segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

14 de dezembro de 2024


TARSO GENRO*

A prisão do general é o ápice da mudança de qualidade da crise de alta intensidade, que vem desde a inquisição medievalista encetada pela república de Curitiba

O livro do meu amigo Nicolás Sartorius (La democracia expansiva, Anagrama) chegou às minhas mãos nesse 14 de dezembro do ano de 2024. A chegada do livro despertou na minha memória política as coincidências características de uma época: a transição do franquismo para a democracia na Espanha – com a tentativa de golpe do Coronel Tejero – em fevereiro de 1981; a crise final das ditaduras na América Latina, amadurecida no início dos anos 1880; e hoje também a prisão do general Braga Netto – aqui no Brasil – que pode ser um impulso à transição do sórdido militarismo da Guerra Fria para uma profissionalização das nossas Forças Armadas, como ocorreu na Espanha na década de 1980.

Nicolás Sartorius,advogado e ensaísta, é de uma geração política que que lhe permitiu ser co-fundador das “Comisiones Obreras”, deputado do PCE e da Izquierda Unida, em três legislaturas, que tem obras sobre a transição espanhola, sobre a crise da ideia marxista que vingou no projeto socialista pela influência da URSS e também sobre a nova linguagem na política democrática, sobre a transição climática e os novos enunciados para o socialismo democrático.

Muito aprendi com Nicolás Sartorius, na Fundação Alternativas, sobre a ditadura franquista (que lhe prendeu e condenou em várias oportunidades), sobre a Europa e a crise da socialdemocracia, nos vários colóquios que organizamos juntos, com personalidades europeias e brasileiras, nos debates sobre a democracia, paz, socialismo e o Estado de Bem-Estar.

Nicolás Sartorius narra (a partir da página 232) que quando o Presidente de Governo Adolfo Suarez (um quadro franquista que emergiu como “centro” na transição espanhola) recebeu em La Moncloa (em agosto de 1977) dois anos depois da morte de Franco, os representantes dos Sindicatos para acordar um “pacto social”, a proposta do Presidente de Governo foi recusado pelos sindicalistas. Eles entenderam que a saída economicista, proposta pelo regime, não teria o aval dos partidos políticos, que poderiam dar suporte a um processo constituinte efetivamente democratizante do país, o que ocorre posteriormente, em 1978.

Em 23 de fevereiro de 1981, um fato político-militar na Espanha lembra os acontecimentos de 8 de janeiro do ano de 2023 aqui no nosso país. O episódio vincula o General Braga Netto como um dos organizadores do novo golpismo nacional, que foi preso por ordem do Supremo Tribunal Federal, fato que nos dá a esperança de que, analogicamente ao que ocorreu na Espanha, o Golpe de Braga e Bolsonaro tenha o mesmo destino da tentativa golpista do Coronel Tejero.

Tejero invadiu o Parlamento gritando histericamente – apoiado numa falange de soldados e metralhando o teto – para que todos se jogassem no chão. Dois se recusam: Santiago Carrillo, deputado comunista e Adolfo Suarez, ex-franquista que representava o centro, que aderira então sem restrições ao projeto democrático em construção. Naquele ato, ambos simbolizaram a decisão democrática da sociedade espanhola de caminhar em direção à Europa, como já fizera Portugal em 1975, na Revolução dos Cravos. Para o arquivo das ironias da História, é a mesma Europa dos países que hoje silenciam ou apoiam o genocídio Palestino.

Neste sábado, dia 14 de dezembro de 2024, “acusado de integrar a articulação de um plano de golpe de Estado” e de tentar obstruir investigações sobre o processo golpista, foi preso pela Polícia Federal o general de Exército Braga Netto. Não se espantem: Walter Braga Netto é um general comum, não é um Golberi do Couto e Silva – direitista culto elaborador de políticas para o Estado Nacional brasileiro – nem um Jarbas Passarinho, erudito senador e qualificado negociador dos interesses da corporação militar na transição. Braga Netto é um Tejero sem tiros! Sua prisão é a prisão de um chefe de bando, que expôs seus colegas de farda e suas famílias, de uma forma sórdida e doentia, desonrando – com o seu servilismo a Jair Bolsonaro – os mais elementares princípios de um convívio social corporativo.

