
JOÃO QUARTIM DE MORAES*
As decisões políticas anunciadas pela abominável retórica do atual presidente dos EUA não são substancialmente diferentes daquelas que correspondem à fraseologia protocolarmente hipócrita de Joe Biden
Em 26 de fevereiro, Donald Trump divulgou um desenho animado, mais calhorda do que macabro, propondo uma “solução final” para a faixa de Gaza, semelhante à que os pioneiros do “sonho americano” aplicaram nos séculos XVIII e XIX para eliminar os povos indígenas: esvaziar o país de seus habitantes históricos, para nele instalar os novos donos da terra.
O filmeco, que propõe a formação de uma “Riviera” de luxo nos escombros do território palestino arrasado por Israel, começa com uma faixa sonora em registro de anúncio publicitário: “Donald Trump vai te libertar […], sem mais túneis, sem mais medo”; “Trump Gaza está finalmente aqui”.
O magnata topetudo se exibe no vídeo ao lado de seu parceiro Benjamin Netanyahu, o responsável pela operação de aniquilamento do povo palestino de Gaza, os dois tomando sol e drinques em uma piscina de um “resort” de sua projetada “Riviera”. Em um ambiente de cafonice generalizada, vemos seu comparsa Elon Musk lançando dinheiro para crianças pobres na praia e odaliscas esboçando gestos lânguidos para turista ver.
Esta palhaçada de péssimo gosto tem lugar garantido nos anais da infâmia. Mas ela certamente não foi gratuita. Confirmou um traço característico da retórica trumpiana: expressar os próprios interesses e pretensões com descarada crueza, sem considerações por bons sentimentos protocolares. Ilustrou, no caso presente, a radical safadeza do “empreendedorismo” ultraliberal: criar um “ambiente de negócios”, pouco importando as circunstâncias.
Vale, entretanto, observar que as decisões políticas anunciadas pela abominável retórica do atual presidente dos Estados Unidos não são substancialmente diferentes daquelas que correspondem à fraseologia protocolarmente hipócrita de Joe Biden e de seus parceiros europeus da OTAN. Joe Biden ajudou Israel a aniquilar Gaza e a levar adiante o massacre do povo palestino.
A União europeia não ergueu um dedo para denunciar a tenebrosa operação comandada por Benjamin Netanyahu. Em compensação, em parceria com os governos das principais potências (na verdade impotências) europeias, a arrogante “Führerin” Ursula van der Leyden, presidente da Comissão europeia, lançou lenha na fogueira da histeria anti-russa que assombra o “Ocidente”. Esse é o ponto nevrálgico da discrepância entre as posições de Joe Biden e da União europeia relativamente às de Donald Trump.
Cumpre lembrar que a derrocada e desmantelamento da União Soviética em 1991 foram interpretados pelo “Ocidente” como sinal verde para tomar conta do mundo. Os chefes da contrarrevolução capitalista na Rússia, com o ignóbil Boris Ieltsin à frente, festivamente saudados pelas burguesias do mundo inteiro, procederam imediatamente ao saqueio da economia soviética por meio de privatizações escandalosamente lesivas ao patrimônio nacional; os saqueadores mais bem sucedidos, conhecidos como “oligarcas”, esbanjaram fortunas em Londres, Paris, na Côte d’Azur e outros centros do turismo de luxo, enquanto o povo russo sofria brutal queda de seu nível de vida em relação ao que atingira no socialismo.
Desprezando os fortes laços históricos e culturais que unem a Sérvia à Rússia, porque estavam persuadidos de que o regime acanalhado de Boris Ieltsin tinha contaminado as energias da nação russa, os chefes da OTAN empreenderam o aniquilamento da Sérvia, o último país da Europa que resistia à avalanche neoliberal. Em março de 1999 a Luftwaffe do IV Reich alemão, cumprindo ordens do chanceler socialdemocrata Gerhard Schroeder, bombardeou Belgrado.
A capital da Sérvia já havia sido arrasada em abril de 1941, também pela Luftwaffe, naquela época ostentando a cruz gamada do III Reich. Sem dúvida, a responsabilidade política e a justificação ideológica dos dois bombardeios foram bem diferentes. A Alemanha de Hitler levava adiante, entre outros macabros projetos supremacistas, a submissão dos povos eslavos. A Alemanha atual, principal satélite europeu dos Estados Unidos, se pôs à frente da guerra particularmente covarde em que a OTAN recorreu a sua esmagadora superioridade balística para forçar o governo socialista da Sérvia a capitular, completando a destruição da Iugoslávia e com ela a submissão da Europa ao “Ocidente”.
