Declaração do
fundador da Wikileaks no primeiro dia do julgamento sustenta que a condenação
de Manning já está definida a priori. “O comandante-em-chefe das Forças Armadas
dos Estados Unidos, Barack Obama, antecipou a todos o enredo”, afirma o
jornalista australiano.
Julian Assange
Carta Maior
Londres - No momento em
que digito estas linhas, em 3 de junho de 2013, o soldado Bradley Edward
Manning está sendo julgado numa sala isolada em Fort Meade, Maryland, pelo
alegado crime de dizer a verdade. Começou, finalmente, a sessão do tribunal
marcial para julgar o mais proeminente prisioneiro político na história moderna
dos Estados Unidos.
Foram três anos. Bradley Manning, então com 22 anos, foi preso em Bagdá em 26
de maio de 2010. Foi enviado para o Kuwait, confinado numa jaula, e mantido no
calor escaldante do Campo de Arifjan.
“Deixei de ter noção do tempo”, disse ao tribunal em novembro. “Não sabia se a
noite era dia ou se o dia era noite. E o meu mundo tornou-se muito, muito
pequeno. Passou a ser estas jaulas... Lembro-me de pensar: 'Vou morrer.'”
Depois dos protestos dos seus advogados, Bradley Manning foi transferido para
uma cela na base dos marines em Quantico, VA, onde – de forma infame – foi
sujeito a um tratamento cruel, desumano e degradante às mãos dos seus captores
– uma revelação formal das Nações Unidas.
Isolado numa minúscula cela vinte e quatro horas por dia, retiraram-lhe os
óculos, não o deixaram dormir, nem usar cobertores e sequer roupas, nem fazer
exercício. Tudo isto – determinado por um juiz militar – “puniu-o” antes mesmo
de ser submetido a julgamento.
“Acredito que o tratamento dado a Brad em Quantico ficará para sempre gravado
na história da nossa nação como um dos mais infelizes momentos de sempre”,
disse o seu advogado, David Coombs. “Não foi apenas estúpido e
contraproducente, foi criminoso.”
Os Estados Unidos eram, em teoria, uma nação de leis. Mas já não o são para
Bradley Manning.
Quando os abusos a Bradley Manning se tornaram um escândalo, que chegava em
linha direta ao presidente dos Estados Unidos, e o porta-voz de Hillary Clinton
se demitiu para deixar registada a sua discordância em relação ao tratamento
dado a Manning, fizeram uma tentativa de tornar menos visível o problema.
Bradley Manning foi transferido para a Instalação Correcional Conjunta Regional
do Meio Oeste em Fort Leavenworth, Kansas.
Esperou durante três anos na prisão por um julgamento – 986 dias mais do que o
máximo legal – porque durante três anos a Procuradoria arrastou os pés e
obstruiu o Tribunal, negou o acesso da defesa às provas e abusou do segredo de
Justiça. Isto é simplesmente ilegal – todos os acusados têm o direito
constitucional de um julgamento célere – mas a transgressão foi reconhecida e
depois ignorada.
Contrário a tudo isto, seria tentador olhar o início deste julgamento como um
benefício. Mas dificilmente o será.
Já não é preciso acompanhar o processo “kafkiano” pelas lentes da ficção ou da
alegoria. Deixou as páginas e vive entre nós, perseguindo os nossos melhores e
mais brilhantes. É correto chamar o que está a acontecer a Bradley Manning um
“julgamento espetáculo”. Os que estão comprometidos com o que se chama “o
sistema de justiça militar dos EUA” sentem a obrigação de defender o que está a
acontecer, mas todos os restantes têm a liberdade de chamar este travesti pelo
seu nome. Nenhum comentador sério tem qualquer confiança num resultado benigno.
As audições anteriores ao julgamento eliminaram qualquer incerteza possível,
impondo interdições prévias a todos os argumentos da defesa que tivessem alguma
hipótese de sucesso.
Bradley Manning não pode dar provas da sua afirmada intenção (de expor os
crimes de guerra e o seu contexto), nem pode apresentar qualquer testemunha ou
documento que mostre que as suas ações não causaram mal a ninguém. No tribunal
de Bradley Manning, você seria expulso se mostrasse que se tratava de uma
questão de autodefesa, porque qualquer alegação ou prova com esta intenção está
proibida. Não é possível mostrar que a vítima, de facto, ainda está viva,
porque isso seria uma prova de ausência de dano.
Mas é claro. Esqueceu-se de quem é o espetáculo?
O governo preparou-se para um grande espetáculo. O julgamento deverá durar estritamente
doze semanas: uma extravaganza coreografada, com um forte elenco de 141
testemunhas de acusação. A defesa viu negada a autorização de chamar todas
menos um punhado de testemunhas. Há três semanas, em sessão fechada, o tribunal
de facto realizou um ensaio. Até mesmo especialistas em legislação militar
consideraram este facto sem precedentes.
