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Danilo Marques
Um grupo de aproximadamente vinte crianças e adolescentes se reuniu na Praça Sol Peres, no Morumbi, em 18 de janeiro. Não estavam ali para jogar bola, caçar Pokémons ou ensaiar coreografias para o TikTok. Encontraram-se, em vez disso, para falar de investimentos. O organizador da trupe, um paulistano de 17 anos e 147 mil seguidores no Instagram, disse se tratar de um “encontro de jovens prósperos”; espíritos “obstinados” interessados em fazer networking para crescer no universo do marketing digital. A meninada, nos vídeos gravados naquela tarde, demonstra uma sobriedade pouco adolescente: cumprimentam-se com apertos de mão e tapinhas no ombro.
O líder do grupo se apresenta nas redes sociais como um empreendedor que, apesar de tão pouca idade, “fatura alguns dígitos” por mês. “Ensino a geração Z a prosperar”, diz a descrição de seu perfil do Instagram. Ele se veste apenas com camisetas lisas, geralmente pretas, e um ocasional colete puffer. Quando está num carro, só se permite ser fotografado no banco de trás, como alguém que dispõe de chofer. Calça sapatos semelhantes a mocassins e, ao posar para fotos, nunca encara a câmera – mantém o olhar fixo no horizonte, pensativo. Foi com esse olhar que anunciou, recentemente, ter faturado meio milhão de reais em 2024.
Em um de seus vídeos, o influenciador disse ter abandonado a escola aos 15 anos. “Eu larguei porque não me identificava mais com o ensino.” Segundo ele, não fazia sentido frequentar um ambiente com crianças que “almejavam fazer metade do dinheiro que eu estava fazendo”. No fim da gravação, recomendou aos seguidores que não trilhassem o mesmo caminho. Mas o recado era claro: empreender dá muito mais frutos do que estudar.
Como ele, há toda uma legião de influenciadores mirins que, transitando entre o linguajar corporativo e o tom de pregação neopentecostal, prometem aos seguidores o enriquecimento rápido. Um maranhense de 14 anos, que aparenta ter ainda menos, arregimentou 411 mil seguidores no Instagram com lições similares. “Ensino pessoas a mudarem de vida com a internet”, diz seu perfil. Posa para fotos ao lado de BMWs e garante já ter faturado mais de 200 mil reais com investimentos. A origem do dinheiro, nesse e na maioria dos casos, não é clara. Atribui-se ao marketing digital – termo abrangente que abarca a comercialização de qualquer tipo de produto na internet.
A mensagem é sempre a mesma: escola não dá futuro; trabalho de carteira assinada, idem. Os meninos são um subproduto da cultura coach que se alastrou pelo país nas últimas duas décadas. Ensinam que, com autodisciplina e um mindset adequado, qualquer um pode se tornar milionário pela força do próprio trabalho, sem depender de empregadores ou títulos acadêmicos. Basta, é claro, pagar algumas mentorias exclusivas para descobrir como chegar lá (o influenciador paulistano de 17 anos anuncia ter dado aulas a mais de 10 mil pessoas em um curso online que criou com dois amigos, ambos também adolescentes com ambição milionária).
O Brasil é um terreno fértil para ideias do tipo. Quase 40% da população ocupada trabalha na informalidade, segundo os dados mais recentes do IBGE. O número de trabalhadores com ensino superior completo vem crescendo, mas grande parte dessa mão de obra é contratada para funções que não exigem diploma universitário e têm teto salarial baixo. Um levantamento publicado em 2022 pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostrou que, no segundo trimestre daquele ano, quase 80% dos brasileiros com ensino superior que entraram no mercado de trabalho foram parar em cargos que exigiam, no máximo, o ensino médio completo. Ainda segundo o Dieese, mais de 1 milhão de brasileiros formados em universidade trabalhavam como lojistas e vendedores em 2022. A eles, somavam-se 86 mil motoristas de aplicativo e 70 mil entregadores de comida e outros produtos.
Era questão de tempo até que esse fenômeno se refletisse na juventude. “A escola não prepara o jovem para o futuro, prepara para ser dependente”, professou o paulistano de 17 anos em um vídeo recente. “O ENEM NÃO VAI TE DEIXAR RICO”, alardeou em outra postagem, com todas as letras em caixa alta. Em dez anos, o número de inscritos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) caiu pela metade, de 8,7 milhões para 4,3 milhões. O fenômeno se explica, em parte, pela profusão de cursos à distância baratos oferecidos por faculdades privadas, que não participam do Enem. Mas pesquisadores do tema também atribuem a mudança ao desinteresse dos jovens, num país em que o estudo não é mesmo garantia de bons salários e vida estável.
“Fazer faculdade, estágio, conseguir emprego, deslanchar na carreira, são coisas demoradas e que hoje são mais difíceis de conseguir”, diz Bernardo Soares, especialista em educação e aplicação de tecnologias em sala de aula. Ele lamenta que, por vezes, ao explicar as condições do mercado de trabalho aos alunos que o procuram, acaba desincentivando-os a seguir as carreiras que almejavam, como – justamente – a de professor. “Isso se soma ao retorno rápido que as redes te dão, sem que você precise necessariamente ter experiência na área. Elas podem dar lucro e visibilidade mais facilmente que as profissões tradicionais.”
