quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

O significado histórico do forro da Igreja de São Francisco de Assis

Fachada da Igreja conventual de São Francisco de Assis, Salvador. Foto: Rodrigo Baeta

RODRIGO BASTOS*
Toda desconstrução de pensamento exige uma compreensão profunda do processo histórico que gerou seu objeto de atenção

O que aconteceu na Igreja conventual de São Francisco de Assis em Salvador é mais um triste capítulo de um processo que aflige o patrimônio cultural brasileiro, intensificado nos últimos anos com os incêndios do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, da Cinemateca e do Museu da língua portuguesa em São Paulo. Assim, nesses últimos dias, tem-se debatido muito sobre quem teria a “culpa” do que se passou em Salvador, ou quem teria a “responsabilidade” de evitar esse desastre, que também levou a vida de uma jovem turista: se os administradores da Igreja, se o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), se os órgãos locais de cultura e patrimônio etc.

Esse tema é difícil, e importante de se discutir, sim, a demandar investigações cuidadosas sobre as causas do sinistro (Fig. 1).

Figura 1 – Interior da Igreja conventual de São Francisco de Assis, Salvador, após o incidente. Foto: Felipe Decrescenzo A. Amaral

Mas o debate deve ser mais amplo, tendo sobretudo a finalidade de se pensar como é que poderemos evitar que eventos como esses aconteçam: maior investimento, maior valorização do patrimônio artístico e arquitetônico, protocolos mais rígidos e efetivos de segurança, conservação preventiva, educação patrimonial. Nos dias que se seguiram ao incidente em Salvador, inúmeros edifícios do período colonial foram interditados em lugares do país, sob a alegação de que também poderiam ruir. Nosso patrimônio pede atenção, em muitos casos com urgência.

Quero levantar um tema imprescindível para o debate, pois tudo passa, inexoravelmente, pela consciência dos significados que um monumento como esse pode ter para a cultura brasileira, e são muitos. Essa consciência é alicerçada em vários tipos de valores, utilizados inclusive para se tombar um bem inestimável assim: valores históricos, artísticos, estéticos, arquitetônicos, paisagísticos, cognitivos, afetivos, sociais – todos eles essenciais e diversos, eventualmente convergentes, de acordo com a obra e com o momento em que se faz o seu registro como bem cultural.

Um fator é inconteste: essa consciência passa fundamentalmente pelo conhecimento histórico do monumento, aspecto que ajuda a refletir melhor sobre todos os valores que sustentam a identificação de bens – materiais e imateriais – de uma cultura. Quero falar, assim, e muito brevemente, do significado histórico que esse forro tem para o nosso patrimônio cultural; e não apenas brasileiro, mas também português, e mesmo mundial, pois esse conjunto arquitetônico teve os mais altos e extensivos reconhecimentos, todos eles muito honrosos e devidos.

A última vez em que estive dentro dessa Igreja, em Salvador, renovei a certeza de estar dentro de um dos interiores mais espetaculares do universo luso-brasileiro (Fig. 2).

Figura 2 – Interior da Igreja conventual de São Francisco de Assis, Salvador. Foto: Rodrigo Baeta

Temos outros interiores tão belos e sublimes quanto, como aquele do Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro; da Capela dourada, igualmente franciscana, no Recife; ou da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto (Fig. 3), para ficar apenas com alguns exemplos no Brasil.

Figura 3 – Interior da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar, Ouro Preto. Foto: Rodrigo Bastos

Assim que saí da Igreja, sendo levado, ainda, a olhar pra cima, o céu ardentemente azul de Salvador contrastava intensamente com aquele forro ornamentado na penumbra, mas lucidamente brilhante em sua engenhosidade artística. Proporcionando experiências muito distintas, aquele forro de madeira pintada e aquele céu azul representavam, aparentemente, mundos muito diferentes: um antigo, interior, sombrio, dramático e barroco, e o outro, do presente imediato em que eu vivia, luminoso, exterior, festivo e musical, de Salvador (Fig.4).

Figura 4 – Fachada da Igreja conventual de São Francisco de Assis, Salvador. Foto: Rodrigo Baeta

Apenas aparentemente, porque a história da arte pode nos ensinar que o forro da São Francisco era um eloquente documento histórico e artístico do modo de pensar daquele tempo – do modo essencialmente alegórico com o qual aquele mundo dos séculos XVII e XVIII concebia, entre outras coisas, justamente o céu. Para o olhar daquele tempo, para os mestres, artífices e religiosos que criaram aquela obra-prima, e também para a sociedade que primeiramente o recebeu e o admirou, 300 anos atrás, o céu não era exatamente um espaço infinito, homogêneo e isotrópico, povoado de corpos celestes e estrelas se movimentando conforme a gravitação universal.

Essa concepção mecânica do céu, essencialmente moderna, vai se consagrar mais lentamente, e mais tarde até, com os desenvolvimentos que Laplace dá à filosofia natural newtoniana. Nesse tempo, especialmente em âmbito teológico e católico, o céu era o lugar da perfeição e do divino, composto hierárquica e tradicionalmente em círculos ou esferas concêntricas de éter, mais ou menos próximas de Deus (Fig. 5).

