Bruna Frascolla
A historiografia brasileira costuma refletir seu passado português e lamenta o período em que o Brasil esteve sob a administração da União Ibérica.
Na primeira capital do Brasil, em um eclético edifício do século XIX projetado pelo grande polímata do Império brasileiro, Theodoro Sampaio, ocorreu um evento de grande importância para a historiografia ibero-americana em 17 de fevereiro de 2025: “Salvador de Bahia y su 'Sítio y Empresa' de 1625: pasado y presente de los vínculos hispano-brasileños”. Eram quatro historiadores: dois espanhóis e dois brasileiros, sendo três de universidades espanholas e um de uma universidade brasileira. O edifício era a sede do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB).
O que motivou a vinda de historiadores da Espanha para a Bahia, com o apoio da embaixada espanhola e da Armada Espanhola, foi a redescoberta de uma grande pintura a óleo clandestina que retrata em detalhes a expulsão dos holandeses da cidade de Salvador, então capital do Brasil. O nome da pintura, em resumo, é “Sítio y empresa de Salvador”, e pode ser vista aqui.
A perspectiva brasileira
A historiografia brasileira costuma refletir seu passado português e lamenta o período em que o Brasil esteve sob a administração da União Ibérica.
Um dia, D. Sebastião de Portugal, filho único e rei solteiro, decidiu partir em cruzada para Marrocos, onde foi lutar pessoalmente. Desde a fatídica batalha de Alcácer Quibir, em 1578, o rei não foi mais visto vivo e, segundo as regras dinásticas, os Habsurg de Espanha poderiam herdar o trono português. Acontece que a própria dinastia de D. Sebastião, a Casa de Aviz, tinha sido criada no século XIV precisamente para impedir que o trono português se submetesse a Castela. Os portugueses aclamaram um bastardo português como rei, o Mestre de Aviz, D. João I.
Assim como no século XIV, a corte de Lisboa do século XVI não quis se submeter a Castela. Assim, dois expedientes incomuns foram concebidos. Um era negar a morte de Sebastião e simplesmente considerá-lo desaparecido, para que o povo português esperasse seu retorno triunfante. O outro era voltar na árvore genealógica da Casa de Aviz e coroar como rei um cardeal que era filho de Manuel I de Portugal. Com a morte do Cardeal Rei Henrique em 1580, a dinastia de Aviz chegou ao fim. No entanto, com sua bênção, o trono português passou para Filipe II da Espanha. Em vez de serem dois reinos distintos e rivais, Espanha e Portugal seriam um único corpo político com sede em Madri. A coroa portuguesa deu a Filipe terras na América, África e Ásia. A União Ibérica durou de 1580 a 1640, quando Portugal iniciou uma guerra de independência contra a Espanha.
Durante esse período de unificação, a Holanda era uma potência emergente que tentava tomar as terras produtoras de açúcar. No Brasil, a crença comum é que os espanhóis foram ruins para nós porque fomos entregues aos holandeses. Nesse sentido, a história de Pernambuco é mais importante: a capitania portuguesa esteve em mãos holandesas de 1637 a 1654, ou seja, por longos 17 anos (embora a maior parte desse tempo tenha sido após o desmantelamento da União Ibérica). Para completar, a expulsão dos holandeses de Pernambuco teve uma grande influência na população local: tanto que os historiadores militares brasileiros costumam traçar a formação do exército brasileiro até a Batalha dos Guararapes.
Por tudo isso, a ocasião em que a capital do Brasil, Salvador da Bahia, foi invadida pelos holandeses recebe pouca atenção dos brasileiros em geral. Quem costuma se lembrar dela são aqueles brasileiros que se dedicam ou à história da Bahia ou à história militar. Os primeiros tendem a destacar a resistência local.
O historiador brasileiro Pablo Iglesias Magalhães, da Universidade Federal do Oeste Baiano, instituição da Bahia, fez uma apresentação fiel à tradição de enfatizar a resistência local. No entanto, sua pesquisa está ancorada na descoberta de novas fontes primárias, como um mapa de um engenheiro holandês que foi adquirido por uma coleção particular brasileira, o Instituto Flávia Abubakir, sediado na Bahia (que também patrocinou o evento e enviou seu diretor para falar sobre a coleção). Nesse mapa, vemos o contorno perfeito da cidade de Salvador dentro dos muros, junto com o dique que os holandeses construíram para separá-la ainda mais do continente. Segundo o historiador, foi a maior obra de engenharia do Brasil colonial, e após a vitória o dique foi preenchido. O mapa confirma que o dique que ainda existe em Salvador é outro, e não foi construído pelos holandeses.
A cidade murada de Salvador ficava no alto, sobre um grande penhasco, e dava para uma grande baía, a Baía de Todos os Santos . É uma baía tão grande que, segundo os geógrafos, é na verdade um pequeno golfo com três baías e dezenas de ilhas; no entanto, como o nome é tradicional (Bahia é Baía em português arcaico), ninguém o chama de Golfo de Todos os Santos. Integrados a esse complexo aquático estão os rios que vêm do interior do continente e transportam tanto a cobiçada produção de açúcar quanto os alimentos necessários à subsistência de Salvador. Esse interior é chamado de Recôncavo.