“Faturei 300 reais sem fazer nada”, diz um menino sul-mato-grossense de 13 anos, num vídeo compartilhado com seus 30 mil seguidores. Até poucos meses atrás, o garoto só queria saber de jogos eletrônicos, como Roblox, e vídeos de TikTok. O pai, contudo, não gostava de ver o filho grudado em telas o dia todo. Deu-lhe de presente, então, uma pilha de livros. Entre eles, Geração de valor e O homem mais rico da Babilônia, que costumam figurar entre os títulos de auto-ajuda mais lidos do Brasil. O menino, em pouco tempo, largou os divertimentos online e passou a cultivar uma ambição milionária. “Só em 2023, leu 35 livros”, contou o pai à piauí. Zootecnólogo formado numa universidade federal, ele abandonou a área e hoje trabalha com manutenção de ar-condicionados. Tem 38 anos.
Orgulha-se da carreira digital que o filho vem construindo. Conta que o menino, seguindo os ensinamentos de influenciadores como Thiago Nigro – autor de Do mil ao milhão, livro mais vendido do país em 2020 –, passou a comprar doces para revender na escola. O dinheiro que arrecadava – e que não era pouco, segundo o pai – logo investia em fundos imobiliários e ações. O negócio fez sucesso, até que o colégio, preocupado com o volume de transações no recreio, proibiu as vendas. Pai e filho não viram alternativa senão vender os doces na rua. A rotina trabalhadora do menino passou a ser filmada pelo progenitor e postada nas redes sociais.
Hoje o garoto tem conta própria no Instagram. Está no segundo perfil – o primeiro foi suspenso pela Meta, empresa responsável pela rede, por ter cometido uma infração (o menino tinha menos de 13 anos, idade mínima para abrir uma conta). Antes de receber a sanção, acumulava 70 mil seguidores, que agora tenta recuperar. O pai, temendo um novo banimento, usou os próprios dados (nome, idade, etc.) para recadastrar o filho na rede.
O menino publica, em vídeo, pequenas lições com títulos chamativos: “Três ideias de renda extra”; “faturei 6.000 todos os meses”. Não costuma obter mais do que 10 mil visualizações por vídeo, mas, às vezes, acontece de uma postagem furar a bolha e virar motivo de chacota entre pessoas menos receptivas a esse tipo de conteúdo. Um desses posts, no qual o garoto anunciava uma aula sobre investimentos na Bolsa de Valores, acumula 871 mil visualizações. “O bullying precisa voltar, urgentemente”, comentou um usuário, fazendo troça do garoto. “Queria saber quanto vocês ganham para enganar o povo!”, escreveu outro, num vídeo em que o menino dizia ganhar “3 mil reais limpos, por mês” (na gravação, ele conversava com Renato Cariani, influenciador fitness que tem 9 milhões de seguidores no Instagram e atualmente é réu sob acusação de tráfico de drogas, suspeito de desviar produtos químicos para abastecer facções criminosas).
O pai diz não se incomodar com situações desse tipo. Pelo contrário, acha que o filho deve mesmo viralizar, mesmo que seja por razões negativas. As críticas geram tanto engajamento quanto os elogios, e o que importa, no fim, é que mais pessoas assistam ao menino, ele explica.
Com esse raciocínio, permitiu que o filho participasse no ano passado do reality show La Casa Digital, apresentado pelo ex-coach Pablo Marçal, e cujo objetivo é ensinar aos participantes técnicas avançadas de marketing digital. “Foi uma oportunidade que a gente não podia perder”, diz o pai. O menino viajou de Rondonópolis a São Paulo para participar das gravações, ao lado de outros onze menores de idade. “Boto mais fé em vocês do que neles [os adultos]”, disse Marçal em um dos blocos do programa intitulado “Conversa com os juvenis”. O ex-coach é atento às novas gerações e publicou, em 2022, o livro Como fazer um milhão antes dos 20, escrito em colaboração com o influenciador digital Marcos Paulo.
Algumas portas se abriram desde então para o menino, que se apresenta como “filho do Deus vivo, palestrante, influencer, escritor e investidor”. Recentemente, palestrou em um evento organizado por Marçal e, segundo o pai, pintaram oportunidades de negócios. A família agora está de mudança para Barueri (SP), esperançosa de conseguir algum dinheiro com o mercado financeiro e o marketing digital. O objetivo maior, diz o pai, é que o menino fature o primeiro milhão antes dos 18. Depois se corrige: o garoto “já é milionário”. Faltam zeros na conta, mas, segundo ele, ser milionário é antes de tudo um estado de espírito.
Renata Tomaz, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) que há mais de dez anos estuda a presença de crianças e adolescentes na internet, diz ter uma percepção pouco otimista sobre o tema. “Eu via crianças produzindo visões de mundo e discutindo questões muito importantes. Usando a rede como instrumento para se fazerem vistas.” Uma paisagem mais colaborativa e com potencial educativo, que foi completamente transformada pela plataformização da internet e a introdução do algoritmo. Para Renata, a rede permitia, lá atrás, uma “produção social da infância” mais ativa. “Hoje o que temos é um terreno privado, com um modelo de negócio ao qual todos os usuários tiveram que se submeter.”
