A tibieza do governo argentino –
ao não ir até as últimas consequências após a corajosa suspensão unilateral de
pagamentos aos credores externos – põe agora o país numa situação melindrosa. A
medida da suspensão não foi seguida das que se impunham, nomeadamente de uma
auditoria rigorosa a fim de verificar a parte válida da dívida. A lição que se
pode extrair deste processo é que vacilações, ou tentativas de conciliação com
credores, podem dar maus resultados.
Também no dossier do petróleo o
governo de Cristina Kirchner está a ser tímido. Isso verificou-se no caso da
nacionalização apenas parcial da Repsol. E, nos últimos dias, com a aceitação
passiva de um contrato com cláusulas secretas que uma das suas províncias
assinou com a petrolífera Chevron (contrato ilegal de acordo com as próprias
leis argentinas, que determinam serem todas as reservas de hidrocarbonetos
propriedade federal e não das províncias).
A ideologia peronista de
conciliação de classes leva o governo à pretensão utópica de construir um
"capitalismo nacional" – o que já não é possível nos dias hoje.
resistir.info
por Eduardo Lucita [*]
Uma nova sentença da justiça
americana confirmando a anterior do juiz Griesa em favor dos "fundos
abutre" vai fechando o cerco financeiro sobre a Argentina, enquanto mais
uma vez coloca a dívida no centro das preocupações económicas.
O aguardo ultimatum dos
"fundos abutre" tornou-se realidade. A Câmara de Apelações de Nova
York, em segunda instância, sentenciou contra o nosso país. Assim a sentença do
juiz de primeira instância Thomas Griesa, que havia ordenado à Argentina o
pagamento de 100 por cento da dívida, mantém pleno vigor.
Trata-se de um segundo round
ganho pelos "fundos abutre", NML Capital Ltd e Aurelius Capital
Management. Convém recordar que estes especuladores possuem títulos numa
quantidade muito pequena em relação ao total dos possuidores desses valores que
não aceitaram as trocas anteriores – uns 1.330 milhões de dólares num total de
11.100.
Nesta sentença há uma diferença
qualitativa em relação à primeira. É que as argumentações dos três juízes
intervenientes, desenvolvidas em 25 páginas, são de uma dureza – "a
Argentina é um devedor recalcitrante", chegaram a dizer – é conteúdo
irónico inabituais, o que não permite bons presságios. É certo que tudo passará
agora ao Tribunal Supremo, ainda que nada garanta que tome o caso e, se o
fizer, sentencie de maneira diferente.
Problema político
Por agora não está no horizonte
uma nova cessação de pagamentos por parte da Argentina. O governo argentino deu
abundantes indicações de ser um fiel expoente daqueles que privilegiam acima de
tudo "honrar as dívidas". A própria presidenta da Nação, Cristina
Fernández, o reconheceu. "É o governo que mais dívida pagou na
história" ou "a Argentina é um pagador serial", foram as
palavras que utilizou quando anunciou o envio ao Congresso nacional de um
projecto de lei que mais uma vez reabre a troca. O projecto de lei mantém as
mesmas condições de pagamento para os 7 por cento dos credores que não entraram
nas reestruturações de 2005 e 2010. Adicionalmente haverá uma oferta para que
os possuidores de títulos recebam no país, uma vez que a nova sentença ratifica
os condicionamentos para que o banco de Nova York não possa continuar a ser
agente de pagamento.
Até agora o governo tratou a
ofensiva dos fundos abutre como um problema meramente jurídico, que envolve o
país com credores privados e despejou esforços e recursos a litigar em justiça
alheia. Nada mais errado. Não reparou que na realidade a Argentina caiu numa
armadilha, num problema político que é na realidade global. A própria sentença
não se baseia em conceitos da técnica jurídica e sim em considerações políticas.
Para além da Argentina
O que o capital financeiro
internacional está a discutir, e parece que nisto triunfará o sector mais
radical, é que não aceitará nunca mais uma renegociação da dívida de qualquer
país que implique uma quitação de capital. Assim, o exemplo argentino é um mau
precedente. Do que se trata é que não se reitere uma negociação directa de um
país com os seus credores sem intervenção do Fundo Monetário Internacional
(FMI). Vista desta óptica, a ofensiva dos "fundos abutres" obedece a
seus interesses usurários, mas para o grande capital é a escusa buscada para
repor a arbitragem e a capacidade de monitoramento do FMI em qualquer
negociação.
Convém recordar que quando
ocorreu o disparar da crise mundial, as reuniões do G-20 concluíam propondo
reformas ao organismo internacional e ao próprio sistema financeiro. E que
ficaram essas reformas? Recapitalizou-se o Fundo e este foi colocado no centro
das decisões financeiras mundiais. Sua actuação na Europa, fazendo parte da
Troika (FMI, BCE, CE) dispensa maiores comentários.
