidências de DNA mostrando que Jesus realmente não teve um pai biológico. Você consegue imaginar os apologistas religiosos dando de ombros e dizendo qualquer coisa remotamente parecida com: "E daí? Provas científicas são completamente irrelevantes para as questões teológicas. Magistério errado! Só estamos preocupados com as perguntas definitivas e com os valores morais. Nem o DNA nem alguma outra prova científica pode ter qualquer peso na questão, seja para um lado, seja para o outro"? 

 A própria ideia é uma piada. Você pode apostar as calças que a prova científica, se aparecesse alguma, seria agarrada e trombeteada para o mundo inteiro. O MNI só tem popularidade porque não há prova a favor da Hipótese de que Deus Existe. No momento em que houver a mínima sugestão de qualquer prova a favor da crença religiosa, os apologistas da religião não perderão tempo em defenestrar o MNI. Tirando os teólogos sofisticados (e até eles adoram contar histórias sobre milagres aos não sofisticados para inflar congregações), suspeito que os supostos milagres são a razão mais forte que muitos crentes têm para sua fé; e milagres, por definição, violam os princípios da ciência.

A Igreja Católica Apostólica Romana, por um lado, às vezes parece aspirar ao MNI, mas por outro lado determina que a realização de milagres é uma exigência essencial para a elevação à santidade. O falecido rei dos belgas é candidato à santificação, por causa de sua posição sobre o aborto. Investigações sérias estão em andamento para descobrir se alguma cura milagrosa pode ser atribuída a preces destinadas a ele desde sua morte. Não estou brincando. É verdade, e isso é típico nas histórias dos santos. Fico imaginando como essa operação toda é embaraçosa para os círculos mais sofisticados da Igreja. O motivo de círculos que merecem o nome de sofisticados permanecerem dentro da Igreja é um mistério no mínimo tão profundo quanto os mais adorados pelos teólogos.

Se confrontado com histórias de milagres, Gould provavelmente replicaria na linha da explicação que se segue. O grande ponto do MNI é que ele é uma barganha de duas vias. No momento em que a religião pisa no terreno da ciência e começa a bagunçar o mundo real com milagres, ela deixa de ser religião no sentido que Gould defende, e sua amicabilis concordia é rompida. Perceba, porém, que a religião sem milagres defendida por Gould não seria reconhecida pela maioria dos teístas praticantes nos bancos de igreja ou nos tapetes de oração. Seria, na verdade, uma grande decepção para eles. Adaptando o comentário de Alice sobre o livro da irmã antes de cair no País das Maravilhas, para que serve um Deus que não faz milagres e que não ouve preces? Lembre-se da definição perspicaz de Ambrose Bierce para o verbo "rezar": "pedir que as leis do universo sejam anuladas em nome de um único requisitante, confessadamente desmerecedor". Existem atletas que acreditam que Deus os ajuda a ganhar — derrotando adversários que, à primeira vista, não seriam menos merecedores de tal favorecimento. Existem motoristas que acham que Deus guarda para eles uma vaga no estacionamento — supostamente privando, portanto, outra pessoa da vaga. Esse estilo de teísmo é vergonhosamente disseminado, e dificilmente será afetado por qualquer coisa tão (superficialmente) racional quanto o MNI.
 
Mesmo assim, sigamos Gould e reduzamos nossa religião a um mínimo não intervencionista: nada de milagres, nada de comunicação pessoal entre Deus e nós, em nenhuma direção, nada de brincadeiras com as leis da física, nada de invasões ao terreno científico. No máximo, um pequeno impulso deístico às condições iniciais do universo para que, na plenitude do tempo, as estrelas, os elementos, os compostos químicos e os planetas se desenvolvam, e a vida evolua. Com certeza é uma separação adequada, certo? O MNI conseguirá sobreviver a esse modelo mais modesto e humilde de religião, certo?

Bem, você pode achar que sim. Mas sugiro que mesmo um Deus não intervencionista, um Deus MNI, embora menos violento e desajeitado que um Deus abraâmico, ainda seja, quando se olha para ele com honestidade, uma hipótese científica. Retomo a questão: um universo em que estamos sozinhos, com exceção de outras inteligências de evolução lenta, é um universo muito diferente daquele com um agente orientador original cujo design inteligente seja responsável por sua existência. Admito que na prática pode não ser fácil distinguir um tipo de universo do outro. Mesmo assim, há algo de enormemente especial na hipótese do design definitivo, e igualmente especial na única alternativa conhecida: a evolução gradativa no sentido mais amplo. Elas são quase irreconciliavelmente diferentes. Como nada mais no mundo, a evolução realmente dá uma explicação para a existência de entidades cuja improbabilidade as descartaria, para todos os fins práticos. E a conclusão da discussão, como mostrarei no capítulo 4, é quase definitivamente fatal para a Hipótese de que Deus Existe. 

