Dora Longo Bahia. Revoluções (projeto para calendário), 2016 Acrílica, caneta à base de água e aquarela sobre papel (12 peças) 23 x 30.5 cm cada
Por FRANCISCO PRANDI*
O desprezo pela soberania popular perpassa toda a história da América Latina
“Para cederme un lugar en su parnaso\ Me vienen a convidar a arrepentirme\ Me vienen a convidar a que no pierda\ Me vienen a convidar a indefinirme\ Me vienen a convidar a tanta mierda\ Yo no sé lo que es el destino\ Caminando, fui lo que fui\ Allá Diós, ¿Qué será divino?\ Yo me muero como viví.” (Silvio Rodríguez).
O desprezo pela soberania popular perpassa toda a história da América Latina. Em 2019, um intenso bombardeio midiático após a vitória de Evo Morales bastou para que uma subserviente OEA declarasse em alto e bom som: “fraude”. Fraude essa que não só nunca se comprovou como também se revelou falsa com o passar do tempo.
Tudo era um pretexto para iniciar o que interessava de fato: tirar do governo um representante do movimento popular que havia colocado indígenas e camponeses em postos-chave do Estado e que havia estatizado os hidrocarbonetos do país, coisa que faria com outra riqueza ainda mais valiosa: o lítio. Não faltaram intelectuais de fachada progressista que chancelaram um golpe sangrento, que buscavam refinados conceitos sociológicos enquanto indígenas eram massacrados, a whipala era incendiada, assim como a casa de militantes e dirigentes dos movimentos populares.
Agora, novamente, é a vez da Venezuela. Afinal, como é possível que um sangrento ditador, com bigode de vilão de filme americano, com “toda a comunidade internacional contra”, leia-se, com 930 sanções econômicas impostas há dez anos, como esse sujeito aparentemente tão desqualificado ganha as eleições mais uma vez? Só pode ser fraude.[1] O que escapa aos olhos dos especialistas de última hora é um fato incontornável: A Venezuela mudou. A Venezuela das longuíssimas filas, da escassez, da falta de soberania alimentar não existe mais. Há pobreza, há trabalho precário e tudo o que demais o capitalismo traz consigo, como também há em nosso país, é bom dizer. Mas a fase crítica já passou.
Com 80% dos votos apurados, Maduro foi eleito com 51,2% dos votos contra 44,2% para o opositor Edmundo González e os demais votos válidos se repartiram entre os demais opositores. O sinal, no entanto, ainda é amarelo. 44% do eleitorado demonstrou preferência pelo setor mais extremista da oposição, capitaneado por Maria Corina Machado.
Além disso, os pouco mais de cinco milhões de votos conseguidos por Nicolás Maduro demonstram que o chavismo ainda não recobrou a força que tinha antes, haja vista que o Partido Socialista Unido de Venezuela, o principal dos 13 partidos que apoiaram Maduro, registrava 7,7 milhões de filiados em 2020.[2][3] Essa queda também afetou a oposição que caiu de 7,3 milhões de votos em Capriles (2013) para pouco mais de 4 milhões neste ano.
Quais elementos novos, afinal, ajudam a compreender a vitória eleitoral de Nicolás Maduro?
Recuperação econômica
Desde que o bloqueio foi imposto à Venezuela pelos Estados Unidos em dezembro de 2014, a estimativa é a de que o país perdeu 29 bilhões de dólares ao ano até 2023.[4] Some-se a isso outros episódios como a vertiginosa queda dos preços do petróleo, matéria-prima em torno da qual gira a economia venezuelana desde o início do século XX, o roubo do ouro venezuelano pelo Banco da Inglaterra, ocasionando a perda de mais dois bilhões de dólares para o país.[5] É certo, porém, que o bloqueio também traz consigo certa confusão, na qual é muito difícil distinguir e mensurar o que são erros do governo, o que são as limitações estruturais desse país e o que são as consequências desse bloqueio.
Ainda assim, não é honesto um debate sobre a economia venezuelana que não dê o devido destaque a um bloqueio que, por exemplo, durante a pandemia da COVID-19 não permitiu que o país realizasse o pagamento de vacinas, retardando o processo de imunização com todas as consequências que nós, que tivemos um governo negacionista conhecemos muito bem.[6] O histórico recente de violência, como as guarimbas em 2013, 2014, 2017, 2018, a tentativa de invasão estrangeira em 2019, tampouco tornam o ambiente seguro para investimentos.