Figura 5 – “Figura dos corpos celestes”, de Bartolomeu, o velho (1568). Domínio público. Fonte: Wikimedia commons

Assim, para o olhar católico daquele tempo, aquele forro era um espelho privilegiado dos céus interpretados cristianamente, ou seja, não por leis da física, mas por leis e dogmas da Igreja – e, oportunamente, também, por leis artísticas, como a mímesis, ou imitação, capazes de permitir que artífices fabricassem sua representação.

Todo coberto por arcos e pinturas em caixotões, tudo engenhosamente arquitetado, entalhado, pintado e dourado – figuras geométricas várias, octógonos, estrelas, losangos e quadrados interpenetrados –, o forro da nave dava corpo maravilhoso a um grande teatro dos céus para aquela ordem religiosa específica (Fig. 6).

Figura 6 – Forro do teto da nave da Igreja conventual de São Francisco de Assis, Salvador (c. 1730). Foto: Rodrigo Baeta

Noutras igrejas desse tempo, ora esse teatro sagrado era imitado com perspectivas magníficas que iludiam a presença imagética de um céu religiosamente triunfante, ou seja, ornado de figuras celestiais, anjos e santos que ascenderam ao céu vencendo o martírio e a morte, por isto a designação, de época, “Igreja triunfante” – isto acontece, por exemplo, noutra igreja franciscana, na Capela da Ordem 3ª da penitência de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, pintada pelo Mestre Ataíde (Fig. 7), ou na Igreja jesuítica de Santo Ignácio, Roma, pintada por Andrea Pozzo, em que se representa a gloriosa apoteose do santo (Fig. 8); ora este teatro sacro celestial era representado em caixotões pintados, em que também se dispunham ordenadamente alegorias, anjos e figuras triunfantes, tudo conforme o caráter da Ordem religiosa que construía o templo.

Figura 7 – Mestre Ataíde. Forro do teto da nave da Igreja da Ordem 3ª da penitência de São Francisco de Assis, Ouro Preto (após 1801-12). Foto: Rodrigo Bastos

Figura 8 – Andrea Pozzo. Detalhe do forro do teto da nave da Igreja de Santo Ignácio, Roma (c. 1690). Foto: Rodrigo Bastos

Este é o caso da igreja franciscana de Salvador, e um tema-chave das pinturas do forro foi especialmente Nossa Senhora, devoção especial da Ordem, pintada em sua vida, atributos e virtudes, decorosamente ilustrada ou acompanhada por anjos e imagens bíblicas que com ela poderiam se tecer convenientes relações – como é o caso de uma Judite, personagem feminina igualmente virtuosa do Velho Testamento, que, pintada num dos caixotões, funciona ali como uma metáfora de prefiguração: uma alegoria de Maria. Este caixotão felizmente não caiu do teto, porque situado na extremidade do forro, em sua porção arqueada, ancorado na parede e na estrutura do telhado por cambotas de madeira (Fig. 9).

Figura 9 – Detalhe do forro da nave da Igreja conventual de São Francisco de Assis, Salvador. Foto: Rosa Gabriella

Poderíamos mencionar outros detalhes das pinturas e decorações, mas não caberia aqui, tendo escrito o essencial. Um exemplo análogo é o forro em caixotões da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto (Fig. 3), também engenhosíssimo, em que a chave de interpretação dos painéis pintados passa igualmente pela representação alegórica de Maria, a contar também com uma pintura de Judite em seu conjunto.

As pinturas do forro de Salvador já foram atribuídas a alguns artistas, como Jerônimo da Graça ou Antônio Simões Ribeiro, que as teriam feito na década de 1730. Referenciado em Carlos Ott, Luís de Moura Sobral defendeu enfaticamente a atribuição para Simões Ribeiro. De qualquer modo, a obra certamente contou com a participação de muitos outros artífices para a sua fábrica final. Essas obras de arquitetura, em geral, existem e foram preservadas devido ao trabalho de muita gente por séculos.

Eram, portanto, obras muito coletivas, efetivamente executadas por dezenas de artífices de arquitetura, de pintura, de talha, douramento e escultura, muitas vezes modificadas durante a sua própria realização; processo que documenta, historicamente, um saber artístico e construtivo importantíssimo, oralmente difundido e coletivamente partilhado, que poderia ser reconhecido também como patrimônio imaterial da arquitetura e da sociedade brasileiras – tanto o saber fazer como o saber conservar – tudo coletivamente. Esse reconhecimento poderia ajudar a justificar, entre muitas providências necessárias, investimentos que permitissem a melhor preservação de nosso patrimônio artístico e arquitetônico. Dentre elas, uma valorização maior dessas obras em nossa cultura contemporânea, que descarta ou deixa facilmente destruir sua memória; e uma valorização maior, também, de todos aqueles que dedicam sua vida à preservação do patrimônio.