A condenação de Bradley Manning já está escrita no guião. O comandante-em-chefe
das Forças Armadas dos Estados Unidos, Barack Obama, antecipou a todos o enredo
quando declarou Bradley Manning culpado há dois anos. “Ele violou a lei”,
declarou, quando lhe perguntaram diante das câmaras, durante um evento de
levantamento de fundos, sobre a sua posição acerca de Manning. Numa sociedade
civilizada, uma declaração tão lesiva seria suficiente para provocar a anulação
do julgamento.
Para condenar Bradley Manning, o governo dos EUA terá de ocultar partes
importantes do seu julgamento. Partes-chave serão realizadas em segredo: 24
testemunhas de acusação vão depor em sessão fechada, permitindo que o juiz
alegue que provas secretas justifiquem a sua decisão. Mas justiça fechada não é
justiça alguma.
O que não puder ser mantido em segredo será escondido pela confusão. A
localização remota da sala de sessões, as restrições arbitrárias e
discricionárias de acesso dos jornalistas, e a complexidade deliberada e a
escala do processo têm todas o objetivo de conduzir repórteres sequiosos nos
braços dos relações públicas militares, que andarão a girar em torno da sala de
imprensa de Fort Meade como ansiosos assistentes de vendas. A gestão do
processo de Bradley Manning não vai deter-se nos limites da sala do tribunal.
Já foi revelado que o Pentágono está a monitorizar de perto a cobertura dos
média e as discussões das redes sociais sobre o processo.
Nada disto é justiça; nem nunca poderia ser. O veredicto já ficou estabelecido
há muito tempo. A sua função não é determinar questões como culpa ou inocência,
verdade ou mentira. É um exercício de relações públicas, com o objetivo de dar
ao governo um álibi para a posteridade. É um espetáculo de vingança inútil; uma
advertência teatral às pessoas que têm consciência.
A alegada ação a respeito da qual Bradley Manning é acusado é uma atitude de
grande consciência – a mais importante revelação de sempre da história dos
oprimidos. Não há sistema político em lugar algum da terra que não se tenha
iluminado em consequência. No tribunal, em fevereiro, Bradley Manning disse que
queria expor a injustiça, e provocar um debate e uma reforma mundiais. Bradley
Manning é acusado de ser um whistleblower (alguém que sopra a verdade), um bom
homem, que se preocupou com os outros e que seguiu desígnios mais altos. A
verdade é que Bradley Manning é acusado de conspiração para fazer jornalismo.
Mas não é esta a linguagem que a Procuradoria usa. A acusação mais séria contra
Bradley Manning é de que “ajudou o inimigo” – um crime capital que deve
requerer a pena máxima, mas aqui o governo dos EUA ri do mundo, para dar vida a
um fantasma. O governo sustenta que Bradley Manning comunicou com uma
organização de média, a Wikileaks, que repassou ao público a informação. Também
argumenta que a al-Qaeda (quem mais) é membro do público. Desta forma,
argumenta, Bradley Manning comunicou “indiretamente” com a al-Qaeda, uma
organização formalmente “inimiga” dos EUA, logo, Bradley Manning comunicou com
“o inimigo”.
Mas e quanto à “ajuda” dessa acusação mais grave, “ajudar o inimigo”? Não se
esqueçam de que se trata de um julgamento-espetáculo. O tribunal baniu qualquer
prova de intenção. O tribunal baniu qualquer prova de consequência, de falta de
dano, de ausência de qualquer vítima. Decidiu que o governo não precisa de
demonstrar que ocorreu qualquer “auxílio” e a Procuradoria não alega que essa
ajuda existiu. O juiz estabeleceu que é suficiente que a Procuradoria demonstre
que a al-Qaeda, como o resto do mundo, lê a Wikileaks.
“A liberdade não pode ser preservada sem o conhecimento geral do povo”,
escreveu John Adams, “que tem o direito e o desejo de saber”.
Quando comunicar com a imprensa é “ajudar o inimigo” é o próprio “conhecimento
geral do povo”que se torna crime. Da mesma forma que Bradley Manning é
condenado, também o é o espírito da liberdade no qual os Estados Unidos foram
fundados.
No final, não é Bradley Manning que está a ser julgado. O seu julgamento há
muito que terminou. O acusado agora, e nas próximas 12 semanas, é os Estados
Unidos da América. Militares descontrolados, cujos delitos foram postos a nu, e
um governo sigiloso em guerra com o povo. São eles que estão no banco dos réus.
Nós somos chamados a servir de juristas. Não podemos virar as costas.
Libertem Bradley Manning.
Tradução do Esquerda.net
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