dossiê piauí_umane - O COMPLEXO: PARTE IV_MÃOS À OBRA
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A enfermeira Maria da Conceição Mendonça Costa estava em Areia Branca, a cidade sergipana onde nasceu, quando recebeu o telefonema, no início de maio do ano passado. Do outro lado da linha, o secretário de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, Adriano Massuda, disse: “Vamos para o Rio Grande do Sul. Toma o primeiro voo, sem saber quando volta.” Os gaúchos estavam enfrentando a maior catástrofe climática de sua história, com chuvas e inundações que haviam começado em abril e atingiriam 478 municípios, deixando 183 mortos e desalojando mais de 400 mil pessoas. Costa fez as malas e partiu. Em 5 de maio, quatro dias depois do telefonema, a Força Nacional iniciou seus trabalhos no estado.
Uma cena marcou a enfermeira: os caixões desenterrados pela força da enchente que flutuavam no cemitério na Ilha da Pintada, antiga vila de pescadores, hoje mais conhecida por suas mansões. “A tragédia é democrática”, disse ela à piauí, meses mais tarde, depois de desfilar no Sete de Setembro, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, representando a Força Nacional com nove colegas, todos vestidos de macacão azul-celeste. Dez colegas, ali, representavam uma multidão – a multidão que, na hora das catástrofes, ou durante a mais comum das rotinas diárias, faz girar a monumental máquina do SUS.
Monumental não é uma hipérbole. O SUS emprega 2 526 667 pessoas, segundo dados mais recentes. Se fosse uma empresa privada, o SUS seria o maior empregador do mundo. Sua força de trabalho supera o Walmart, a empresa que, em termos globais, ocupa o primeiro lugar em número de trabalhadores, com 2,1 milhões de funcionários. Se fosse uma cidade, a massa que trabalha no SUS formaria o quarto maior município do Brasil, depois de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. E a imensa maioria dessa legião é formada por mulheres, à razão de três para cada homem.
O leque de trabalhadores do SUS inclui uma grande variedade: médicos de diferentes especialidades, enfermeiros e auxiliares de enfermagem, agentes comunitários de saúde, agentes de combate às endemias, agentes indígenas de saúde e de saneamento, biomédicos, biólogos, fisioterapeutas, cirurgiões-dentistas, farmacêuticos, psicólogos, assistentes sociais, fonoaudiólogos, parteiras, esteticistas, terapeutas ocupacionais, educadores físicos, médicos veterinários, nutrólogos, cuidadores, mães sociais e técnicos, muitos técnicos – em enfermagem, em farmácia, em saúde bucal, em vigilância sanitária, de laboratório, em radiologia, em órteses e próteses, em óptica e optometria, em segurança do trabalho, em nutrição e dietética. Desse conjunto, 43% têm vínculo permanente com o SUS, e a maioria (57%) é terceirizada.
“O nosso ponto forte, o ponto forte do SUS, é estabelecer uma relação concreta com os pacientes”, diz a enfermeira Antonilde Maria Ribeiro Pereira Beccaro, de 46 anos, que também é formada em direito e atua há 22 anos na saúde. Sua carreira começou no município de Bequimão, na Baixada Maranhense, a 75 km de São Luís. “A miséria era absurda”, recorda Beccaro. Entre 2002 e 2004, período em que trabalhou na região, ela cuidava da população do Ramal do Quindíua, um quilombo onde as casas eram de taipa e os moradores dispunham de um único poço de água. A mortalidade infantil era trágica: para cada 10 crianças, entre 4 e 5 morriam antes de completar 1 ano. No caminho para o trabalho, a enfermeira via os pequenos caixões sendo levados para os cemitérios.
Em outubro passado, o SinSaúdesp até promoveu uma paralisação para protestar contra precariedades no trabalho via OSS. “Não há igualdade nos valores da alimentação, seja no vale-refeição, seja na cesta básica”, diz Caproni. De acordo com Mário Bonciani, médico do trabalho do SinSaúdesp, o tratamento desigual se reflete na saúde dos profissionais terceirizados. Problemas como lombalgias chegam a 58% do total de reclamações, seguidos pelos transtornos mentais, como ansiedade e depressão (39%). “A minha avaliação é que, depois do advento das OSS, o quadro piorou porque se perdeu a capacidade de ver o trabalhador com mais cuidado”, diz Bonciani.
