segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Valdai enfrenta o “problema americano” no Oeste Asiático

Presidente dos EUA, Donald Trump, na Casa Branca, em Washington - 05/02/2025 (Foto: REUTERS/Kent Nishimura)

Enquanto Trump cria caos com projetos globais de roubo de terras, visionários multipolaristas, em Valdai, mapeavam rotas que definirão a geopolítica

Pepe Escobar
brasil247.com/

A 14ª Conferência sobre o Oriente Médio do Clube Valdai de Moscou foi atingida por uma bomba geopolítica bunker buster, aquelas com capacidade de destruir alvos subterrâneos fortificados, bem no meio de seus trabalhos: o anúncio, pelo próprio Presidente Donald Trump, de uma espécie de um futuro Resort e Cassino Trump na Riviera de Gaza, na Palestina.

Mesmo antes de a indignação internacional começar a transbordar, do front dos BRICS à ASEAN e ao mundo árabe (que vê a isso como uma Nakba 2.0), chegando até mesmo à Arábia Saudita amigável a Trump e aos principais aliados dos Estados Unidos na Europa, a perplexidade atingiu a maioria dos acadêmicos e estudiosos em Valdai.

Duas exceções evidentes foram o Professor da Universidade de Teerã Mohammad Marandi e o ex-diplomata britânico Alastair Crooke – autores de análises delicadamente nuançadas sobre o Oeste Asiático. Ambos há muito argumentam que à medida que o Império americano for sendo forçado a recuar, ele se tornará cada vez mais cruel e disposto a correr maiores riscos.

Marandi qualifica Trump como um “presente” para o declínio global dos Estados Unidos. Crooke, de sua parte, se pergunta se o primeiro-ministro de extrema-direita de Israel, Benjamin Netanyahu, de fato conseguiu enredar Trump em uma situação difícil – quando o oposto pode ter acontecido. Trump, agora, parece ter colocado Netanyahu – a quem ele basicamente despreza, exatamente onde ele o quer: devendo favores.

Trump fez muitas promessas bombásticas que Netanyahu pode apresentar como um grande sucesso aos belicistas de Tel Aviv que compõem seu governo. A coalisão, portanto, irá se sustentar – por enquanto. Mas, em troca, Israel ainda terá que dar os próximos passos no tão desprezado projeto de cessar-fogo. O que, em tese, levaria ao fim da guerra. Netanyahu quer uma Guerra Infinita, com uma ilimitada expansão e anexação do Eretz Israel. Isso ainda não está decidido – longe disso.

Na atual situação, ao que tudo indica, Trump, de um só golpe, normalizou o genocídio, a limpeza étnica e reduziu a tragédia de Gaza a um espalhafatoso negócio imobiliário em uma “localização fenomenal”. O efeito acumulado de “os Estados Unidos assumirão o controle da Faixa de Gaza”, “ela pertencerá a nós” e “limpeza do terreno” não apenas abre os Estados Unidos a uma anexação de território estrangeiro chocantemente ilegal, mas também ao embaraçosamente obsoleto chavão “não existem palestinos” turbinado a esteróides.

Mas isso está longe de ser “pura loucura,” como definido por tantos think tanks americanos. Trata-se da extensão natural da tentativa de comprar a Groenlândia e de anexar o Canadá (em ambos os casos, um aumento da base de recursos dos Estados Unidos), da tomada do Canal do Panamá e de rebatizar o Golfo do México como Golfo da América.

Trata-se de mudar de assunto e alterar a narrativa predominante, em vez de enfrentar a verdadeira ameaça ao Império: a parceria estratégica Rússia–China.

Nesse caso, a nova Riviera de Gaza, construída sobre uma pirâmide de crânios, é não apenas endossada, mas também planejada pelos genocidas de Tel Aviv, lado a lado aos bilionários doadores de Trump, parte central do lobby pró-Israel nos Estados Unidos.

Essa visão de Trump, segundo fontes nova-iorquinas bem-informadas, veio de seu genro Jared Kushner que, há menos de um ano, já falava da mina de ouro imobiliária representada pela costa de Gaza. Kushner está ainda mais perigoso agora, quando ele atua por trás dos panos no segundo mandato de Trump: ele é o principal influenciador do presidente quando se trata de uma possível ocupação futura de Gaza pelos Estados Unidos.

No momento, temos um ethos de reality-show Deportar-Construir-Vender aplicado ao problema mais insolúvel do Oeste Asiático. Marandi o chama de “o problema Estados Unidos-Israel”. Taha Ozhan, do Instituto de Ancara, o descreve como a “ordem israelocêntrica, e também como “o problema americano”.

Vivendo sob uma “mudança de regime global”

As discussões de Valdai, é claro, foram além da bomba Gaza detonada por Trump. Ozhan focou o “imenso teste de stress” colocado sobre o Oeste Asiático – do genocídio em Gaza até o “Assad tem que cair” que se metastizou na al-Qaeda vestindo ternos e assumindo o poder em Damasco. Ele adverte que o caos global dos dias atuais pode dar início a novas guerras: estamos agora em um processo de “mudança de regime global, onde a “instabilidade sustentável” chegou ao fim.

A presença palestina, na figura do Ministro de Desenvolvimento Social da Organização de Libertação da Palestina (OLP) Ahmad Majdalani, não foi exatamente animadora. Ele martelou os temas de costume, como a “normalização das relações entre a Arábia Saudita e Israel com o pano de fundo da anexação da Cisjordânia”, enquanto “outras nações muçulmanas apenas assistem sem se envolver.”