Igrejas como a de São Francisco serviram, em todo o Brasil, no período colonial, como elementos de persuasão religiosa e política. Entretanto, elas foram construídas pelas gentes que levaram sua vida aqui, artífices livres e escravizados que, também fazendo parte de irmandades religiosas daquele tempo, ajudaram a erguer e a ressignificar esses monumentos – neste caso, desde o século XVII. História da arte e história social devem reconhecer, juntas, que aquela sociedade confiava plenamente no que significavam aqueles céus, o que também explica o grande esmero com que arquitetaram sua representação.

Além disso, os valores afetivos se impregnaram de tal modo nesse patrimônio, desde as suas construções, fazendo com que se tornassem fabulosos documentos sociais – documentos vivos, e importantíssimos, de uma preciosa elaboração artística que precisa, por tudo isso, de rigorosa e diligente preservação (e mais agora do que nunca, de restauração). Acompanhar, por exemplo, as festas religiosas — muitas delas sincréticas – que acontecem em todo o país, na Bahia, em Goiás, em Santa Catarina ou Minas Gerais, e que também ajudaram a formar, historicamente, o caráter festivo da cidade e do céu azul de Salvador, permite entender facilmente que a compreensão desses monumentos do patrimônio dito “colonial”, para além de serem documentos de um momento importante da nossa história, transcendeu há muito o sentido político original que possuíam, acumulando vários outros valores e significados essenciais para a nossa cultura.

Ademais, no contexto atual, com a emergência de pesquisas, estudos e interpretações que tensionam as estruturas norte-atlânticas e eurocêntricas de conhecimento nas ciências humanas e sociais, mais ainda é que se impõem, ao contrário do que se poderia supor, a preservação de patrimônios brasileiros como o da Igreja de São Francisco em Salvador e também o seu melhor conhecimento. Toda desconstrução de pensamento exige uma compreensão profunda do processo histórico que gerou seu objeto de atenção.

Se uma das contribuições mais relevantes dos estudos pós-coloniais ou decoloniais, bem como das perspectivas que debatem raça, identidade e gênero, é tentar desconstruir sistemas de opressão que mantem a colonialidade do poder, especialmente econômicas e políticas, apropriadas pelo capitalismo neoliberal, um dos fundamentos mais profundos desse processo deveria ser o melhor conhecimento histórico do que foi o complexo regime colonial, jamais o seu apagamento.

Nas últimas décadas, a noção de patrimônio tem passado por debates e transformações muito importantes. Esses debates tem condicionado aspectos fundamentais do campo disciplinar, ampliando a compreensão, a identificação, a gestão, os instrumentos e as práticas de preservação do patrimônio cultural. A incorporação da categoria de bens imateriais, por exemplo, de saberes e fazeres populares, a agenda de se efetivar uma maior participação da sociedade civil e das comunidades no reconhecimento das referências culturais trouxeram contribuições decisivas para uma significativa ampliação do campo, compreendendo também as chancelas, relativamente recentes, e importantíssimas, da paisagem cultural e do patrimônio biocultural.

Por mais que tudo isso seja extremamente proveitoso, e mesmo grandemente necessário, tenho percebido narrativas que preocupam, especialmente no contexto de um incidente grave como esse, que vitimou a Igreja de Salvador. Costuma-se contrapor essas renovações epistemológicas e conquistas sociais fundamentais à diligência do IPHAN de se reconhecerem e tombarem, no início de sua história, principalmente monumentos artísticos e arquitetônicos coloniais. É verdade que isso aconteceu, respondendo inclusive ao valor de ancianidade desses bens, retrato de um momento bem datado de nossa história que atravessou o século XX.

Mas a consciência se renova e o processo de ampliação é alvissareiro. Como disse anteriormente, os modos de reconhecimento e significação do patrimônio cultural mudam com o tempo, mas é preciso estar sensivelmente atento contra a tentação de uma substituição, de alternância ou preterição de memórias, sobretudo em se tratando do debate acadêmico ou de políticas públicas. A providente ampliação do campo patrimonial, inclusive por reparação, não pode abrir espaço para discursos ou narrativas antinômicas, que compreendam patrimônios como adversos uns aos outros.

Por mais que se reconheça que o patrimônio seja um campo em permanente “disputa”, não se trata ou não se pode permitir que haja, por assim dizer, disputa entre patrimônios, entre aqueles uma vez reconhecidos como “artísticos” ou “arquitetônicos” e aqueles recentemente requeridos como “culturais” – como se monumentos “de pedra e cal” perdessem sua importância em contextos de “mudança” ou renovação epistemológica. Eles continuam sendo fundamentais, quer pela sua relevância histórica, paisagística e artística, quer pelos seus significados sociais – todos eles “culturais”. A maior virtude desse processo recente deve ser justamente a ampliação do campo, a ser compreendida e prudentemente conduzida, eu defendo, como uma “acumulação sensível de patrimônios”, todos eles relevantes porque parte da cultura e da memória coletiva da nação, permanentemente em construção.

*Rodrigo Bastos é professor de teoria e história da arquitetura no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Autor, entre outros livros, de A maravilhosa fabrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822) (Edusp). [https://amzn.to/41r27D7]



 

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