A primeira resposta ao caos econômico certamente frustrou a esquerda, como reversões de expropriações que haviam sido feitas por Hugo Chávez, privatizações e aumento da participação do capital internacional (sobretudo russo e chinês) em setores econômicos estratégicos. As medidas ortodoxas adotadas pelo governo, que tinham como fim poder respirar em meios às sanções, cobraram o preço da perda de apoio popular, já comprometido pela queda vertiginosa das condições de vida, lastro no qual a revolução bolivariana se apoiava nos tempos áureos, com ganhos econômicos e índices sociais incontestáveis.
Essas medidas corroeram ainda mais o já baixo poder de compra dos setores populares que são a base social fundamental do chavismo. Com o passar do tempo, o governo tentou compensá-lo não com aumentos salariais, mas com bonificações, programas sociais como os CLAP’s (Comités Locales de Abastecimiento y Producción), por exemplo, que distribuem cestas básicas na tentativa de combater a insegurança alimentar, bem como a especulação e o mercado paralelo. Também é importante reconhecer os avanços em matéria de soberania alimentar.
Desde fevereiro deste ano, a Venezuela produz 97% dos alimentos para consumo interno, um feito inédito na história de um país acostumado a usar as divisas petroleiras para importar comida.[7] Além disso, a guerra entre Rússia e Ucrânia não apenas aumentou enormemente o preço do petróleo como também fez com que os Estados Unidos aliviassem algumas sanções e permitisse empresas como a Chevron de comprar petróleo do país, que ficou 14 meses sem vender petróleo a ninguém.
Aos trancos e barrancos, o fato é que o insuspeito FMI projetou para o ano de 2024um crescimento econômico de 4% para a Venezuela, o maior da região, tendência que segundo a instituição se manteria para o ano que vem. No mês passado, o mandatário venezuelano entregou 5 milhões de casas populares na Gran Misión Vivienda Venezuela, o equivalente ao nosso Minha Casa, minha vida.
O país vive sua inflação mais baixa desde 2015, 68% ao ano, o que é alto, mas muito menor do que os 862% em 2017, pico da hiperinflação no país e menor do que a estimada na Argentina (271%/ano) que segundo a imprensa monopolista está indo muito bem. No país de Javier Milei, enquanto a cesta básica para quatro pessoas chega aos 851,35 US$, na Venezuela ela chega a 554,26 US$, some-se a isso que enquanto a capacidade de consumo se retraiu em 35% na Argentina, ela subiu 86% na Venezuela.[8]
A comparação com o país vizinho ao nosso é importante por um motivo que passou ao largo de boa parte da campanha eleitoral e do comentário de muitos que debatem o tema no Brasil. O programa político da oposição.
O programa da oposição
A MUD (Mesa de la Unidad Democrática) não é a única oposição no país, mas foi a que alcançou 44% da preferência do eleitorado, deixando para trás os outros oito candidatos oposicionistas. Ela é também seu braço mais radical. Enquanto os outros oito candidatos de oposição, assim como o próprio Maduro, compareceram a um ato no Conselho Nacional Eleitoral no qual se comprometeram a aceitar os resultados, a candidatura da MUD foi a única que não só não compareceu como não enviou representante. Nada incoerente para um campo político que gritou “fraude” em todas as vitórias chavistas, enquanto não contestou o mesmo sistema que lhe deu duas vitórias nacionais (2007 e 2015) e lhes dá outras tantas regionais.
Também foi a MUD e seu corpo dirigente que caracterizou os momentos mais extremistas da oposição. Veio de Capriles Radonski, candidato derrotado em 2013 o chamado para descarregar a arrechera (raiva) nas ruas, dando início às guarimbas que apareceriam de novo em 2014, quando Leopoldo Lopez, Maria Corina e Antonio Ledezma chamaram à insurreição, 2015, 2017, 2018, 2019… É justamente esse o setor mais violento da oposição, o que não só publica hashtags na internet, como também persegue e lincha aqueles que têm “cara de chavista” (negros, pobres, gente com roupa vermelha), queima hospitais públicos, queima os estoques de alimentos dos CLAP’s, farmácias populares, e que passou os últimos anos pedindo mais sanções contra o seu próprio país. Sanções essas que têm apenas uma grande vítima: os mais pobres.