O GRANDE EXPERIMENTO DA PRECE  

Um estudo de caso divertido, apesar de bastante patético, sobre os milagres é o Grande Experimento da Prece: rezar por pacientes os ajuda a se recuperar? Preces costumam ser oferecidas a pessoas doentes, tanto no ambiente privado como em locais formais de adoração. Francis Galton, primo de Darwin, foi o primeiro a avaliar cientificamente se rezar pelas pessoas é eficaz. Ele lembrou que todo domingo, em igrejas de toda a Grã-Bretanha, congregações inteiras rezavam publicamente pela saúde da família real. A família não deveria então, portanto, ser bem mais saudável se comparada ao resto de nós, que só recebemos preces dos nossos entes mais próximos e queridos?* Galton investigou e não encontrou nenhuma diferença estatística. Sua intenção, em todo o caso, pode ter sido fazer sátira, assim como quando rezou sobre lotes de terra aleatórios para ver se as plantas cresceriam mais rápido (não cresceram).

Mais recentemente, o físico Russell Stannard (um dos três cientistas religiosos mais conhecidos da Grã-Bretanha, como veremos) deu seu apoio a uma iniciativa, financiada — é claro — pela Fundação Templeton, para testar experimentalmente a proposição de que rezar por pacientes doentes contribui para sua saúde.36 

* Quando minha faculdade de Oxford elegeu o Warden que citei anteriormente, os pesquisadores beberam em público à sua saúde por três noites seguidas. No terceiro desses jantares, ele agradeceu em seu discurso de resposta ao brinde: "Já me sinto melhor".

Experimentos como esse, se feitos de forma adequada, têm de ser duploscegos, e esse padrão foi estritamente observado. Os pacientes foram divididos, de forma estritamente aleatória, em um grupo experimental (que recebeu preces) e um grupo controle (que não recebeu preces). Nem os pacientes, nem os médicos ou enfermeiros, nem os autores do experimento podiam saber quais pacientes estavam recebendo orações e quais eram do grupo controle. Aqueles que faziam as preces experimentais tinham de saber o nome dos indivíduos por quem estavam rezando — do contrário, como saber se estavam rezando por eles, e não por outras pessoas? Mas tomou-se o cuidado de contar aos que faziam as preces apenas o primeiro nome da pessoa e a primeira letra do sobrenome. Aparentemente, isso seria suficiente para fazer com que Deus escolhesse o leito certo no hospital. 

A simples ideia de realizar tais experimentos está aberta a uma boa dose de ridículo, e o projeto a recebeu, como o previsto. Que eu saiba, Bob Newhart não fez um esquete cômico sobre o assunto, mas já posso ouvir sua voz:
 
 O que foi que disse, Senhor? Que não pode me curar porque faço parte do grupo controle?... Ah, sei, as orações da minha tia não são suficientes. Mas, Senhor, o senhor Evans ali do quarto ao lado... O que foi, Senhor?... O senhor Evans recebeu mil preces por dia? Mas, Senhor, o senhor Evans nem conhece mil pessoas... Ah, elas se referiram a ele só como John E. Mas, Senhor, como o senhor sabia que elas não estavam querendo dizer John Ellsworthy?... Ah, sei, o Senhor usou sua onisciência para descobrir a qual John E. eles queriam se referir. Mas, Senhor...

Ignorando com valentia todas as piadas, a equipe de pesquisadores foi em frente, gastando 2,4 milhões de dólares da Templeton sob a liderança do dr. Herbert Benson, cardiologista do Mind/Body Medicai Institute, que fica perto de Boston. O dr. Benson havia sido citado antes, num material de divulgação da Templeton, como alguém que "acredita que estão se acumulando as evidências da eficácia das preces intercessórias no cenário médico". O que garantia, portanto, que a pesquisa estava em boas mãos e que não seria sabotada por vibrações célicas. O dr. Benson e sua equipe monitoraram 1802 pacientes em seis hospitais; todos haviam sido submetidos a cirurgias de ponte de safena e/ou mamaria. Os pacientes foram divididos em três grupos.