O traumatologista Tadeu Ferreira Soares, de 48 anos, trabalha no SUS em São Paulo, em dois hospitais: no Santa Marcelina – que é filantrópico e atende pelo sistema público nos casos de emergências e traumas – e no Hospital Geral Itaim Paulista, que é porta aberta. Ele conta que gostaria de trabalhar somente no SUS, mas faz também cirurgias particulares na unidade Pompeia do Hospital São Camilo, na Zona Oeste, e no Hospital Central Leste, da Rede D’Or São Luiz, em Guaianases, extremo Leste da metrópole. “Mas não é pelo dinheiro”, diz. “É porque, para algumas coisas que eu gosto de fazer, como eletivas de hérnia inguinal por videolaparoscopia, não tenho material disponível. Só tenho no sistema privado.”
Soares é um dos 417 725 médicos do SUS, dos quais 111 557 têm vínculo permanente com o sistema, segundo os dados mais recentes, do Ministério da Saúde. O restante – a maioria – é terceirizado. Soares é um apaixonado pelo SUS. Ele diz que trabalhar no sistema público é o que lhe garante sanidade. “Sempre quis trabalhar com pacientes graves, doentes bem críticos”, afirma. “Além disso, operar pessoas humildes me dá uma grande satisfação, porque sinto que, naquele momento, eu posso ajudar a pessoa.” Na sua especialidade, a ajuda, em geral, é mesmo dirigida a pessoas mais pobres. No Brasil, as lesões físicas causadas por acidentes de trânsito ou por violência são tratadas principalmente pelo SUS, cujos hospitais são o destino preferencial das vítimas. “Trauma é doença de pobre e de bandido”, diz Soares. “Um baleado só será levado para o Sírio-Libanês, por exemplo, se ele tiver levado um tiro em alguma rua bem perto do hospital, e olhe lá.”
Há quatro anos, o médico costumava passar de 18 a 24 horas por dia no centro cirúrgico. Hoje não ultrapassa as 12 horas diárias. Seu corpo não aguenta mais que isso. Em janeiro de 2020, pouco antes de ser detectado o primeiro caso de Covid no Brasil, ele foi infectado pela bactéria hospitalar Streptococcus pyogenes, talvez por meio de uma agulha, durante uma cirurgia. Soares ficou 58 dias no hospital, catorze deles na UTI. No sétimo dia, seus pés começaram a necrosar. As suas mãos foram poupadas pela pyogenes, mas os dedos dos pés e os calcâneos (ossos do calcanhar) foram amputados. Com dificuldade para obter as próteses e fazer a reabilitação como deveria, em razão do lockdown, ele demorou um ano para reaprender a andar, algo que faz hoje com certa desenvoltura nos terrenos mais planos. “Estou vivo, e continuo na cirurgia geral. Tem um maluco aqui”, diz, referindo-se a si próprio.
Sua opinião é corroborada pela pesquisa Demografia médica no Brasil 2023, feita pela USP em parceria com a Associação Médica Brasileira. Segundo o levantamento, os médicos ganhavam, em 2020, em média, 30 mil reais por mês. Os mais velhos, com idade entre 51 e 60 anos, declaram um rendimento maior, na casa dos 40 mil reais. Os mais novos, com idades inferiores a 30 anos, ficam na faixa dos 12 mil.
Segundo a Demografia médica no Brasil, no primeiro ano depois da residência médica, 55,7% dos profissionais pretendem atuar ao mesmo tempo no serviço público e no privado. Somente 24,6% têm a intenção de trabalhar principal ou integralmente no SUS. As coisas mudam quando os mesmos médicos dizem o que planejam fazer cinco anos depois da residência: 38,9% querem atuar preferencialmente no setor privado. Apenas 12,1% pensam em se dedicar ao SUS. E o grande fornecedor de vagas de residência é o SUS, que absorve mais de 65% dos médicos-residentes. Eles ganham uma bolsa de 4 106,09 reais por 60 horas semanais de serviço, e escolhem entre 55 especialidades. As favoritas são: clínica médica, pediatria, cirurgia geral e ginecologia/obstetrícia.
Apesar de tudo, a maior parte dos médicos é como o traumatologista Tadeu Soares. Considerando-se a totalidade dos médicos que vivem no Norte e no Nordeste, um enorme contingente deles trabalha no SUS. No Pará, por exemplo, os médicos do SUS correspondem a 81,7% do total de médicos do estado. Já em outras regiões do país, o total dos que trabalham no SUS continua expressivo, mas não tanto quanto no Norte, Nordeste e estados do Centro-Oeste, como Goiás e Mato Grosso do Sul. É o caso do Espírito Santo, onde 68,5% dos médicos atuavam no SUS em 2021 – índice alto, mas bastante inferior ao do Pará. Os números constam do artigo Heterogeneidade da distribuição dos profissionais de saúde no Brasil e a pandemia Covid-19, de autoria dos professores Anselmo Luís dos Santos, Marcelo Manzano e André Krein.