O lento isolamento político de Jair Bolsonaro no país está assentado em três fundamentos, que esgotaram seu encanto, tanto nas bases dos deserdados sociais da democracia, como nos setores lumpen-burgueses mais evidentes do país: a falta de lucidez psicótica do Líder é um dos fundamentos; o desgaste da sua política de estragos ao Estado Nacional, pela sua gestão destrutiva – inclusive na pandemia – é outro fundamento; e o principal (e terceiro) é a sua irreverência em relação ao mundo político tradicional, inclusive com aqueles setores das classes dominantes não pragmaticamente simpáticos ao protofascismo que ele representa.

A prisão do general é o ápice da mudança de qualidade da crise de alta intensidade, que vem desde a inquisição medievalista encetada pela república de Curitiba. Amparada no golpe “parlamentar” contra o mandato da Presidenta Dilma Rousseff, a inquisição da República de Curitiba reforçou a extrema direita, já globalmente estimulada nas redes sociais, e acentuou a dissolução da democracia liberal, já cercada de mais desigualdades e de mais consumo suntuário: os pequenos “mussolinis” espirituais que adormeciam na periferia das grades fortunas do mundo, então, vieram furiosamente à tona!

Neste mesmo dia de 14 de dezembro, o presidente Javier Milei, no Festival Juvenil “Fratelli D’Itália”, conclave da extrema direita italiana juvenil, agradecia à Presidente do Conselho de Ministros Giorgia Meloni, pelo honroso convite que recebera. No seu discurso dizia o seguinte: que não lhe importa “un rábano” (“não estou nem aí”) a opinião dos políticos e que “escutar os políticos é o mesmo que ficar de costas para os cidadãos”.

Javier Milei foi mais longe: que “nunca se deve negar as próprias ideias para conseguir votos” e que a única forma de “combater o mal organizado” (o inimigo) é com o “bem organizado” (o partido, para ele, uma “parte” carismática) e, finalmente, que “diferente da economia”, a política (burguesa tradicional) é “jogo de soma zero”.

Estes argumentos de Javier Milei, guardadas as suas especificidades históricas, hoje tem – para a direita fascista subversiva da democracia liberal – o mesmo peso que tiveram, na época áurea da luta pelo socialismo de caráter marxista, os discursos revolucionários da esquerda contra a “democracia burguesa.”

A velha cantilena fascista, todavia, eivada de um libertarismo pós-moderno, vem para fazer política em alto estilo e, igualmente, para negar a política que, para Javier Milei, sempre resulta em “soma zero”. Por isso, ao afirmar que a economia deve quebrar o que resta da política liberal, ele promove o apocalipse da democracia política num país culto, como a Argentina, derrotando a cultura como indicativo civilizatório, que não se vincula necessariamente ao humanismo burguês. E que tudo, como sempre, é soprado pelos interesses mais comezinhos que estão em disputa, num terreno chamado frequentemente de luta de classes.

A finalidade mais evidente da ação canina de Javier Milei, que sempre se diz cretinamente um “não político”, é fazer, através do Estado (por ele falseado como “não” político) a uniformização da opinião para criminalizar qualquer política divergente. É um fascismo amparado na socialização da demência, que se transforma em morbidez popular, ativada de forma geometricamente progressiva pelas redes sociais.

Javier Milei é o Coronel Tejero da pós-modernidade, com uma diferença substancial: seu discurso capta corações e mentes das bases da revolução socialista, que estão em movimento declinante. Resistir é também reformar as instituições democráticas para devolver à maioria do povo as esperanças numa vida melhor, mais livre, mais aberta e pautada pela igualdade.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).



 

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