 O grupo l recebeu preces, mas não sabia disso. O grupo 2 (o grupo controle) não recebeu preces e não sabia disso. O grupo 3 recebeu preces e sabia que estava recebendo. A comparação entre os grupos l e 2 testa a eficácia das preces intercessórias. O grupo 3 testa os possíveis efeitos psicossomáticos de saber que se está sendo alvo de preces.

As preces foram feitas pelas congregações de três igrejas, uma em Minnesota, uma em Massachusetts e uma no Missouri, todas distantes dos três hospitais. Os autores das preces, como já foi explicado, receberam apenas o primeiro nome e a primeira letra do sobrenome de cada paciente por quem deveriam rezar. Faz parte da boa prática experimental padronizar as coisas ao máximo, e a todos eles foi dito, portanto, que incluíssem em suas orações a frase "por uma cirurgia bem-sucedida com uma recuperação rápida, saudável e sem complicações".

Os resultados, publicados no American Heart Journal de abril de 2006, foram bem definidos. Não houve diferença entre os pacientes que foram alvo de preces e os que não foram. Que surpresa. Houve diferença entre aqueles que sabiam que estavam recebendo preces e aqueles que não sabiam se estavam ou não estavam; mas ela foi para a direção errada. Aqueles que sabiam ser beneficiários de preces sofreram um número significativamente maior de complicações do que aqueles que não sabiam. Estaria Deus contraatacando, para mostrar sua desaprovação pela estranha empreitada? Parece mais provável que os pacientes que sabiam que estavam sendo alvo de preces tenham sofrido um estresse adicional em conseqüência disso: "ansiedade de desempenho", nas palavras dos autores da experiência. O dr. Charles Bethea, um dos pesquisadores, disse: "Isso pode tê-los deixado inseguros e se perguntando: Será que estou tão doente que eles tiveram de convocar a equipe de oração?" Na sociedade litigiosa de hoje, seria querer demais achar que aqueles pacientes que tiveram complicações cardíacas, em conseqüência do fato de saber que estavam recebendo preces experimentais, possam entrar na Justiça com uma ação coletiva contra a Fundação Templeton?

Não seria surpresa se esse estudo sofresse a oposição dos teólogos, talvez preocupados com sua capacidade de lançar a religião no ridículo. O teólogo Richard Swinburne, de Oxford, escrevendo depois do fracasso do estudo, fez objeções a ele afirmando que Deus só atende a preces feitas com bons motivos.37 Rezar para uma pessoa, e não para outra, só por causa do que determinaram os dados do experimento duplo-cego não constitui um bom motivo. Deus perceberia. Era exatamente esse o alvo da minha sátira de Bob Newhart, e Swinburne tem razão em alegar a mesma coisa. Mas em outros trechos de seu trabalho o próprio Swinburne supera a sátira. Não pela primeira vez, ele tenta justificar o sofrimento num mundo governado por Deus: 

Meu sofrimento me dá a oportunidade de mostrar coragem e paciência. Ele lhe dá a oportunidade de mostrar solidariedade e de ajudar a aliviar o meu sofrimento. E oferece à sociedade a oportunidade de escolher se deve ou não investir grande quantia de dinheiro para encontrar uma cura para esse ou aquele tipo específico de sofrimento [...] Embora um bom Deus lamente nosso sofrimento, sua maior preocupação é certamente que cada um de nós mostre paciência, solidariedade e generosidade e, assim, forme um caráter sagrado. Algumas pessoas precisam muito ficar doentes para o seu próprio bem, e algumas pessoas precisam muito ficar doentes para proporcionar escolhas importantes para outras. Só assim algumas pessoas são encorajadas a fazer escolhas graves sobre o tipo de pessoa que serão. Para outros, a doença não é tão útil.

Esse exemplar grotesco de raciocínio, tão típico da mente teológica, faz-me lembrar de uma ocasião em que eu estava numa discussão pela televisão com Swinburne, e também com nosso colega de Oxford, o professor Peter Atkins. Swinburne, em determinado momento, tentou justificar o Holocausto afirmando que ele deu aos judeus a maravilhosa oportunidade de serem corajosos e nobres. Peter Atkins rosnou, esplêndido: "Que você apodreça no inferno".* 

Outro exemplar típico do raciocínio teológico surge mais além no artigo de Swinburne. Com razão, ele sugere que se Deus quisesse demonstrar sua própria existência ele encontraria métodos melhores de fazê-lo do que não alterar ligeiramente as estatísticas da recuperação do grupo experimental versus o grupo controle de pacientes cardíacos. Se Deus existisse e quisesse nos