Segundo o Prof. Pablo Magalhães, os holandeses também sofreram com seus próprios erros, pois achavam que era possível se estabelecer em Salvador sem dominar o Recôncavo. Assim, não foi difícil para os moradores locais – especialmente uma aldeia indígena liderada por um bispo jesuíta – sitiar e forçar os holandeses a comerem cães, gatos e ratos.
A importância da pintura
A pintura Sítio y Empresa de Salvador já despertava o interesse dos brasileiros, tanto que há duas réplicas no Brasil, e um brasileiro quis comprar a original, mas foi impedido pelo governo espanhol. (O público soube disso graças à intervenção de um professor de uma universidade estadual da Bahia no final.) A Espanha se interessou pela pintura apenas quatro anos atrás, quando o historiador militar David García Hernan, da Universidade de Madri, descobriu sua importância. Então, ele montou uma equipe multitarefa que incluía o professor José Manuel Santos Peres, um brasilianista da Universidade de Salamanca, e o professor brasileiro Carlos Brunetto, um historiador da arte da Universidade de La Laguna. Esse trio apareceu no IGHB e deu uma palestra junto com Pablo Magalhães. O trio estava acompanhado de um diretor de cinema que está preparando um documentário sobre a redescoberta da pintura, que será exibido nos cinemas de Madri ainda neste semestre.
O trio destacou a perspectiva espanhola do que eles chamaram de “Restituição do Brasil”. O professor José Manuel Santos, logo no início de seu discurso, notou que havia pinturas de reis portugueses no salão do IGHB, mas não de reis espanhóis, e recomendou que o instituto as colocasse, já que Filipe IV da Espanha e III de Portugal era o rei mais importante para a Bahia. Sua palestra fez jus ao seu título ousado, “Salvador de Bahia y la Historia Universal: El impacto de la recuperación de 1625” (Salvador da Bahia e a História Universal: O impacto da recuperação de 1625). Ele primeiro discutiu o domínio protestante (especialmente o holandês), na disseminação de panfletos de propaganda, e comentou sobre o quão importante era, para o moral dos calvinistas e sefarditas na Holanda, o fato de um governador “espanhol” e um bispo jesuíta terem sido capturados e levados para lá.
A propaganda também era a alma de um negócio: a WIC invadira Salvador muito rapidamente e com poucos recursos; ao cantar seu feito aos quatro cantos do mundo, pretendia atrair investimentos de novos acionistas. Diante disso, o Conde-Duque de Olivares aconselhou o Rei a enviar rapidamente a Armada para impedir a desmoralização da Espanha. E assim foi feito, com D. Fadrique de Toledo à frente. Diante da vitória avassaladora, que incluía o perdão aos holandeses que pediam clemência, foi a vez da Espanha fazer propaganda. Isso era muito diferente da propaganda calvinista, que tinha como alvo leitores individuais. Como a propaganda católica incluía analfabetos, incluía leituras públicas, pinturas e peças de teatro. Destacam-se a peça “El Brasil Restituido”, de Lope de Vega, e o quadro “La recuperación de Bahía de Todos los Santos” (veja aqui ). Podemos perceber que este professor é fã do Conde-Duque de Olivares, tendo destacado sua frase: “Deus é espanhol”. No Brasil, costuma-se dizer que Deus é brasileiro. O professor, no entanto, ressalta que os panfletos holandeses só se referiam aos brasileiros como espanhóis.
O mesmo não pode ser dito do Prof. Brunetto, que, em português claro, descreveu o Conde-Duque como uma “dor de cotovelo” (uma dor que se sente quando se tem ciúmes da felicidade alheia). De fato, o Conde-Duque de Olivares tinha muito ciúme de D. Fadrique de Toledo, e armou tantas intrigas contra ele, que acabou preso, destituído de sua nobreza, porque na velhice e na doença não quis ir a Pernambuco repetir o que fizera na Bahia. Na pintura oficial, “La recuperación de Bahía de Todos los Santos”, o Conde-Duque está no topo, à direita do rei, colocando louros em sua cabeça. D. Fadrique de Toledo está abaixo, apontando para eles. Não há muitas informações sobre a batalha. A caridade católica se destaca em primeiro plano, com mulheres cuidando de um soldado ferido e soldados holandeses se curvando diante da imagem do rei que os havia perdoado.
O Prof. David García, que é familiarizado com a história militar, destacou que na pintura clandestina, “Sitio y Empresa”, D. Fardique de Toledo aparece usando um gorjal vistoso – uma exibição ostentosa dos nobres que havia sido proibida na época. A pintura é imensa, cheia de pequenas figuras (D. Fadrique incluído), com um mapa de Salvador e um número impressionante de galeões ao fundo. (O Professor David García, questionado por um pesquisador brasileiro, também identificou os índios empunhando arqueiros enviados do Rio de Janeiro para lutar.) A suposição dos historiadores, portanto, é que esta pintura foi encomendada por D. Fadrique, ou sua família ou amigos, e por séculos foi passada de coleção particular para coleção particular, sem que ninguém tenha notado a relevância histórica da conquista militar, bem como sua dimensão. Em última análise, as intrigas pessoais do Conde-Duque de Olivares contra D. Fadrique de Toledo fizeram com que o papel da Armada Espanhola na história do Brasil fosse subestimado.
Ao final das palestras e perguntas, o representante do IGHB disse que a instituição é rica em história e pobre em dinheiro, que as pinturas dos reis portugueses (e imperadores brasileiros) foram doadas pelo governador da Bahia no século XIX e que receberá um presente da embaixada espanhola.
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