O governo de Jair Bolsonaro tentou abolir o Mais Médicos, implementado pelo PT, mas não conseguiu. No governo Lula, o programa foi reativado, com a abertura de mais 15 mil vagas, e não demorou a ser expandido. Hoje, o programa alcança presidiários, por meio das equipes de Atenção Primária Prisional, e as pessoas em situação de rua, com os grupos do Consultório na Rua. De acordo com dados de novembro passado, há 26 756 mil médicos vinculados ao Mais Médicos, a maioria do sexo feminino (14 363). Em torno de 33,5% deles atuam em municípios de alta vulnerabilidade. Os profissionais formados no Brasil são maioria (62%) e 38% são intercambistas, ou seja, médicos formados no exterior e que ainda não preenchem todos os requisitos para terem seu diploma validado no Brasil.
Criado em 1994, o programa Estratégia Saúde da Família é uma peça-chave das Unidades Básicas de Saúde, que fazem o acompanhamento de grávidas, crianças, diabéticos, hipertensos, idosos. Existem 45 134 UBS em funcionamento no país – e a maior concentração é no Nordeste, com 17 478 unidades, de acordo com o Ministério da Saúde. Nesse aparato, os agentes comunitários de saúde têm um papel crucial: fazer visitas domiciliares e identificar lá na origem os problemas de saúde, orientando a população sobre práticas saudáveis e encaminhando os doentes para tratamento.
A movimentação na UBS de Santos é intensa. Ali são feitos atendimentos de atenção à criança (consulta, vacinas, nebulização, reidratação, controle de crescimento e desenvolvimento), à mulher (pré-natal, vacinas, exame preventivo de câncer de colo do útero, planejamento familiar) e ao adolescente, além de serviços para controle de hipertensão, diabetes, tuberculose e hanseníase. Há ainda programas de saúde bucal, terapia ocupacional e para infecções sexualmente transmissíveis. O local dispõe de 6 médicos, 6 enfermeiros e 6 técnicos de enfermagem, afora os agentes comunitários.
Pelas quarenta horas semanais de trabalho, Santos ganha em torno de 2,8 mil reais líquidos, incluídas as gratificações de insalubridade. Aos 55 anos, ela sente que tem um papel importante na sua equipe, ao fazer o elo entre o SUS e a comunidade. “Somos nós, agentes, que entramos nos domicílios, nós que conhecemos o indivíduo, nós que sabemos a realidade de cada um”, diz, com o coração inflado de orgulho sob a camiseta polo amarela.
Assim que se inteirou da gravidade do incêndio – 242 pessoas mortas, mais de 600 feridas –, Costa convocou a Força Nacional. Os pacientes em estado crítico tinham de ser removidos para Porto Alegre. “Foi a maior remoção aeromédica da América Latina”, diz ela. A equipe do SUS montou dezoito leitos de UTI na aeronave da Força Aérea Brasileira (FAB). “Quando você encontrava uma mulher que tinha acabado de achar vivo o seu filho, respirando, ela abraçava você”, lembra Costa. “Aí você andava dois passos, e outra mãe abraçava você, desesperada, depois de encontrar o filho morto. Muitas vezes, um abraço vale tudo. O SUS abraçou o Rio Grande do Sul.” E deixou uma herança.
Além do atendimento imediato, do transporte, dos medicamentos, o SUS passou a oferecer um serviço essencial: o atendimento psicológico. “O incêndio na Kiss foi uma situação disruptiva que implodiu ritmos de vida”, diz o psicanalista Volnei Antonio Dassoler, na sede do Acolhe Saúde, como foi chamado o serviço de referência do SUS para o cuidado psicossocial dos afetados pela tragédia. Até o final de 2013, o serviço havia cadastrado 805 pessoas, a maioria formada por familiares das vítimas. Um ano mais tarde, em vez de diminuir, o cadastro aumentou: 986.
No governo Bolsonaro, as dificuldades nessa área aumentaram, com a extinção dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), no início de 2020. A equipe dos Nasf incluía psicólogos e psiquiatras, integrava as UBS e estava apta a diagnosticar problemas de saúde mental logo na raiz. Com o fim desse apoio, muitos pacientes têm diagnóstico tardio e precisam enfrentar a longa fila de espera para atendimento. O desmonte dos Nasf acabou por fragilizar a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), como é chamada a política nacional de saúde mental. Instituída em 2011, a Raps tem como objetivo criar, ampliar e articular pontos de atenção à saúde no SUS para pessoas com sofrimento psíquico e/ou com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas. (Em julho de 2023, o Ministério da Saúde anunciou mais de 200 milhões de reais para a rede.)
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