* Essa conversa ficou de fora na edição da versão que foi ao ar. O fato de que a afirmação de Swinburne é típica de sua teologia é indicado por seu comentário bastante semelhante sobre Hiroshima em The existence of God (2004), p. 264: "Suponha que uma pessoa a menos tivesse sido queimada pela bomba atómica de Hiroshima. Então teria havido menos oportunidade para a coragem e a solidariedade [...]".

convencer disso, ele poderia "encher o mundo de supermilagres". Mas então Swinburne solta sua pérola: "Já há muitas evidências, de qualquer maneira, da existência de Deus, e evidência demais pode não ser bom para nós". Evidência demais pode não ser bom para nós! Leia de novo. Evidência demais pode não ser bom para nós. Richard Swinburne é o detentor, recentemente aposentado, de um dos mais respeitados cargos de professor de teologia, e pertence à Academia Britânica. Se você quer um teólogo, eles não vêm com muito mais distinções que isso. Talvez você não queira um teólogo.

Swinburne não foi o único teólogo a desmerecer o estudo depois de seu fracasso. O reverendo Raymond J. Lawrence recebeu um espaço generoso da página de artigos do The New York Times para explicar por que líderes religiosos responsáveis "vão respirar aliviados" porque não foi encontrada nenhuma prova de que as preces intercessórias surtem algum efeito.38 Teria ele ado-tado um tom diferente se o estudo de Benson tivesse sido bem sucedido e demonstrasse o poder da prece? Talvez não, mas você pode ter certeza de que muitos outros pastores e teólogos teriam. O artigo do reverendo Lawrence é memorável sobretudo pela seguinte revelação: "Recentemente, um colega me contou sobre uma mulher devotada e instruída que acusou um médico de má conduta no tratamento de seu marido. Nos dias em que o marido estava morrendo, ela denunciou, o médico não havia rezado por ele".

Outros teólogos uniram-se aos célicos inspirados no MNI defendendo que estudar a prece dessa forma era um desperdício de dinheiro, porque as influências sobrenaturais estão por definição fora do alcance da ciência. Mas, como reconheceu cor-retamente a Fundação Templeton quando financiou o estudo, o suposto poder de intercessão da oração está, pelo menos em princípio, dentro do alcance da ciência. Um experimento duplo-cego pode ser feito e foi feito. Ele poderia ter produzido um resultado positivo. E, se tivesse, você consegue imaginar que um único apologista da religião o teria desmerecido, alegando que a pesquisa científica não tem valor em questões religiosas? É claro que não. 

Nem é preciso dizer que os resultados negativos do experimento não vão abalar os fiéis. Bob Barth, diretor espiritual do ministério de oração do Missouri que forneceu parte das preces experimentais, disse: "Uma pessoa de fé diria que esse estudo é interessante, mas rezamos há muito tempo e já vimos a prece funcionar, sabemos que ela funciona, e as pesquisas sobre a oração e a espiritualidade estão apenas começando". É isso aí: sabemos a partir de nossa fé que a oração funciona, então, se as evidências não conseguirem mostrar isso, vamos continuar trabalhando até que finalmente obtenhamos o resultado que queremos. 
 
A ESCOLA NEVILLE CHAMBERLAIN* DE EVOLUCIONISTAS 

Um possível motivo oculto dos cientistas que insistem no MNI — a invulnerabilidade da Hipótese de que Deus Existe à ciência — é a peculiar agenda política americana, causada pela ameaça do criacionismo populista. Em certas regiões dos Estados Unidos, a ciência está sendo atacada por uma oposição organizada, com boas conexões políticas e acima de tudo bem financiada, e o ensino da evolução está entrincheirado na frente de batalha. Os cientistas podem ser perdoados por se sentir ameaçados, já que a maior parte do dinheiro para as pesquisas vem mesmo do governo, e os representantes eleitos têm de responder aos ignorantes e aos preconceituosos de seu eleitorado do mesmo modo que aos bem informados.

