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À princípio, queda de Assad faz dois perdedores: Irã e Rússia. Ganham Turquia, Israel e EUA. Mas ressurge o fantasma da revolta árabe, agora fundamentalista. Uma região crucial para a supremacia do dólar está mais instável que nunca
Por M. K. Bhadrakumar, em Indian Punchline | Tradução: Glauco Faria
O Irã e a Rússia são os dois grandes perdedores na destituição do presidente da Síria, Bashar al-Assad, no domingo (8/12), pelos grupos islâmicos sunitas afiliados à al-Qaeda. Assad fugiu na hora certa, depois de dar ordens para que houvesse uma transferência pacífica do poder. A probabilidade é de que ele esteja na Rússia. De qualquer forma, reverter a tomada do poder pelos islamitas na Síria está fora de questão.
As oligarquias árabes da região do Golfo estão muito preocupadas com o surgimento de uma variante do Islã político que pode representar-lhes um desafio existencial. Não é de surpreender que elas tenham gravitado em torno do Irã, a quem veem como um fator de estabilidade regional, retribuindo o apelo de Teerã aos Estados regionais para que se unam para evitar o desafio dos grupos “Takfiri” (codinome da Al-Qaeda e do Estado Islâmico na narrativa iraniana).
Israel e Turquia são os maiores vencedores, pois estabeleceram vínculos com os grupos da Al-Qaeda. Ambos estão bem preparados para projetar poder na Síria e criar suas respectivas esferas de influência no território do país. A Turquia exigiu que a Síria pertencesse somente ao povo sírio – um pedido mal disfarçado de fim da presença militar estrangeira (russa, norte-americana e iraniana).
Da mesma forma, o governo Biden pode estar satisfeito com o fato de que a presença militar russa não permanecerá intocada e que uma perda dramática de influência cerca as bases militares de Moscou na província ocidental síria de Latakia.
Não há dúvida de que o governo “pato manco” em Washington terá um prazer indireto com o fato de que a nova presidência de Donald Trump terá de lidar com a instabilidade e as incertezas prolongadas na Ásia Ocidental, uma região rica em petróleo que gera o petrodólar, que é a base do sistema bancário ocidental – o dólar americano, em particular -, crucial para o eixo “America First” das políticas externas do novo governo.
Sem dúvida, sob a superfície do quadro geral, há vários sub-enredos, alguns dos quais, pelo menos, são de contrários ao fluxo principal. Em primeiro lugar, os novos apelos ouvidos em conjunto pelo grupo de Astana (Moscou, Teerã e Ancara) e pelas capitais regionais para o diálogo intra-sírio que leve a um acordo negociado têm um toque de irrealidade. Ele decorre do medo primitivo, diante da manifestação de uma variante extremista do islamismo político que a região nunca havia experimentado antes em sua história. Certamente, o clima internacional atual praticamente exclui qualquer perspectiva de “diálogo” em um futuro previsível. Pelo contrário, é provável que toda a região seja convulsionada pelos tremores da Síria.
Os EUA devem estar satisfeitos com a mudança de regime em Damasco e darão continuidade aos esforços para o fechamento das bases russas na Síria. Eles declararam sua intenção de continuar com a ocupação da Síria, o que é importante se quiserem remodelar a região para atender a seus interesses geopolíticos.
Em segundo lugar, a Turquia tem interesses especiais na Síria em relação ao problema curdo. O enfraquecimento do Estado sírio, especialmente do aparato de segurança em Damasco, proporciona à Turquia, pela primeira vez, um espaço livre nas províncias da fronteira norte, onde os grupos separatistas curdos estão operando. A presença militar e de inteligência turca na Síria se expandirá aos trancos e barrancos.
Basta dizer que a ocupação turca do território sírio pode assumir um caráter permanente, e até mesmo uma quase anexação de regiões está dentro das possibilidades. Não se engane: o Tratado de Lausanne (1923), que a Turquia considera uma humilhação nacional, acabou de expirar e chegou a hora do acerto de contas para recuperar a glória otomana. A atual liderança turca está comprometida com a geoestratégia do neo-otomanismo.