Majdalani também se perguntou se “os BRICS conseguirão atuar como um contrapeso efetivo” ao “problema americano”, tal como definido por Ozhan. Mas quanto à tortuosa questão da unidade palestina, ele não trouxe nada de novo, e continuram as lamúrias sobre a impossibilidade dos “Acordos de Abraão sem o povo palestino”.

O eminente Vitaly Naumkin, Presidente do Instituto de Estudos Orientais da Academia de Ciências Russa, publicou um excelente relatório sobre a Síria, com a coautoria de Vasily Kuznetsov, também do mesmo Instituto.

Embora ressaltando que a queda do ex-presidente sírio que ocupou por tanto tempo o poder, Bashar al-Assad, represente uma “janela de oportunidade” para Israel, Turquia e as monarquias do Golfo, eles qualificam as nuances.

O que Israel irá fazer? “Estabelecer controle direto sobre certos (quais?) territórios ou criar uma zona-tampão mais vasta?”

Sobre a Turquia, “o interesse de Ancara em infligir uma derrota estratégica aos curdos e talvez criar uma zona-tampão ao longo da fronteira sírio-turca é compreensível”. O que ainda não está claro é “a extensão do compromisso [americano] em investir nos curdos” sob Trump.

Sobre as monarquias do Golfo, “elas irão fortalecer suas posições principalmente usando de influência econômica”. No entanto, os interesses de vários países do Conselho de Cooperação do Golfo podem variar, e seu alinhamento nem sempre é claro”.

Quanto ao Irã, Naumkin e Kuznetsov realisticamente apontaram que, caso a nova situação síria, anteriormente extremista, “não consiga consolidar a sociedade – e essa é uma forte possibilidade – o Irã poderá ter mais uma chance de reestabelecer sua influência”.

Na opinião de Naumkin, as bases russas na Síria “devem ficar” – tópico que, por sinal, é motivo de acalorados debates nos corredores de poder de Moscou. Ele defende essa posição principalmente porque a Rússia “poderia equilibrar as intenções expansionistas de algumas facções turcas ao norte da Síria”.

Corredor-mania

Embora a recentemente assinada parceria estratégica Rússia–Irã não tenha sido discutida em termos específicos em Valdai, Marandi observou que “o Irã está se movendo rapidamente no tocante ao que tem que ser construído, porque isso irá criar uma aproximação econômica com a Índia”.

O cerne do acordo Rússia–Irã não é militar: é geoeconômico e centrado no Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (CITNS), ponto chave do projeto de conectividade e integração Eurásia/BRICS.

O CITNS é, de fato, um acelerador do comércio entre os membros dos BRICS Rússia, Irã e Índia, que fatalmente irá aumentar os pagamentos em suas próprias moedas: é exatamente esse o tipo de mecanismo que levou Trump a – equivocadamente – “acusar” os BRICS de tentarem criar sua própria moeda. Rússia e Irã, ambos severamente sancionados, já fazem forte uso de rublos e rials em seu comércio bilateral.

Quanto ao front geoeconômico mais amplo, pode-se afirmar que a contribuição mais estimulante em Valdai foi a de Elchin Aghajanov, diretor da Rede de Política e Segurança Internacionais de Baku. Um sopro de ar fresco vindo do Sul do Cáucaso criou um forte contraste com os sombrios furacões geopolíticos que ameaçam o Oeste Asiático.

Aghajanov ressaltou a soberania azeri – contra a hegemonia, ao mesmo tempo em que reconhece as aspirações geoestratégicas do ocidente”. Ele descreveu o Azerbaijão como uma “encruzilhada de corredores de transporte”, pelo menos treze corredores, o que o levou a cunhar essa lindeza”: corredor-mania (itálicos meus). Ao longo de toda a história, o Sul do Cáucaso sempre foi um nó geoeconômico de importância crucial na Eurásia. A Corredor-mania abrange todos os projetos que vão da TRACECA ao Corredor do Meio Chinês, ao Transcaspiano e ao CITNS, para não mencionar o tão controvertido Corredor Zangezur – apoiado pelo Ocidente – que deverá cortar 40 quilômetros de território armênio na fronteira com o Irã. O Zangezur seria ligado a ramais das Novas Rotas da Seda indo de Xinjiang e da Ásia Central até a Turquia, e também conectado ao Transcaspiano.

Aghajanov afirmou peremptoriamente que, com o Zangezur, o Azerbaijão não tem qualquer intenção de anexar terras armênias. Baku também quer que sua operação chegue ao Irã através de uma ligação Irã-Armênia. A posição de Teerã é que, contanto que não haja anexação – nesse caso, a melhor opção seria subterrânea – o corredor pode ir adiante. Aghajanov se referiu à ligação Azerbaijão–Irã cruzando o Rio Aras: “O falecido presidente [iraniano] Ebrahim Raisi dava seu forte apoio.”

Aghajanov também ressaltou que como o Azerbaijão é um “aliado natural da Turquia e do Paquistão”, o mesmo deveria se aplicar ao Irã, onde vivem pelo menos 13 milhões de azeris étnicos.

Ele define a Rússia como um “aliado estratégico natural”. Ele também elogiou um corredor bem mais ao norte, a Rota do Mar do Norte: “O caminho mais curto entre Nova York e a China é passando por Murmansk. Assim como o caminho mais curto entre o Brasil e a China é passando por São Petersburgo”.

Enquanto os cães da guerra continuam latindo, a corredor-mania segue de vento em popa. Mas, primeiramente, o Oeste Asiático tem que realmente enterrar a ridícula ideia de Trump de uma Riviera de Gaza.

Tradução de Patricia Zimbres



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