Em resposta a essas ameaças, surgiu um lobby para defender a evolução, representado de forma mais notável pelo Centro Nacional para a Educação em Ciência (National Center for Science Education — NCSE), comandado por Eugenie Scott, uma ativista incansável em defesa da ciência e que recentemente produziu seu próprio livro, Evolution vs. creationism. Um dos principais objetivos políticos do NCSE é cortejar e mobilizar opiniões religiosas "sensatas": integrantes moderados do clero e mulheres que não tenham nenhum problema com a evolução e possam considerá-la irrelevante para sua fé (ou, até

* Neville Chamberlain: primeiro-ministro da Grã-Bretanha nos anos que precederam a Segunda Guerra Mundial, cuja política de conciliação e concessões em relação à Alemanha nazista culminou com os acordos de Munique em 1938.

de modo bem esquisito, uma contribuição a ela). É esse ramo moderado do clero, dos teólogos e dos fiéis não fundamentalistas, que se sentem desconfortáveis com o criacionismo porque ele agride a reputação de sua religião, que o lobby em defesa da evolução tenta atingir. E uma forma de fazer isso é recuar na direção deles adotando o MNI — concordar que a ciência não representa uma ameaça, porque não tem nenhuma conexão com as alegações religiosas.

Outro luminar do que podemos chamar de escola Neville Chamberlain de evolucionistas é o filósofo Michael Ruse. Ruse tem sido um combatente eficaz contra o criacionismo,39 tanto no papel quanto nos tribunais. Ele diz ser ateu, mas seu artigo publicado na Playboy assume a visão de que

nós que amamos a ciência temos de nos dar conta de que o inimigo de nossos inimigos é nosso amigo. Os evolucionistas perdem tempo demais insultando possíveis aliados. Isso acontece especialmente com os evolucionistas laicos. Os ateus perdem mais tempo afugentando cristãos solidários que combatendo os criacionistas. Quando João Paulo II escreveu uma carta endossando o darwinismo, a resposta de Richard Dawkins foi simplesmente dizer que o papa era hipócrita, que ele não podia falar genuinamente sobre a ciência e que o próprio Dawkins preferiria um fundamentalista honesto.

Do ponto de vista puramente estratégico, consigo enxergar o apelo superficial da comparação de Ruse com a luta contra Hitler: "Winston Churchill e Franklin Roosevelt não gostavam de Stálin e do comunismo. Mas, quando combatiam Hitler, perceberam que tinham de trabalhar junto com a União Soviética. Os evolucionistas de todos os tipos devem, do mesmo jeito, trabalhar juntos para combater o criacionismo". Por fim, porém, posto-me ao lado de meu colega, o geneticista de Chicago Jerry Coyne, que escreveu que Ruse

não capta a natureza verdadeira do conflito. Não se trata apenas da evolução contra o criacionismo. Para cientistas como Dawkins e Wilson [E. O. Wilson, o destacado biólogo de Harvard], a verdadeira guerra é entre o racionalismo e a superstição. A ciência não é nada mais que uma forma de racionalismo, enquanto a religião é a fornia mais comum de superstição. O criacionismo é apenas um sintoma do que eles encaram como o inimigo maior: a religião. Embora a religião possa existir sem o criacionismo, o criacionismo não pode existir sem a religião.40  
 
Tenho uma coisa em comum com os criacionistas. Assim como eu, mas diferentemente da "escola Chamberlain", eles não querem nem saber do MNI e seus magistérios independentes. Longe de respeitar a separação do terreno da ciência, os criacionistas gostam mesmo é de pisoteá-lo com suas botas sujas e com travas na sola. E eles também jogam sujo. Os advogados que defendem o criacionismo, em disputas judiciais nos confins dos Estados Unidos, apelam a evolucionistas que sejam abertamente ateus. Sei — para meu desgosto — que meu nome já foi usado assim. É uma tática eficiente, porque entre os jurados escolhidos aleatoriamente há mais chance de haver indivíduos criados para acreditar que os ateus são a encarnação do demônio, no mesmo nível dos pedófilos ou dos "terroristas" (o equivalente atual às bruxas de Salem e aos comunas de McCarthy). Qualquer advogado criacionista que conseguisse me colocar no tribunal conquistaria instantaneamente o júri só de me perguntar: "Seu conhecimento sobre a evolução influenciou-o para que se tornasse ateu?" Eu teria de responder que sim e, de um golpe, teria perdido o júri. Por outro lado, a resposta judicialmente correta do lado secularista seria: "Minhas crenças religiosas, ou a falta delas, são uma questão pessoal, que não interessa a este tribunal nem está ligada de forma alguma à minha ciência". Eu não poderia dizer isso com honestidade, por motivos que explico no capítulo 4.

