Imagem: Elīna Arāja
Por ROMUALDO PESSOA CAMPOS FILHO*
Os erros de estratégia da esquerda brasileira no combate à extrema direita e ao fascismo
1.
Talvez eu seja duro nessa minha análise crítica sobre como as esquerdas latino-americanas têm se comportado diante das escolhas políticas que precisaram encarar, claro, com o nosso caso brasileiro especificamente.
Para saber como vamos lidar com esse crescimento da influência, principalmente entre as massas populares, da extrema direita, é preciso saber como e porque chegamos até esse ponto.
Alguma resposta precisa ser dada. Não adianta ficar nos indignando com as escolhas que o povo faz, ou como boa parte desse povo tem incorporado esse discurso fascista ou neofascista ou neonazista. Afinal, vamos culpar aqueles que assimilaram o discurso da extrema direita apenas tratando-os como ignorantes e alienados? Um rebanho de cegos seguidores de “mitos”, personagens ridículos de uma nova forma de fazer política? Como os apelidaram os cientistas políticos: os outsiders. É essa a explicação para todo esse turbilhão de alterações conjunturais em sociedades radicalizadas politicamente?
Aprendi ao longo de minha formação política, desde quando entrei na universidade como estudante, no começo dos anos 1980, que a metodologia mais importante para a compreensão da realidade é a dialética, criada por filósofos na antiguidade, e aperfeiçoada no século XIX por Hegel e depois por Marx e Engels. Por essa metodologia, e por sua dimensão filosófica, compreendemos o quanto é fundamental entendermos as contradições que governam nossas vidas, na natureza e na sociedade.
As contradições, o seu choque a partir das lutas dos contrários, o conhecimento da realidade objetiva, compreendendo as causas geradoras dos fatos, seus efeitos e as consequências, nos possibilitam ter a dimensão da realidade objetiva e concreta.
Assim, podemos dizer que não existe nenhum fato que não possa ser explicado a partir de suas causas geradoras. Ele, esse fato, tem uma razão de existir. Não surge do nada, nem podemos conceder ao acaso a condução do processo histórico. O que precisamos é saber fazer uma análise concreta da realidade objetiva. Ponto!
Quero ser enfático em uma questão, pois acredito que é consensual entre os que possuem ligações com a esquerda: desde a virada dos anos 2000, mais especificamente a partir do ataque às torres gêmeas, chegando ao ápice com a crise dos chamado “subprimes” e da especulação imobiliária nos EUA em 2008, como consequência da ganância que é o motor do capitalismo, o mundo entrou em uma crise econômica sistêmica da qual não se recuperou.
De lá para cá o que vemos no planeta é uma forte disputa geopolítica pelo controle da economia, com a disputa pela hegemonia entre grandes potências, principalmente EUA e China. A globalização mudou de lado, foi demonizada por Donald Trump e defendida por Xi Jinping.
Ora, como a esquerda se comportou desde a queda da União Soviética e da crise do chamado “socialismo real”? Substituímos um discurso revolucionário, de questionamento das estruturas do sistema capitalista, como altamente perversa a impulsionar uma vergonhosa desigualdade social, pela disputa eleitoral através dos caminhos da chamada “democracia ocidental”. A fim de atingir o poder político, assumir o controle político e comandar os destinos do nosso país. Assim como também passou a acontecer em outros países.
E deu certo, no aspecto político. Houve uma onda de eleições de lideranças de esquerda assumindo governos na América Latina e em outras partes do mundo. Até mesmo Barack Obama entrou nessa conta. Embora muito do que ele prometeu não foi cumprido. Mas ele foi importante, como os demais governos de esquerda em um aspecto: fez despertar com bastante força a luta identitária, antirracista e do empoderamento das mulheres. Questões importantes, a reforçar a necessária luta dos direitos humanos.
Acontece que o capitalismo não se movimenta por esses caminhos. O que determina a sua essência são as questões econômicas, a base, ou a infraestrutura que constrói todo o arcabouço do sistema. Inclusive no aspecto do sucesso ou fracasso de um determinado governo, seja à direita ou à esquerda.
2.