Infelizmente, não é de agora que o debate programático parece ser secundário nas eleições venezuelanas. Neste ano, a oposição disse muito pouco sobre o que faria no governo, escamoteando o conteúdo socioeconômico do seu programa em palavras contra o “regime”, “pela democracia e a liberdade” e com um discurso muito pouco conciliatório de que iriam “cobrar” os anos de chavismo. Foi apenas recentemente, na reta final da campanha que o escritor Luis Britto García trouxe a público um artigo chamado Do you speak english? ,[9] no qual denunciava o verdadeiro programa da oposição venezuelana. Como caricatura pouca é bobagem, o programa, disponível no site de seu partido Vente Venezuela, está em inglês e possui o nome de Venezuela land of grace. Terra da graça, aliás, era o termo que o conquistador Cristóvão Colombo se referiu à América em interlocução com a coroa espanhola.
O programa não é nada diferente do habitual receituário da extrema direita mundial, que promove o casamento do neofascismo com o neoliberalismo, como Jair Bolsonaro, no Brasil, Javier Milei, na Argentina, e outros tantos embalados pelo Foro de Madrid, organização da extrema direita mundial promovida pelo Vox da Espanha. Maria Corina Machado, que já apareceu ao lado de Javier Milei gritando “Viva la libertad, carajo”, defende nesse programa a privatização de toda a indústria de petróleo e gás, a privatização maciça de empresas e bens públicos, privatização da educação e saúde públicas com o sistema de vouchers, desregulamentação trabalhista, privatização do sistema previdenciário no estilo chileno.
Há também um trecho que diz diretamente que o dinheiro levantado com as privatizações tem um único e exclusivo fim: pagamento da dívida externa e interna.[10] O “capitalismo popular” do qual Maria Corina Machado diz ser partidária, tendo Margaret Thatcher como modelo, tem muito de capitalismo e nada de popular, como se vê. Como Marx e Engels diziam no Manifesto, a burguesia onde ascendeu ao poder “resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar de um sem-número de liberdades legítimas e estatuídas colocou a liberdade única, sem escrúpulos do comércio”, a isso se resume a liberdade capitalista.
A ameaça da perda daquilo que a Revolução Bolivariana teve de mais avançado em seus melhores tempos, com a possibilidade real de vitória eleitoral da oposição, levou muitos descontentes com Nicolás Maduro não apenas a votar como também a se mobilizar de forma mais contundente. Com efeito, diversas vezes ao longo dessa campanha, Maduro se colocou em um tom defensivo, de candidato de uma frente contra a extrema direita e o neofascismo.
Reativação da mobilização popular: a invisibilização dos “pata en el suelo”
Aqui chegamos ao ponto mais importante e fundamental da nossa intervenção. “Pata en el suelo” significa em bom português: pé descalço. É com esses termos pejorativos que boa parte da oposição sempre se referiu aos chavistas, essa gente trabalhadora e pobre organizada em partidos e movimentos, disposta a lutar pela soberania de seu país e construir uma nova sociedade, com seus erros e acertos, como é de todo e qualquer processo.
Para aqueles interessados em manter a ordem vigente, um dos grandes pecados de Hugo Chávez foi não apenas apostar na mobilização popular permanente, como também em sua organização e politização. Isso ficava evidente nas “marés vermelhas” que enchiam ruas, avenidas e mais avenidas nas cidades do país cada vez que ele ia fazer um discurso, encampar uma nova batalha, fazer novas propostas, celebrar vitórias etc. Também ficou evidente nas vezes em que foi necessário responder rapidamente à violência e às tentativas de golpe, como em 2019, quando até mesmo a GloboNews teve de reconhecer que Nicolás Maduro possuía uma gigantesca base social e um poder de mobilização tamanho que pode repelir uma tentativa de invasão estrangeira, como naquele 23 de fevereiro de 2019.
Desde os tempos dos Círculos bolivarianos, entidades de base que foram fundamentais no combate ao golpe de abril de 2002 contra Hugo Chávez, o líder da Revolução Bolivariana sempre deu muito peso à organização popular. O PSUV, diferente dos partidos tradicionais, é um partido profundamente enraizado nos bairros, através das chamadas Unidades de batalha Hugo Chávez, cujas lideranças são eleitas pelas bases. É o maior partido de esquerda da América Latina. Também existem os chamados coletivos e os conselhos comunais, destinados à discussão e resolução de problemas das comunidades, isto é, formas embrionárias de poder popular.[11]
Entretanto, os conflitos, as graves crises pelas quais o país passa e passou, os anos à frente do poder, o congelamento do momento de conquistas sociais e de “avançar em direção ao socialismo” em prol da sobrevivência, são elementos que também atingem a própria base social chavista. Uma base social que viu perder muitas das conquistas que teve com a revolução, mas que não estava disposta a perder mais ainda para as privatizações, as desregulamentações e à subserviência ao imperialismo. Essa base se pôs em movimento.