A jornalista do The Guardian Madeleine Bunting escreveu um artigo intitulado "Por que o lobby do design inteligente agradece a Deus por Richard Dawkins".41 Não há indicação de que ela tenha consultado mais ninguém além de Michael Ruse, e o artigo dela bem que poderia ter sido escrito na verdade pelo próprio Ruse.* Dan Dennett respondeu, citando bem Uncle Remus:** 

* O mesmo pode ser dito do artigo "Quando as cosmologias colidem" ("When cosmologies collide"), no The New York Times de 22 de janeiro de 2006, da respeitada (e normalmente mais bem informada) jornalista Judith Shulevitz. A Primeira Regra de Guerra do general Montgomery era: "Não marche sobre Moscou". Talvez devesse existir uma Primeira Regra do Jornalismo Científico: "Entreviste pelo menos mais uma pessoa além de Michael Ruse". ** Uncle Remus (tio Remus): personagem do folclore americano. (N. T.)

Acho engraçado que dois britânicos — Madeleine Bunting e Michael Ruse — tenham caído em uma versão de um dos golpes mais famosos do folclore americano ("Por que o lobby do design inteligente agradece a Deus por Richard Dawkins", 27 de março). Quando Mano Coelho é pego pela raposa, ele implora: "Por favor, por favor, Mana Raposa, faça qualquer coisa, só não me jogue naqueles horríveis espinhos!" — onde ele vai parar, são e salvo, depois de a raposa fazer exatamente isso. Quando o propagandista americano William Dembski escreve zombeteiramente para Richard Dawkins, dizendo que continue assim, para o bem do design inteligente, Bunting e Ruse caem! "Ai, meu Deus, Mana Raposa, sua afirmação declarada — de que a biologia evolutiva descarta a idéia de um Deus criador — põe em risco o ensino da biologia nas aulas de ciência, já que ensinar isso violaria a separação entre Igreja e Estado!" Está bem. Você também deveria tirar o pé da fisiologia, já que ela declara ser impossível virgens darem à luz [...]42 
 
Toda essa questão, incluindo outra invocação do Mano Coelho nos espinhos, é bem discutida pelo biólogo P. Z. Myers, cujo blog Pharyngula pode sempre ser consultado quando se busca bom senso aguçado.43

Não estou sugerindo que meus colegas do lobby da conciliação sejam necessariamente desonestos. Eles podem acreditar sinceramente no mni, embora eu não consiga deixar de me perguntar se eles realmente pensaram nele a fundo e como eles pacificam os conflitos internos na própria cabeça. Não há necessidade de explorar a questão por enquanto, mas qualquer pessoa que queira entender as declarações publicadas de cientistas a respeito de assuntos religiosos só terá a ganhar se não esquecer o contexto político: as guerras culturais surreais que estão dilacerando os Estados Unidos. A conciliação ao estilo do mni vai ressurgir num capítulo posterior. Aqui, volto ao agnosticismo e à possibilidade de erodir nossa ignorância e reduzir sensivelmente nossa incerteza sobre a existência ou a inexistência de Deus. 

HOMENZINHOS VERDES 

Suponha que a parábola de Russell não tivesse sido sobre um bule no espaço sideral, mas sobre a vida no espaço sideral — o objeto da memorável recusa de Sagan de usar os instintos. Aqui também não temos como descartá-lo, e a única posição estritamente racional é o agnosticismo. Mas a hipótese já não é absurda. Não farejamos imediatamente uma improbabilidade extrema. Podemos ter uma discussão interessante com base em evidências incompletas, e podemos determinar o tipo de evidência que reduziria nossa incerteza.

 Ficaríamos indignados se nosso governo investisse em telescópios caros com o propósito exclusivo de procurar bules em órbita. Mas podemos pensar em gastar dinheiro com a Busca por Inteligência Extraterrestre [Search for Extraterrestrial Intelligence — SETI], usando radio telescópios para varrer os céus na esperança de detectar sinais de alienígenas inteligentes.

Elogiei Carl Sagan por rejeitar idéias instintivas sobre a vida alienígena. Mas é possível (e Sagan o fez) fazer uma avaliação sóbria sobre o que seria necessário saber para proceder a uma estimativa da probabilidade. Isso pode começar a partir de uma simples lista dos pontos que ignoramos, como na famosa Equação de Drake, que, nas palavras de Paul Davies, coleta probabilidades. Ela afirma que, para estimar o número de civilizações que se desenvolveram de forma independente no universo, é preciso multiplicar sete termos. Entre os sete estão o número de estrelas, o número de planetas semelhantes à Terra por estrela e a probabilidade disso, daquilo ou daquilo outro, que não preciso listar porque a única coisa que quero mostrar é que todas são desconhecidas, ou estimadas com margens de erro enormes. Quando tantos termos completa ou quase completamente desconhecidos são multiplicados, o produto — o número estimado de civilizações alienígenas — tem erros-padrão tão colossais que o agnosticismo parece uma posição muito razoável, se não a única com credibilidade.

