O microcrédito não tira os pobres da pobreza: ele os
disciplina. De fato, ele é o que há de menos pior: o empreendedorismo por falta
de um emprego regular, o crédito para compensar os salários insuficientes
As microfinanças – concessão de empréstimos e oferta de
produtos de poupança ou seguro – permitem aos menos favorecidos empreender a
fim de sair da pobreza. A juros enormes (30% ao ano ou mais),1 indivíduos ou
grupos sem fiador obteriam meios para desenvolver uma atividade artesanal ou
comercial que poderia lhes abrir portas. A vendedora de panos da região de
Andra Pradesh, na Índia, prosperou porque pôde comprar uma carroça; um viúvo da
periferia de Oulan-Bator, na Mongólia, multiplicou por sete seu rebanho em
menos de dez anos, e a venda do leite de suas 45 vacas sustenta sua família...
As instituições de microcrédito não poupam cases edificantes.
Por permitir, graças a ações paliativas, a aceitação do
mundo como ele é, as microfinanças contam com um número considerável de
adeptos, principalmente entre os políticos, os empresários, os filantropos e as
associações de luta contra a pobreza. Ter a atitude empreendedora por
princípio, o mercado por base, o capitalismo “justo e sustentável” por
objetivo: esse é o credo, encarnado por Muhammad Yunus, fundador do banco de
microcrédito Grameen e ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2006.2
Em Oslo, durante a entrega do prêmio, no dia 10 de dezembro
de 2006, o “banqueiro dos pobres” tinha elevado o crédito ao patamar de
“direito humano”. Ele profetizava que as próximas gerações poderiam não
conhecer mais a miséria e comparava os pobres a bonsais, cujo crescimento era entravado
pela sociedade.
A profecia não se realizou. Comissionada pelo Ministério do
Desenvolvimento Internacional britânico, a equipe dirigida pela economista
Maren Duvendack revisou 2.643 publicações relacionadas com o impacto econômico
e social das microfinanças, principalmente para as mulheres: os resultados se
revelaram nulos. No início de 2013, outro estudo confirmou que não apenas os
pobres não adoravam empréstimos dispendiosos, mas também aqueles que os
contraíam não se saíam melhor que os outros. Em outras palavras, a educação, a
saúde e a capacidade das pessoas de ter o controle de sua existência não
melhoravam.
Constatou-se, por outro lado, nas casas endividadas, queda
no consumo dos “bens tentadores” – álcool, tabaco, restaurantes –, diminuição
das despesas ostensivas com festas e esforço redobrado no trabalho.3 O
microcrédito não tira os pobres da pobreza: ele os disciplina. De fato, ele é o
que há de menos pior: o empreendedorismo por falta de um emprego regular, o
crédito para compensar os salários insuficientes. Segundo John Hatch, fundador
de uma ONG pioneira nas microfinanças, 90% dos empréstimos iriam para o
consumo, e não para o investimento.4
Mais do que se atolar em uma argumentação laboriosa
sustentando que a falta de provas não significa ausência de impacto, os
casuístas reformularam seu conceito. Assim, o Banco Mundial, por intermédio do
Grupo Consultivo de Assistência aos Pobres (CGAP, na sigla em inglês), promoveu
a “inclusão financeira”. Da luta contra a pobreza pelo empreendedorismo a
crédito, passamos então para a difusão de produtos financeiros para os mais
desfavorecidos.
Desde os anos 1970, as vanguardas mutualistas ou públicas do
microcrédito mostravam que era possível emprestar aos indigentes com taxas de
juros inferiores às dos usurários locais. Desde então, desenvolveu-se em todo o
mundo um setor de atividades concorrenciais e lucrativas para os intermediários
financeiros e os fornecedores de capitais. Ao longo das duas últimas décadas, o
número de clientes se multiplicou por vinte – eram cerca de 200 milhões em 2011
–, para empréstimos cujos montantes acumulados se aproximam dos US$ 90 bilhões.
Entre os mil operadores de microfinanças cujas contas estão disponíveis na base
de dados especializada MixMarket, 43% têm rentabilidade dos próprios capitais
superior a 10%, e um quarto ultrapassa o piso dos 20% ao ano.
As fontes de financiamento continuam sendo amplamente
públicas: o Banco Alemão de Desenvolvimento (KfW, na sigla em alemão) é a maior
delas. Mas os fornecedores de fundos estimularam instituições privadas e com
objetivo lucrativo a fim de atrair os capitais privados que davam continuidade
às subvenções. Essa privatização enfraquece os fundamentos cooperativos,
mutualistas ou associativos das estruturas originais e encoraja a lógica das
aplicações ao mesmo tempo suculentas e oportunistas.