Portanto, o que está em jogo é a soberania e a integridade territorial da Síria e a desintegração do país como um Estado. Foi relatado que tanques israelenses cruzaram a fronteira com o sul da Síria. Sem dúvida, Israel pretende conquistar muito mais do que o território sírio além das Colinas de Golã. O sonho da Grande Israel deu um passo gigantesco em direção à realidade. Em seguida, vem o Líbano, que Israel não pode deixar de querer controlar se quiser ser a potência regional dominante no Levante e um influenciador na política do Mediterrâneo Oriental. De acordo com a mídia israelense, Tel Aviv tem contatos diretos com os grupos islâmicos que operam no sul da Síria. Não é segredo que esses grupos estavam sendo orientados pelo exército israelense há mais de uma década.
Assim, na melhor das hipóteses, é de se esperar uma Síria truncada, um Estado rudimentar, com a continuidade da interferência externa em larga escala e, na pior das hipóteses, o revanchismo turco e a agressão israelense juntos – mais a ocupação estadunidense do leste da Síria e uma autoridade central fraca em Damasco. O país em seu formato atual, traçado em 1946, pode desaparecer completamente do mapa da Ásia Ocidental.
Na verdade, os países do Golfo e o Egito têm motivos para se preocupar com uma Primavera Árabe 2.0 – oligarquias sendo derrubadas e substituídas por grupos islâmicos militantes locais que expressam a revolta do povo. Seu nível de conforto com Teerã ampliou-se sensivelmente. Mas, é claro, os EUA combaterão essa tendência regional que, de outra forma, isolaria Israel na região.
A Rússia tem uma mentalidade notoriamente pragmática e uma declaração do Ministério das Relações Exteriores no domingo deu a entender que Moscou já está elaborando um plano B para reforçar sua presença militar na Síria, pelo menos no curto prazo. É interessante notar: a declaração apontou que Moscou está em contato com todos os grupos de oposição sírios. A declaração evitou escrupulosamente usar a palavra “terrorista”, que as autoridades russas vinham empregando livremente em sua retórica estridente para caracterizar os grupos sírios que tomaram Damasco. Moscou tem motivos para temer a ressonância do Islã Político como uma ideologia sedutora em suas repúblicas muçulmanas do norte do Cáucaso.
A embaixada russa em Damasco não está correndo nenhum perigo. É totalmente concebível que a inteligência russa, que tradicionalmente é muito ativa na Síria – por motivos óbvios – já tenha começado a sensibilizar Moscou sobre a transição de poder em Damasco e tenha mantido contatos com os grupos islâmicos da oposição, apesar da retórica pública estridente.
Em comparação, o Irã sofre um sério revés do qual dificilmente se recuperará tão cedo, já que a ascendência dos grupos sunitas extremistas que aderem à ideologia da Al-Qaeda levará a um novo cálculo de poder na Síria, agora visceralmente hostil a Teerã. A evacuação de diplomatas seguida da invasão da embaixada iraniana em Damasco fala por si só. Na verdade, Israel não poupará esforços para garantir que a influência iraniana seja exorcizada da Síria.
O cerne da questão é que a influência regional do Irã diminui significativamente à medida que os grupos de resistência (que são em grande parte xiitas) ficam desnorteados e desiludidos. Isso não só é vantajoso para Israel, mas também desencadeia uma profunda mudança no equilíbrio de forças regional, que terá ressonância nos conflitos atuais no Grande Oriente Médio como um todo em uma perspectiva de longo prazo. Isso afetará Gaza, o Líbano e até mesmo em lugares distantes como a Ásia Central e o Sul da Ásia. O resultado final é que o gênio da Al-Qaeda finalmente saiu da garrafa e não há como deter sua agenda pan-islâmica.
A parte surpreendente é que o Irã não conseguiu prever o desernrolar dos acontecimentos. Por incrível que pareça, na sexta-feira (6/12), Ali Larijani, conselheiro do líder supremo, visitou Damasco, reuniu-se com Assad e reiterou o total apoio de Teerã para deter a onda de forças islâmicas que já
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