Alguns dos termos da Equação de Drake já são menos desconhecidos hoje do que quando foram escritos, em 1961. Naquela época, nosso sistema solar de planetas orbitando em torno de uma estrela central era o único conhecido, junto com as analogias locais proporcionadas pelos sistemas de satélites de Júpiter e Saturno. Nossa melhor estimativa do número de sistemas orbitais no universo era baseada em modelos teóricos, associados ao "princípio da mediocridade", mais informal: a sensação (nascida de lições históricas desconfortáveis de Copérnico, Hubble e outros) de que não deve haver nada de especialmente incomum no lugar em que por acaso vivemos. Infelizmente, o princípio da mediocridade é, por sua vez, castrado pelo princípio "antrópico" (veja o capítulo 4): se nosso sistema solar realmente fosse o único do universo, é exatamente nele que nós, como seres que pensam sobre essas coisas, teríamos de estar vivendo. O simples fato de existirmos poderia determinar retrospectivamente que vivemos num lugar extremamente não medíocre. 

Mas as estimativas atuais sobre a onipresença dos sistemas solares já não se baseiam no princípio da mediocridade; elas são informadas por evidências diretas. O espectroscópio, nêmese do positivismo de Comte, ataca novamente. Nossos telescópios não são potentes o suficiente para enxergar diretamente planetas em torno de outras estrelas. Mas a posição de uma estrela é perturbada pelo empuxo gravitacional de seus planetas conforme eles giram em torno dela, e os espectroscópios conseguem captar as alterações de Doppler no espectro da estrela, pelo menos nos casos em que o planeta perturbador é grande. Principalmente devido a esse método, no momento em que escrevo temos notícia de 170 planetas extra-solares orbitando 147 estrelas,44 mas o número certamente terá aumentado quando você estiver lendo este livro. Por enquanto, eles são "Júpiteres" grandalhões, porque só Júpiteres são grandes o bastante para perturbar suas estrelas até a zona de detectabilidade dos espectroscópios atuais.

Melhoramos pelo menos em termos quantitativos nossa estimativa para um dos termos previamente ocultos da Equação de Drake. Isso permite uma amenização significativa, embora ainda moderada, de nosso agnosticismo em relação ao valor final produzido pela equação. Ainda temos de ser agnósticos sobre a vida em outros mundos — mas um pouco menos agnósticos, porque somos um pouquinho menos ignorantes. A ciência pode ir corroendo o agnosticismo, do jeito que Huxley recuou para negar no caso especial de Deus. Meu argumento é que, apesar da abstinência polida de Huxley, Gould e muitos outros, a pergunta sobre Deus não está, por princípio e para sempre, fora do âmbito da ciência. Assim como com a natureza das estrelas, contra Comte, e como com a probabilidade da vida em órbita em torno delas, a ciência pode pelo menos fazer incursões probabilísticas no território do agnosticismo. 

Minha definição da Hipótese de que Deus Existe incluía as palavras "sobre-humano" e "sobrenatural". Para esclarecer a diferença, imagine que um radiotelescópio do programa SETI realmente tivesse detectado um sinal no espaço sideral que mostrasse, inequivocamente, que não estamos sós. É uma pergunta nada trivial, aliás, questionar que tipo de sinal nos convenceria de sua origem inteligente. Uma boa abordagem é inverter a pergunta. O que deveríamos fazer, de forma inteligente, para propagandear nossa presença a ouvintes extraterrestres? Pulsos rítmicos não servem. Jocelyn Bell Burnell, a radioastrônoma que descobriu o pulsar em 1967, foi, por causa da precisão de sua periodicidade de 1,33 segundo, impelida a batizá-lo, provocadoramente, de sinal LGM, de Little Green Men [Homenzinhos Verdes]. Mais tarde ela encontrou um segundo pulsar, em outro lugar do céu e com periodicidade diferente, que praticamente acabou com a hipótese LGM. Ritmos metronômicos podem ser gerados por muitos fenômenos não inteligentes, de galhos balançando a água pingando, de intervalos de tempo em sistemas auto-reguláveis de realimentação ao movimento de orbitação e rotação dos corpos celestes. Mais de mil pulsares já foram detectados em nossa galáxia, e tem-se que cada um deles é uma estrela de nêutrons giratória que emite um feixe como um farol de navegação. É incrível pensar numa estrela que gire em questão de segundos (imagine se cada um de nossos dias durasse 1,33 segundo, em vez de 24 horas), mas praticamente tudo que sabemos sobre as estrelas de nêutrons é incrível. A questão é que o fenômeno dos pulsares é hoje entendido como resultado de simples física, não da inteligência.

