segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Delenda est Selic

BC mantém Selic em 6,5%

Essa taxa, ao contrário do que pretende ser, é um indicador subjetivo da inflação futura que estimula o processo inflacionário.

J. Carlos de Assis
brasil247.com/

O senador romano Catão, o Velho, encerrava seus discursos invariavelmente com a frase: Delenda est Carthago (Cartago deve ser destruída). Para ele, tratava-se de derrotar de forma definitiva um inimigo que desafiou Roma em duas prolongadas guerras anteriores e ainda disputava com ela o domínio do mar Mediterrâneo. A terceira guerra se travou em 146 a.C. E, como exigia o senador, Cartago foi implacavelmente aniquilada junto com todo seu poder naval e sua civilização.

É o que espero que aconteça, um dia, preferivelmente no mais curto prazo possível, com a Selic, usada como taxa de juros básica da economia e instrumento para controle da inflação dentro da meta estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional. Essa taxa, ao contrário do que pretende ser, é um indicador subjetivo da inflação futura que estimula o processo inflacionário. Preanunciada de 45 em 45 dias pelo Bacen, avisa a todos os aplicadores financeiros e empresários produtivos sobre o mínimo que devem esperar dos juros futuros e do aumento dos preços no mercado.

Como o presidente Lula deve ter concluído, foi uma perda de tempo trocar o presidente do Banco Central no suposto de que ele contribuiria para reduzir a taxa de juros. Gabriel Galípolo não é absolutamente um único centímetro diferente, nessa matéria, do que seu antecessor Campos Neto. Ambos são igualmente escravos da Selic. E a Selic é o meio pelo qual as oligarquias financeiras dominam a política monetária do País através de uma aliança espúria com a aristocracia financeira do Governo.

Vejamos o que é a Selic. Ela foi introduzida em 1979 pelo Banco Central na economia brasileira - portanto, em plena ditadura militar -, como uma espécie de jabuticaba que só dá em nosso território. Seu objetivo era de regulação do mercado aberto com títulos públicos federais. Aos poucos começou a ganhar terreno como indexador de títulos em outras áreas financeiras e contratuais, até tornar-se, hoje, um indexador geral da economia, incluindo o mercado real.

É fixada e anunciada de 45 em 45 dias pelo Bacen, numa espécie de acordo entre os diretores dessa banco e os grandes bancos e corretoras privadas, com base em expectativas subjetivas sobre a inflação futura e alguns indicadores de mercado – entre os quais, curiosamente, a própria Selic passada. A taxa é picotada ao dia pelo Bacen, para que coincida com a anunciada previamente, a fim de que sirva como correção monetária diária para aplicações no mercado financeiro oficial, com o que surge na economia a figura fantástica da “moeda remunerada”.

A “moeda remunerada” é uma moeda de classe. A ela só têm acesso os grandes milionários, e também as classes médias superiores, que têm saldos diários de depósitos bancários que rendem juros e que são sacáveis a qualquer momento. Por trás disso existe um gigantesco processo de transferência de renda do conjunto da sociedade, que não tem acesso à Selic picotada ao dia, para aqueles que mantêm depósitos nos bancos em qualquer prazo, inclusive de um dia para o outro, sempre com plena liquidez.

Além dessas distorções, a Selic, na prática, funciona como uma força estrutural para colocar toda a economia num patamar de preços acima do que seria razoável em relação com o resto do mundo. Quando tomam conhecimento prévio dessa taxa anunciada pelo Bacen, os empresários, não apenas os financeiros, mas também os do setor produtivo, tratam de adaptar seus custos a ela, e imediatamente os repassam aos preços

Isso muda profundamente o caráter da exploração e do sistema de acumulação de lucros do Capital. Nos primórdios dele, a acumulação de lucros se baseava principalmente na exploração do Trabalho, às vezes de forma extrema. Posteriormente, na medida em que o trabalho se expandia na esteira da expansão do próprio sistema produtivo capitalista, o número de trabalhadores aumentou e, com ele, sua força social, que lhe permitiu extrapolar sua área específica de atuação e se tornar uma espécie de vanguarda de toda a sociedade.

Viu-se isso, entre nós, na Constituição brasileira de 1988, com seus amplos direitos sociais inspirados pelas instituições dos trabalhadores, ainda fortes. Mas começou a desaparecer pouco depois com a destruição dos direitos sociais constitucionais engolidos pela ascensão do conservadorismo e do neoliberalismo, com as reformas previdenciária e trabalhista dos governos Fernando Henrique, Temer e Bolsonaro.

Isso não aconteceu por acaso. Na medida em que o Capital mudou sua natureza, o Trabalho também mudou. O Capital produtivo, que está absorvendo cada vez mais tecnologia, dispensa milhões de trabalhadores, reduzindo o número de sindicalizados e sua força social (são apenas 8% dos empregado pela CLT). Por outro lado, ele reforça sua aliança com o Estado, de forma “invisível”, através das política fiscal e monetária (de forma similar à aliança do Capital com o Estado nos primórdios do capitalismo, usando a polícia em nome da estabilidade social).

Dessa forma, não há mais uma vanguarda social organizada para enfrentar o Capital, inclusive na questão vital da proteção do meio ambiente contra suas forças predatórias. A acumulação de lucros segue seu curso normal, ao ritmo da Selic ou acima dela, tendo os efeitos colaterais da explosão da Dívida Pública, que impõe ao País um serviço anual em juros, correção monetária e amortização da ordem de R$ 1 trilhão.

É nesse sentido que o conflito social básico no Brasil já não é entre Capital e Trabalho – que perdeu sua significação enquanto poder de pressão a seu favor contra o Estado -, mas entre Capital e o conjunto da Sociedade, que, porém, já não tem uma vanguarda organizada que a proteja. Ficaremos ao sabor das oligarquias econômicas em associação com a mídia corporativa e aristocracia pública, exercendo uma tremenda influência nas políticas econômicas centrais, enquanto o Estado Social é esmagado progressivamente com os chamados cortes anuais do orçamento primário. Diante disso, vou insistir: “Delenda est Selic!”

Publicado originalmente na “Tribuna da Imprensa” online.



 

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