Da mesma maneira que o Tartufo de Molière prometia “amor sem
escândalo e prazer sem medo”, os fundos de investimento apresentam os produtos
financeiros para pobres como uma boa e barata ação sem riscos. Para conjurar
qualquer falha, “os fundos devem saber se as instituições de microfinanças
fazem bem seu trabalho, ou então lhes basta financiar apenas as que são mais
lucrativas, pouco importando como”, observa o médico Hugh Sinclair.5
Em matéria de microcrédito como de subprime, a epifania
aconteceu em 2007. Fundada em 1990 graças a doações públicas, a associação
mexicana Compartamos tinha criado um banco homônimo para levantar capitais
junto a investidores “éticos” – incluindo fundos de pensão que tranquilizavam a
garantia do Banco Mundial – por meio de produtos financeiros concebidos pelo
banco Citigroup. Entre 2000 e 2007, os rendimentos ultrapassavam os 50% graças
a, ou por causa de, um custo real do crédito superior a 100% por ano para os
600 mil clientes.
A introdução na Bolsa de 30% do capital do banco permitiu
aos acionistas faturar US$ 450 milhões em mais-valia latente: US$ 150 milhões
para os funcionários da Compartamos, os bancos mexicanos e outros investidores
privados; US$ 300 milhões para a associação Compartamos, a associação
norte-americana Accion e a Sociedade Financeira Internacional (grupo Banco
Mundial). Até mesmo os apóstolos das microfinanças comerciais pareceram
balançados por essa transubstanciação.6
A segunda sacudida veio das crises repetidas: na Bolívia
(2000), no Marrocos (2007), na Bósnia e Herzegovina, na Nicarágua e no
Paquistão (2008), e na Índia (2005 e 2010). A cada vez, a expansão total da
atividade atraiu operadores ávidos de dinheiro, o que aumentou o endividamento
dos lares até que eles não pudessem mais reembolsar os empréstimos. Essas
crises se assemelham em todos os pontos àquelas dos subprimesem 2008: a
realização, por organismos financeiros sem regra nem lei, de empréstimos
custosos para os indivíduos forçados a se endividar para compensar os salários
estruturalmente insuficientes ou incertos. A analogia não é fortuita: é a
consequência necessária de um crescimento econômico que faz da extensão das
atividades financeiras privadas, concorrenciais e (auto)reguladas a solução,
mais do que a causa das desigualdades.
1 Richard Rosenberg, Scott Gaul, William Ford e Olga
Tomilova, “Microcredit interest rates and their determinants: 2004-2011” [Taxas
de retorno do microcrédito e seus determinantes: 2004-2011], Consultative Group
to Assist the Poor (CGAP), Kreditanstalt für Wiederaufbau (KfW) e Microfinance
Information Exchange (MIX), 7 jun. 2013. Essas taxas são em geral inferiores
àquelas, astronômicas, que pedem os usurários informais.
2 Ler Cédric Gouverneur, “Microcrédit, le commerce de
la misère” [Microcrédito, o comércio da miséria], Le Monde Diplomatique, abr.
2012.
3 Maren Duvendack (org.), “Systematic review. What is
the evidence of the impact of microfinance on the well-being of poor people?”
[Revisão sistemática. Qual é a evidência do impacto das microfinanças no
bem-estar dos pobres?], Department for International Development, Londres,
2011; Abhijit Banerjee, Esther Duflo, Rachel Glennerster e Cynthia Kinnan, “The
miracle of microfinance?Evidence from randomized evaluation” [O milagre das
microfinanças? Evidência de avaliação aleatória], Working Paper Series,
n.18.950, Cambridge, maio 2013.
4 Steve Beck e Tim Ogden, “Beware of bad microcredit”
[Cuidado com o microcrédito ruim], Harvard Business Review, set. 2009.
5 “All the interests are aligned against the poor”
[Todos os interesses estão alinhados contra o pobre], entrevista com Hugh
Sinclair, 4 out. 2012. Disponível em: . Cf. Hugh Sinclair, Confessions of a
microfinance heretic [Confissões de um herege das microfinanças],
Berrett-Koehler, São Francisco, 2012.
6 Richard Rosenberg, “Réflexion du CGAP sur
l’introduction en bourse de Compartamos: une étude de cas sur les taux
d’intérêt et les profits de la microfinance” [Reflexão do CGAP sobre a
introdução na Bolsa da Compartamos: um estudo de caso sobre as taxas de juros e
os lucros das microfinanças], Note Focus CGAP, n.42, Washington, jun. 2007.
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