 Nada que fosse apenas rítmico, porém, anunciaria nossa presença inteligente para o universo à espera. Os números primos são freqüentemente mencionados como opção ideal, já que é difícil imaginar um processo puramente físico que fosse capaz de gerá-los. Seja detectando números primos ou por algum outro meio, imagine que o SETI realmente forneça evidências indiscutíveis de inteligência extraterrestre, seguida, quem sabe, por uma transmissão maciça de conhecimento e sabedoria, na linha da série de TV A for Andromeda, de Fred Hoyle, ou do livro Contato, de Cari Sagan. Como deveríamos responder? Uma reação perdoável seria alguma coisa disposta à adoração, já que qualquer civilização capaz de transmitir um sinal a uma distância tão imensa provavelmente será muito superior à nossa. Mesmo que essa civilização não seja mais avançada que a nossa no momento da transmissão, a enorme distância entre nós permite calcular que eles devem estar um milênio na nossa frente quando a mensagem chegar até nós (a menos que eles tenham se extinguido, o que não é improvável).

Consigamos ou não saber sobre elas, é muito provável que existam civilizações alienígenas que sejam sobre-humanas, a ponto de serem tão parecidas com deuses que superem qualquer coisa que um teólogo possa imaginar. Suas conquistas tecnológicas nos pareceriam sobrenaturais, como as nossas pareceriam a um camponês da Idade Média que fosse transportado ao século XXI. Imagine a reação dele a um laptop, a um telefone celular, a uma bomba de hidrogênio ou a um Jumbo. Como disse Arthur C. Clarke, em sua Terceira Lei, "qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia". Os milagres forjados por nossa tecnologia não teriam parecido aos homens da Antiguidade menos inacreditáveis que as histórias sobre Moisés dividindo as águas ou de Jesus andando sobre elas. Os alienígenas do nosso sinal do SETI seriam para nós como deuses, assim como os missionários foram tratados como deuses (e exploraram a honra indevida até não poder mais) quando apareceram em culturas da Idade da Pedra munidos de armas, telescópios, fósforos e almanaques que previam eclipses com precisão de segundos.

Em que sentido, então, os alienígenas mais avançados do SETI não seriam deuses? Em que sentido eles seriam sobre-humanos, mas não sobrenaturais? Num sentido muito importante, que toca no cerne deste livro. A diferença crucial entre deuses e extraterrestres parecidos com deuses não está em suas propriedades, e sim em sua proveniência. Entidades complexas o bastante para serem inteligentes são resultado de um processo evolutivo. Por mais semelhantes a deuses que possam parecer quando as encontrarmos, elas não começaram assim. Autores de ficção científica, como Daniel E Galouye em Counterfeit world [Mundo simulado], chegaram até a sugerir (e não consigo pensar em como poderia descartar a hipótese) que vivemos numa simulação de computador, criada por alguma civilização muito superior. Mas os autores da simulação teriam de ter vindo de algum lugar. As leis da probabilidade vetam a ideia de que eles possam ter aparecido espontaneamente sem ter antecedentes mais simples. Eles provavelmente devem sua existência a uma versão (talvez pouco familiar) da evolução darwiniana: algum tipo de "guindaste" elevatório, e não um "guincho que vem do céu", para usar a terminologia de Daniel Dennett.45 Guinchos celestes — incluindo todos os deuses — são feitiços. Eles não dão nenhuma explicação de bona fide e mais exigem do que fornecem explicações. Guindastes são dispositivos explanatórios que realmente fornecem explicações. A seleção natural é o maior guindaste de todos os tempos. Ela elevou a vida da simplicidade primeva a altitudes estonteantes de complexidade, beleza e aparente desígnio que hoje nos deslumbram. Esse será um tema dominante no capítulo 4, "Por que quase com certeza Deus não existe". Mas primeiro, antes de prosseguir dando minha principal razão para não acreditar na existência de Deus, tenho a responsabilidade de descartar os argumentos positivos para a crença, que foram sendo apresentados ao longo da história.


 



 



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