Então precisamos separar três aspectos. O econômico, o político e o social. Quando é possível a um grupo político alcançar sucesso na democracia? Quando há um fracasso econômico no comando do Estado, levando a que a população passe a ter descrédito por aquele grupo partidário ou ideológico que está à frente do governo. Assim aconteceu por muito tempo, quando levantamos a bandeira anticapitalista, em defesa de um sistema mais justo socialmente, e contra as estruturas construídas dentro da lógica sistêmica capitalista.
Bem como no ataque forte e ideológico contra as classes que comandavam, e comandam, o poder econômico seja com as grandes corporações, bancos e indústrias, a burguesia urbana; e contra o grande latifúndio, produtor de monocultura para exportação, perfidamente concentracionista. Passamos a combater cada vez mais o rentismo e o latifúndio. E a esquerda cresceu, à medida em que a crise econômica capitalista se intensificava.
Ora, com o poder político na mão, e o controle do governo seja na federação ou em estados importantes, o que coube a esquerda fazer? Aí podemos usar de forma ilustrativa a metáfora do cachorro que corre atrás dos carros exibindo os dentes para os pneus. Mas o que fazer quando esses veículos param? Não tem o que fazer. Ou pouco há para fazer.
Talvez eu esteja sendo bastante duro, até mesmo nessa comparação. Tudo bem. Mantenho o meu raciocínio. Vamos debater a questão, caso alguém se disponha. Por muito tempo esbravejamos contra o caráter desigual, perverso e concentrador de riquezas do capitalismo, e por isso a esquerda angariou um número cada vez maior de simpatizantes, socialistas ou não. Essas pessoas, através do discurso da esquerda, compreendiam a perversão na lógica sistêmica capitalista.
No entanto, o que se ofereceu para essa massa? O discurso do social, dos direitos humanos, de gênero e do antirracismo. Todas as questões absolutamente importantes numa sociedade desigual e preconceituosa. Mas e quanto às críticas feitas ao caráter perverso, desigual e concentrador do capitalismo? Ou às mudanças na economia que possibilitaria uma melhoria nas condições de vida das pessoas, que veriam não mais o paraíso nos céus, mas a garantia de vida digna na terra?
Deixou-se de lado o discurso antissistema e se passou à absoluta ineficaz tarefa de salvar o capitalismo, ou de pelo menos tentar moderar suas perversões. E, no controle do Estado, a difícil tarefa de lidar com contradições que impunham a necessária subserviência de seus governos aos poderes dos senhores locais, personagens corruptos que por décadas dominam a política passando a herança de suas riquezas e de suas influências políticas para filhos e filhas.
As oligarquias agrárias regionais só se fortaleceram. E passamos a mudar a nomenclatura da luta contra esses segmentos. Deixamos de nominá-los de latifundiários para nos referirmos a agronegócio. Isso é como deixar de classificar os venenos que se espalham pelas produções como agrotóxicos e passar a chamá-los de “defensivos agrícolas”. Esse foi um dos erros, porque o “agro virou pop”, e se tornou a alavanca do PIB nacional. E os fazendeiros latifundiários prosseguiram ampliando seu poder e grilando cada vez mais terras.
Amenizamos as críticas aos bancos, porque eles passaram a ser parceiros importantes em muitos programas e políticas de governos. E se adequaram bem ao discurso de “investimento no social”. A burguesia migrou fortemente para o rentismo e a indústria brasileira foi indo ladeira abaixo, escorada no investimento estrangeiro em novas fontes de tecnologias que, por óbvio, expulsou milhões de pessoas de seus empregos. E lá se vai aumento na concentração de riquezas e de renda.
Fomos perdendo gradativamente nossos discursos revolucionário, à medida em que se percebia a possibilidade de ascensão ao poder, mediante a participação no processo eleitoral. E isso aconteceu, e foi se espalhando.
Mas sem nenhuma mudança no caráter desigual da estrutura do sistema, já em meio a uma crise forte, oriunda de uma globalização fracassada. Os Estados se fragilizaram salvando corporações financeiras, e até mesmo grandes fábricas automobilísticas, e o desemprego foi se espalhando cada vez mais. Ao mesmo tempo, o parlamento majoritariamente conservador insistia em cortar direitos dos trabalhadores, seja no tocante ao trabalho, como na questão previdenciária.
3.