A partir do momento em que esta
sentença fique confirmada, e é muito possível que assim seja – não em vão a
presidenta pediu a Deus que ilumine o Supremo Tribunal dos Estados Unidos – não
haverá mais reestruturações e trocas de dívidas com quitações, todo possuidor
de título exigirá receber os 100 por cento e se for ao contado melhor. É para
isto que aponta o capital financeiro internacional e a sentença é funcional
para este objectivo.
A centralidade da dívida
A dívida recuperou sua
centralidade. Já o dissemos por ocasião da sentença do juiz Grieza: são os
custos de se haver negado a investigá-la. Quanto à reestruturação, em
Economistas de Izquierda o assinalámos, era o momento de aproveitar a suspensão
unilateral de pagamentos, auditar a dívida e determinar o que se devia pagar
efectivamente o que não. Optou-se, pelo contrário, pelo que a própria
presidenta qualificou como "a reestruturação de dívida externa mais
importante de que se tem memória". O pagamento dos serviços da dívida, dos
títulos ajustados pelo CER, de cupões atados ao Produto Interno Bruto,
significaram uma carga financeira enorme – segundo a própria mandatária, desde
2003 até à data pagou-se a bagatela de 173.333 milhões de dólares – que só foi
possível enfrentar dilapidando reservas.
O primeiro passo
Se a esta enorme soma de fundos
for agregada a fuga de quase 80 mil milhões de dólares, ter-se-á uma ideia do
excedente económico que gera a economia nacional, que bem poderia ter sido
dedicada a resolver a crise do transporte ou da energia, a melhorar a saúde
público ou aos aposentados ou a um plano de habitações populares.
Os gurus da City e o
establishment económico apoiam sem vacilações a reabertura da troca, enquanto a
oposição direitista já anunciou que o votará positivamente no Congresso. Sabem
que é o primeiro passo, a seguir virá o Clube de Paris e finalmente a volta do
endividamento.
O círculo vai-se fechando, por
trás disto aguarda o Centro Internacional de Acerto de Diferenças Relativas a
Investimentos (Ciadi) que continua a acumular juízos contra o país. A economia
marcha para uma encruzilhada, acentuam-se os desequilíbrios fiscais, monetários
e produtivos, o ajuste está no horizonte, próximo ou em 2014. Já conhecemos os
seus resultados.
Outra política
Contudo, na crise está a
oportunidade. Ainda é tempo de por em marcha outra política. A Argentina não
tem outra opção senão desconhecer a sentença que, a cumprir-se, somaria
exigências incalculáveis de milhares de milhões de dólares. É necessário
suspender os pagamentos até que se investigue a dívida externa, a começar por
aquela na qual se cedeu soberania jurídica, e retirar-se do Ciadi. Faz-se
necessário cercar-se da solidariedade internacional, começando por promovê-la
dentro da Unasul.
Recursos há, a economia os gera.
Mas há que buscá-los onde estão. Estatizar o comércio de cereais para
apropriar-se da renda que hoje fica com as grandes exportadoras. Controlar
eficazmente a banca e as finanças é indispensável para encerrar toda fuga de capital.
Rever as isenções fiscais e os subsídios como um avanço em direcção a uma
reforma tributária integral progressiva que grave os patrimónios e as rendas do
capital, substitua a tributação dos salários por um imposto sobre os altos
rendimentos e reduza o IVA aos alimentos e artigos de primeira necessidade.
Repor as Contribuições Patronais ao sistema de Segurança Social aos níveis dos
anos 90. Avançar na nacionalização dos recursos energéticos e dos serviços
ferroviários com controle social. Reduzir a jornada laboral, começando pelo
estrito cumprimento da jornada legal de oito horas e democratizar os estatutos
sindicais, modificar a legislação que permite a precarização. É o momento
também de anular muitas leis em vigor desde a época da ditadura.
Jogar a partida
Está em jogo o interesse
nacional. Mas não é este o interesse dos banqueiros, dos grandes empresários
nem dos caciques sindicais sócios dos capitalistas. Não é o interesse dos que
jogam em primeira, dos titulares com os quais o governo dialoga. Sim o
interesse dos que estão na reserva da Nação. Dos trabalhadores, dos jovens que
buscam um futuro, dos sectores médios empobrecidos, dos oprimidos...
Uma política distinta requer uma
aliança social e política diferente da actual. Não será uma partida simples,
mas é necessário jogá-la, antes de regressarmos à zona onde já estivemos.
30/Agosto/2013
[*] Argentino, integrante de
EDI-Economistas de Izquierda.
O original encontra-se em
http://www.argenpress.info/2013/08/fondos-buitre-la-deuda-en-debate-y-el.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/ .
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