Durante os anos seguintes, a OTAN usou o pretexto do nunca bem esclarecido atentado dito das “Torres Gêmeas” para despejar uma avalanche de chumbo, aço, urânio e fogo a partir de 2001 no Afeganistão e de 2003 no Iraque, que deixou milhões de vítimas. Em 2011, ela promoveu um novo massacre balístico, desta vez na Líbia, e começou a preparar a operação seguinte, dirigida contra a Síria, para derrubar o governo de Bashar al-Assad. Salvo o Afeganistão, dominado pelos talibãs, os três países árabes atacados pelo cartel da OTAN eram regimes laicos com posições anticolonialistas.
Convencidos de que eram os “donos do mundo”, os plutocratas, políticos e burocratas “ocidentais” demoraram para levar em conta que o Estado nacional russo havia reconstituído suas forças e reafirmado sua condição de potência autônoma. Vladimir Putin, o grande artífice deste ressurgimento, havia decidido não mais assistir de braços cruzados ao espetáculo da recolonização do planeta pelo bloco hegemônico liberal-imperialista. Apoiou a resistência de Bashar al-Assad à desestabilização da Síria promovida pelos grupos armados do terrorismo fundamentalista islâmico e pelos liberais pró imperialistas. O cartel da OTAN replicou apoiando o golpe fascista na Ucrânia.
Em 22 de fevereiro de 2014, com efeito, o presidente da Ucrânia, Victor Yanukovych, contrário aos que pretendiam quebrar o estatuto de neutralidade de seu país fazendo-o aderir à União Europeia e à máquina de guerra da OTAN, foi derrubado por um golpe de Estado, apoiado pelos chefes da União Europeia e por Barack Obama. A junta cripto fascista que assumiu o poder logo desfechou uma vaga de perseguições contra russos em geral e comunistas em especial, revogando a lei que reconhecia o russo como língua oficial em regiões onde ele predominava. As populações de língua russa das regiões de Lugansk e de Donetsk responderam proclamando a independência e dispondo-se defendê-la de armas na mão.
As fontes minimamente objetivas reconhecem que Vladimir Putin empenhou-se em evitar uma escalada no confronto, solicitando publicamente aos dirigentes das duas já proclamadas repúblicas populares que postergassem o referendum para ratificar a independência, de modo a permitir negociações com o governo instalado em Kiev.
Ele bem sabia, entretanto, que a instalação na Ucrânia de um governo submisso ao “Ocidente” completaria o cerco da Rússia pelas bases de mísseis já instaladas em países satélites fronteiriços (em geral tão raivosamente anti russos quanto a “Führerin” van der Leyden ou o Napoleãozinho de Paris). Advertiu a OTAN e o fantoche Volodymyr Zelensky de que os russos se consideravam gravemente ameaçados por suas manobras agressivas. Não foi levado a sério. Quando recorreu ao argumento que lhe restava, o das armas, as belas almas ocidentais simularam indignação, mas tinham cutucado o urso até exasperá-lo.
Volodymyr Zelensky é sabidamente um aventureiro predador, que coletou bilhões de dólares de Joe Biden, seu principal protetor, além do que arrecadou dos europeus histéricos. Gastar somas colossais em uma guerra que não corresponde aos interesses essenciais dos Estados Unidos incomoda sobremaneira Donald Trump, um homem de negócios que detesta jogar dinheiro fora. Por isso repreendeu Volodymyr Zelensky publicamente, exigindo que ele abrisse negociações com a Rússia e que concedesse aos magnatas de “Wall Street” acesso privilegiado às matérias-primas e às terras raras utilizadas em tecnologias de ponta.
Um negócio incomparavelmente mais rentável do que uma “Riviera” de luxo sobre as cinzas de Gaza. E como lucro pede mais lucro, a fatura que Donald Trump apresentou ao fantoche ucraniano atinge 350 bilhões de dólares, embora segundo as próprias fontes governamentais estadunidenses os gastos efetivos, desde 2022, em apoio ao regime cripto fascista de Kiev foram efetivamente de 83,4 bilhões.
Volodymyr Zelensky terá de usar sua arte de passar o pires para tentar arrancar em euros seu déficit de caixa em dólares. Nervosíssimo, o napoleãozinho Emmanuel Macron tem prometido ajudá-lo com o que tem e principalmente com o que não tem. A última palavra está mesmo com Donald Trump e com as terras raras da Ucrânia.
*João Quartim de Moraes é professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Lênin: uma introdução (Boitempo). [https://amzn.to/4fErZPX]
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12