E a esquerda no Poder. Em meio à crise econômica e tentando geri-la. Pois, claro, é papel de quem está no governo. Sendo assim, de pedra nos tornamos vidraças. As pessoas, que acreditaram no discurso da construção de uma nova sociedade, de redução das desigualdades, tornaram-se revoltadas, ressentidas, desesperançadas e fragilizadas em suas condições sociais. Frustradas em suas melhores expectativas de passarem a viver com dignidade.
Isso aconteceu por um tempo, para boa parte da população, por meio de programas sociais importantes, que amenizaram as condições péssimas de vida de dezenas de milhões de pessoas. Mas isso não foi sustentável. Simplesmente porque não é somente sair da miséria para a pobreza que contenta as pessoas no capitalismo. Pior ainda é uma classe média não ser saciada em sua expectativa de chegar ao topo da pirâmide social. Naturalmente ela se radicaliza e joga por terra todo o apoio concedido, se suas expectativas não são atendias.
O que temos assistido neste século é um fracasso econômico dos estados na tentativa de salvar um sistema moribundo, mas que mantém as classes dominantes cada vez mais ricas, no limite de suas vergonhosas contradições, pois isso se dá com um aumento crescente do endividamento da maioria da população. Diante disso, e da impossibilidade de apresentar aquilo que foi oferecido por décadas, de a esquerda assumir o poder para combater a desigualdade que o capitalismo impunha, o que restou aos governos progressistas foi elevar o tom na defesa de questões sociais, radicalizando na defesa de legislações e políticas que pelo menos amenizasse o sofrimento de boa parte da população, sujeita a preconceitos os mais perversos possíveis.
Só que isso despertou, por outro lado, uma extrema direita que vivia nos porões da política, sem até então nenhum tipo de protagonismo que a colocasse como alternativa ao poder, sempre disputado entre a esquerda, centro e centro-esquerda no espectro político brasileiro, desde a redemocratização do país. Aliou-se ao fundamentalismo evangélico e ao movimento conservador católico carismático, alguns pastores se tornaram parlamentares e construíram um forte movimento dentro e fora do Congresso Nacional, passando a influenciar os rumos da política institucional e a liderar uma malta de pessoas desiludidas, fracassadas e assustadas com a falta de perspectiva e insegurança crescente.
Foi fácil arrastar essa turba para engrossar a pauta da extrema direita, juntando a alta burguesia, os latifundiários e os movimentos religiosos conservadores.
Por outro lado, foi instrumentalizado todo um aparato midiático tradicional e oficial, na defesa dos interesses das camadas dominantes, e uma onda de influenciadores religiosos e outros personagens oportunistas, a fim de desconstruir todo o discurso da esquerda na defesa de um sistema alternativo ao capitalismo. E, mediante a acusação de corrupção (sempre um risco para quem controla o estado) e de usar as instituições para o interesse ideológico, construindo uma falsa narrativa de guerra cultural, disseminando entre a população dúvida e raiva.
A partir de todo esse movimento, e enquanto a esquerda se enrolava tentando gerenciar a crise do estado capitalista, a extrema-direita ergueu o discurso de “antissistema”. Numa postura absolutamente hipócrita, porque esse segmento se coloca contra as estruturas políticas e a democracia (embora defensores do autoritarismo e das ditaduras), não contra o sistema capitalista. Mas é uma dubiedade que confunde pessoas que não possuem discernimento suficiente para compreender a dimensão de cada significado desses objetivos. E o discurso “antissistêmico” da extrema direita passou a envolver principalmente quem por muito tempo era os pilares dos discursos revolucionários: a juventude. Isso foi muito marcante na Argentina, mas também aqui no Brasil.
Mesclando o discurso forte, antissistema, com a pauta conservadora dos costumes, na contraposição às lutas encampadas pela esquerda, e tornada praticamente a principal bandeira de suas ações, a extrema direita passou a se fortalecer, e, a construir um forte discurso reacionário, na defesa de questões que se imaginava estarem resolvidas, a ponto de surgirem personagens defendendo a aberrações de governos ditatoriais militares. E isso sendo aceito e disseminado na sociedade, desde o topo à base da pirâmide social.
Nessas circunstâncias, não criadas pelas esquerdas, mas pela tentativa de se adaptar a elas e amenizar a crise (condição natural para quem assume governo em um Estado capitalista) a extrema direita foi acuando cada vez mais os setores progressistas e a apresentar os mais diabólicos e extremistas personagens, com discursos claramente fascistas, eivados de todos os tipos de preconceitos e fortemente violentos.