Se bem o chavismo nunca teve problemas em fazer atos de massa, é muito interessante comparar a quantidade de pessoas presentes no ato de inscrição da candidatura de Nicolás Maduro no CNE, em 25 de março de 2024 com a quantidade de pessoas que encheram a Avenida Bolívar e seus arredores no comício de encerramento da campanha em 26 de junho. Há muitos e muitos anos o chavismo não promovia uma concentração tão grande, que chegou mesmo a lembrar os épicos comícios de Hugo Chávez. Ao se comparar as imagens dessas concentrações com concentrações, também expressivas realizadas pela oposição em seu encerramento de campanha, é possível evidenciar a diferença na composição social entre as duas.
Não há dúvidas de que essa mobilização organizada, característica mais essencial desse movimento político, foi a grande determinante para alcançar os pouco mais de cinco milhões de votos de Nicolás Maduro contra os pouco mais de quatro milhões para o principal oposicionista, Edmundo González, candidato indicado pela inabilitada Maria Corina Machado. Como dissemos anteriormente, isso está muito distante dos sete milhões de filiados que o PSUV tinha em 2020.
A participação de 60% nas eleições, lembrando que o voto é facultativo no país, também não foi das mais altas da história do chavismo. Em termos de voto, Nicolás Maduro havia tido 6,2 milhões de votos em 2018 e 7,5 milhões em 2013. Entretanto, a oposição também caiu de 7,3 milhões de votos em 2013, quando Capriles quase venceu a hegemonia chavista para pouco mais de quatro milhões neste ano. Dessa forma, não é apenas o chavismo que tem uma severa autocrítica a fazer. As oscilações da MUD que já entrou e saiu do jogo institucional inúmeras vezes, bem como a violência que promoveu também a desgastaram com uma população que já está cansada de guerra.
No entanto, uma coisa que passa desapercebida por muitos comentaristas, inclusive de esquerda, é que a primeira coisa que os gritos de “fraude” fazem é justamente invisibilizar essa base social. Trabalhadores da massa marginal, operários, camponeses organizados em comunas e cooperativas, homens e mulheres que lá como cá são acusados de terem “vendido” sua consciência em troca de um programa social. Dirigentes que, nesse momento, enquanto o mundo brinca com a soberania nacional e popular desse país correm risco de ter o mesmo destino que outros tantos companheiros em momentos em que a violência política tomou conta do país.
Comparado com as arremetidas da extrema direita venezuelana, o show bolsonarista que culminou com um quebra-quebra em 8 de janeiro de 2023 em Brasília parece brincadeira de criança. O esforço de todo um povo em contra-arrestar essa ofensiva reacionária simplesmente não existiu. Alguém com um botão manipulou todo mundo. O fato é: existem razões materiais que explicam a vitória de Nicolás Maduro nas últimas eleições.
Sempre há uma razão nobre para invisibilizar os trabalhadores que se organizam e suprimir sua vontade política quando o imperialismo considera que estão “equivocados”. O problema é que, novamente, isso custará mais vidas e mais sangue, como também custou na Bolívia em 2019, como também custou tantas e tantas vezes ao longo da história da humanidade.
*Francisco Prandi é mestre em sociologia pela USP.Notas[1] Sobre o sistema eleitoral venezuelano e o caráter democrático do regime vigente no país recomendamos: Tudo sobre as eleições na Venezuela – Análise de Breno Altman; Joana Salém: as eleições na Venezuela e o Brasil.[2] Cabe ressaltar a dificuldade de encontrar cifras confiáveis sobre a crise migratória vivida na Venezuela. Entretanto, podemos observar com os dados do CNE a evolução do número de eleitores aptos a votar: 15 milhões (2013); 9 milhões (2018); 13,6 milhões (2024).[3] Neste link.[4] Neste link.[5] Neste link.[6] Neste link.[7] Neste link.[8] Neste link.[9] Neste link.[10] Venezuela: land of grace.[11] Dois bons trabalhos sobre as comunas e o poder popular na Venezuela podem ser encontrados em Construindo a comuna, de George Ciccariello-Maher (Ed. Autonomia literária, 2020) e A construção do poder popular na Venezuela, de Jair Pinheiro (Ed. Lutas Anticapital, 2022).Veja neste link todos artigos de
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