Nas pesquisas que conduziu com meninos e meninas, Tomaz diz ter ouvido uma dezena de vezes a frase: “Eu não preciso crescer para fazer dinheiro.” Ela conta de adolescentes que, por volta dos 15 anos de idade, sonham construir impérios milionários vendendo cursos e investindo na Bolsa de Valores. Alguns já se portam como empresários bem-sucedidos, na roupa e no jeito de falar. É o que na antropologia se denomina “imitação prestigiosa” – a forma pela qual as pessoas constroem sua própria imagem e comportamento nos moldes daqueles que admiram.
“Crianças sempre tiveram a capacidade de identificar, em quaisquer contextos, figuras dignas de prestígio”, diz Tomaz. Para quem vive colado no feed do Instagram e no YouTube, essas figuras frequentemente são coaches e influenciadores que ostentam apartamentos luxuosos, carros possantes e uma vida, em suma, invejável. Eles ocuparam, no imaginário de muitas crianças, o espaço de idolatria que antes era reservado a jogadores de futebol.
Até certo ponto, são crianças fazendo o que sempre fizeram. A diferença está no alcance das redes sociais, que não apenas expõem (e por vezes remuneram) a meninada que cria conteúdo como abrem brechas para todo tipo de transação financeira. “O trabalho infantil continua proibido no Brasil”, diz Cíntia Burille, advogada especializada em questões da infância e da adolescência. Ela vê com preocupação a liberdade que pais e responsáveis têm dado aos filhos na internet. Não apenas pela exposição que as crianças sofrem, mas por elas se envolverem numa operação comercial. “Esses influenciadores se enquadram perfeitamente na ideia de trabalho infantil, o que é vetado por nosso ordenamento jurídico.”
Burille acha, contudo, que a responsabilidade maior por esse problema é das big techs, que estabelecem regras frouxas para o cadastro de crianças e pouco fiscalizam seu cumprimento. Nas principais redes (Instagram, TikTok e Facebook), é exigido apenas que o usuário tenha 13 anos ou mais. “A gente sabe que são inúmeros os perfis de crianças com idades inferiores a 13 anos, até de recém-nascidos”, diz Burille. “Tenho um posicionamento bastante firme de que as redes sociais não só podem, como, na verdade, devem ser responsabilizadas.”
À piauí, a Meta afirmou por meio de nota que contas de pessoas menores de 13 anos devem ser administradas pelos responsáveis e isso deve ser sinalizado na bio – o campo em que os usuários geralmente se apresentam. Não é o caso de vários perfis de crianças encontrados pela reportagem. A piauí criou um perfil-teste no Instagram e informou ter mais de 13 anos; em nenhum momento a plataforma exigiu comprovação da idade. Ainda segundo a Meta, “todo conteúdo deve ser compartilhado pelos responsáveis em nome do menor, e não na voz ou na perspectiva do menor” – o que, novamente, nem sempre acontece. A empresa disse ter restringido as ferramentas de monetização disponíveis para os menores de 18 anos: “Isso significa que essas contas não podem oferecer assinaturas, receber presentes ou selos.”
Mas quem quer encontra outros caminhos. O influenciador paulistano de 17 anos que promoveu o encontro de jovens no Morumbi, em janeiro, cadastrou seu curso de marketing digital na Kirvano, uma plataforma de vídeos. A empresa veta, em tese, que crianças com menos de 13 anos façam compras na plataforma; para vender conteúdo, então, só quem tem mais de 18. Mas lá está o curso do rapaz, apresentado por ele e dois colegas, todos menores de idade (se venderam tantas assinaturas quanto dizem que venderam, já embolsaram quase 2 milhões de reais burlando as regras). É possível supor que os compradores tenham a mesma idade do trio ou sejam mais jovens. A piauí pediu esclarecimentos à Kirvano, mas não obteve resposta.
O rapaz não escolheu fazer o evento no Morumbi por acaso. Gosta de frequentar o bairro, reduto histórico da elite paulistana onde, um dia, funcionou uma grande fazenda de café. Embora passe hoje por um processo de desvalorização, o bairro “cheira a prosperidade”, conforme disse um de seus amigos, num vídeo que gravaram recentemente. No Morumbi, o trio montou um escritório onde grava aulas e podcasts sobre marketing digital, eventualmente com a participação de convidados. “Fuja do ambiente de pobre, esteja onde os ricos estão”, eles ensinam em diferentes postagens.
Com base na sua experiência pessoal, o influenciador mirim não tem dúvidas: “Se colocar empreendedorismo no lugar, sei lá, de reação química ou de alguma fórmula matemática nas escolas, a pobreza no Brasil será reduzida em 90%.” Convicto disso, no último 12 de outubro abordou crianças em um shopping de São Paulo e as presenteou com livros, como Os segredos da mente milionária. Acredita conter ensinamentos que transformarão suas vidas.
piauí
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