Isso levou os setores conservadores a construírem uma base parlamentar enorme, como nunca se viu na política brasileira, e a ganharem eleições nos estados e no governo brasileiro, mas não somente por aqui. Isso já vinha acontecendo pela Europa (Itália, Polônia, Hungria, Grécia…), nos Estados Unidos, e em boa parte da América Latina, até chegar ao mais novo energúmeno a ser alçado à condição de presidente: o histriônico Javier Milei, eleito presidente da Argentina.
Porque tudo isso que relatei anteriormente, embora com foco no Brasil, aconteceu também na Argentina. E ainda vai acontecer em diversos outros países, enquanto a esquerda não voltar a ter um discurso forte, verdadeiramente contra o sistema capitalista, e apontando objetivamente alternativas a essas estruturas perversas que existem.
Não estou apresentando nenhuma receita, e sei que essa é a parte mais difícil. Mas só sai de uma enrascada tentando entender como se chegou a ela. E se me estendi nessa abordagem, falando o que pra mim por todo esse tempo sempre foi o óbvio é para dizer que não há surpresa nenhuma no que está acontecendo. A esquerda precisa mudar a estratégia. Como a extrema direita fez. Para retomar um discurso que já se fazia até as datas iniciais deste século. Ou seja, naquele momento em que as pessoas começaram a acreditar nos discursos e eleger partidos de esquerda para os governos, como consequência da crise sistêmica capitalista.
Não estou sugerindo que se esqueça bandeiras importantes na luta pelos direitos humanos, nas questões de gêneros ou antirracistas. Mas essas não podem se constituir em embates radicalizados, de importância maior do que aquelas que nos mostrem, de forma geral, quais são as raízes de todos esses males que nos consomem. É necessário que saiamos da especificidade e retomemos bandeiras gerais, de fato antissistêmicas, num enfrentamento ideológico claro, de forma a contribuir com a formação política e intelectual das camadas oprimidas, no objetivo daquilo que sempre nos miramos, mesmo que numa esperança utópica, da construção de um sistema mais justo e menos desigual.
Apontar as mazelas do capitalismo, mesmo para quem é parlamentar ou está em um governo, deve ser o objetivo de quem se elegeu criando expectativas e estimulando sonhos dos desfavorecidos socialmente, e de uma classe média que por muito tempo apostou nas pautas dos partidos de esquerda.
O combate à pobreza e à desigualdade social não pode ser travado sem deixar claro que essas condições são criadas por um sistema injusto, escorado na ganância e na usura. Só assim poderemos nos livrar dos Bolsonaros e dos Mileis, que estão a se multiplicar, porque a esquerda não está sendo convincente na apresentação de alternativas ao sistema capitalista.
É preciso deixar claro que a extrema direita não é, nem nunca foi, antissistema. Sua luta é contra a democracia liberal e o socialismo. Mas usa de um discurso escorado na falsa e hipócrita defesa de costumes, apoiando-se no medo que se dissemina na maneira como se dá essa comunicação, por meio da religião, embora também reflexo da crise: fragilidade, ignorância, medo e ressentimento, alimentam a extrema direita e faz ressurgir a sombra do fascismo.
É difícil reverter isso? É. Mais difícil, no entanto, está sendo viver nessa conjuntura política e nessa crise estrutural sistêmica. E enquanto eu escrevia esse texto me deparei com o mais novo trabalho sobre as desigualdades sociais, refletidas no Relatório da Oxfam sobre o consumo dos 1% mais ricos, escandalosamente maior do que os 99% restante. E que “Em 2030, as emissões do 1% mais rico do mundo deverá ser 22 vezes superior ao limite seguro de emissões permitidas”.
Ou seja, não há salvação para a humanidade enquanto perdurar essa lógica que movimenta expansivamente o sistema capitalista. É dever da esquerda retomar seu discurso e sua prática revolucionária antissistêmica. Refazer a utopia, e fazer as pessoas sonharem novamente com outro mundo, sem essa lógica perversa e desigual que o capitalismo impõe. Antes que seja tarde.
*Romualdo Pessoa Campos Filho é professor titular do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (UFG).Veja neste link todos artigos de
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