por Anne-Cécile Robert
O veto que Moscou, por três vezes, opôs às resoluções da ONU
que ameaçavam impor sanções a Damasco repousa “sobre uma concepção insuportável
da legalidade internacional”, estimou um diplomata à margem da XXI Conferência
Anual dos Embaixadores da França, no Palácio do Eliseu, em 28 de agosto de
2013.1 Cada vez mais frequente nos debates de política externa, esse tipo de
declaração revela a mudança de atitude das relações internacionais.
Desde o século XIX, a ordem jurídica mundial tende
prioritariamente a “erradicar o flagelo da guerra”, nas palavras da Carta da
ONU. Como a Liga das Nações2 que a precedeu, a organização faz da paz o valor
supremo, em função da qual as instituições e a legislação se organizam. Seu
objetivo primeiro é “manter a paz e a segurança internacionais” (artigo 1,
parágrafo 1). Nessa perspectiva, são proibidos o uso da força e a ingerência
nos assuntos internos das nações (artigo 2), porque perturbam as relações
internacionais e podem levar à guerra.
Para preservar – e na necessidade de restabelecer – a paz, a
“segurança coletiva” implica garantias: mecanismos jurídicos, diplomáticos e
institucionais, coercitivos ou não, que permitem reagir em comum contra uma
ameaça à paz e à estabilidade internacionais. Assim, o capítulo VI da Carta
incide sobre a solução pacífica das controvérsias. Já de início o famoso capítulo
enfatiza a precedência em relação ao recurso à força que pode ser autorizado
pelo Conselho de Segurança. O artigo 33 afirma em especial: “As partes em uma
controvérsia, que possa vir a constituir uma ameaça à paz e à segurança
internacionais, procurarão, antes de tudo, chegar a uma solução por negociação,
inquérito, mediação, conciliação, arbitragem, solução judicial, recurso a
entidades ou acordos regionais, ou a qualquer outro meio pacífico à sua
escolha”.
Trata-se de elaborar, por meio da “cooperação” e de
“relações amigáveis”, um espaço público global de discussão e de negociação no
qual se definem regras do jogo aceitas por todos. Assim, as imunidades
diplomáticas permitiram a fluidez das relações entre os países, com os
embaixadores e outros emissários da paz não tendo mais medo de ser sacrificados
pela ira de um anfitrião insatisfeito. Elas certamente não são uma forma de
combater os líderes do crime, mas criam a possibilidade de um diálogo,
minimizando os mal-entendidos.
Não faltam fracassos da segurança coletiva, como o lembra a
retirada do Japão e da Alemanha da Liga nos anos 1930, um prelúdio da Segunda
Guerra Mundial. Da mesma forma, depois de 1945, a guerra não desapareceu da
face da Terra. No entanto, uma norma foi definida para a coletividade dos
países; quem quiser se desviar dela deve se justificar. E de qualquer forma
ainda há alguns grandes sucessos da ONU, como a autodeterminação do Timor
Leste3 e a descolonização da Namíbia.
“Nada a descobrir na contemplação da violência”
Se a paz é o valor básico, não se trata de excluir a
proteção dos direitos humanos do campo da intervenção internacional, mas de
estabelecer uma ordem de prioridade. O desenvolvimento da segurança coletiva se
faz acompanhar daquele do direito humanitário, cujas premissas apareceram após
o massacre da Batalha de Solferino, em 1859. A falta de recursos para a saúde
tinha, então, levado à criação da Cruz Vermelha e à adoção de regras legais
para facilitar o acesso dos socorros ao campo de batalha. Mais tarde, o massacre
de Ypres pelo Exército alemão em abril de 1915 levou, em 1925, a uma convenção
que proibiu o uso de armas químicas. Foi nessa pequena cidade belga que se
utilizou pela primeira vez o gás de mostarda em larga escala.4
Do ponto de vista da segurança coletiva, a invocação dos
direitos humanos suscitou de início a desconfiança porque serviu de pretexto a
estratégias imperialistas. No século XIX, as potências europeias recorriam a
eles para justificar a interferência nos países que queriam colonizar
(“intervenções humanitárias”).5 Idealmente, a proteção da população deveria ser
um dos benefícios colaterais da paz. E, na defesa das liberdades, o uso da
força só intervém como último recurso, quando todas as vias pacíficas fracassaram.
O mundo pós-Guerra Fria não questionou a visão de um direito
internacional como uma “torre de controle” dos comportamentos dos países no
exterior. Desde o caso de Manchukuo (a invasão da Manchúria pelo Japão) em
1932, as anexações de território pela força foram proibidas. Ordenada pelo
Conselho de Segurança, a guerra pela libertação do Kuwait em 1990 se encaixou
nesse quadro.
Mas a sequência dos acontecimentos permitiu então um
vislumbre da virada “emocional” das relações internacionais. Foi após o falso
testemunho da filha do embaixador do Kuwait nos Estados Unidos, descrevendo a
agonia de bebês em incubadoras desligadas, que o Congresso norte-americano
decidiu autorizar a ação militar contra o Iraque.
Em 1999, com a intervenção da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan) no Kosovo, não autorizada pelo Conselho de Segurança,
confirmou-se o início de uma mudança na ordem das prioridades internacionais.
Os meios de comunicação e a pressão de numerosas associações alimentaram o
movimento. As imagens de mulheres e crianças fugindo dos abusos do Exército
sérvio, acusado de organizar uma “limpeza étnica”, suscitaram uma reprovação
legítima do regime de Slobodan Milosevic.6 Mas, passados quinze anos, tendo o
“mestre de Belgrado” morrido em uma prisão em Haia e o Kosovo proclamado sua
independência, seus novos líderes não são modelos de virtude e há inúmeros
incidentes de fronteira entre albaneses, sérvios e kosovares. Pouco importa
para a Aliança Atlântica: pensar a segurança coletiva conta menos do que ter
“punido” Milosevic.
Um cenário semelhante caracterizou a intervenção
anglo-francesa na Líbia na primavera [do Hemisfério Norte] de 2011: os crimes
do regime de Muamar Kadafi, abundantemente relatados por intelectuais de
reflexão fraca e expressão forte, prepararam a opinião pública para uma ação
militar internacional. Mas, após a queda do Guia, os mercenários desempregados
e os arsenais pilhados da Líbia favoreceram a desestabilização do Sahel, tendo
como ponto culminante a divisão do Mali e um ano depois... uma nova operação
militar ocidental.
Mais uma vez a segurança coletiva havia sido relegada a
segundo plano, apesar dos esforços consideráveis da União Africana, que tentou
várias mediações com Kadafi – todas abortadas sob a pressão das chancelarias
europeias. No final de agosto de 2013, o drama chegou de novo ao auge, já que
os crimes químicos cometidos na Síria enchem de desgosto os corações mais
sensíveis.
Uma criança que chora, o corpo crivado de balas de uma jovem
ou o cadáver de um camponês morto sob um monte de bombas levam facilmente à
reflexão. “A preocupação”, explica, contudo, Françoise Bouchet-Saulnier, dos
Médicos sem Fronteiras, “é que não há nada a descobrir na contemplação da
violência”. Um cadáver não explica nada de sua triste sorte. E, desde o
incidente de Mukden, em 1931, conhece-se a propensão dos regimes ansiosos para
ir à guerra a organizar a precipitação dos acontecimentos.7 Durante o verão [do
Hemisfério Norte] de 1994, em Ruanda, os meios de comunicação franceses se apiedaram
de colonos refugiados antes de perceber que se tratava de genocidas em fuga...
Os Brics recusam-se a continuar de fora
Com o surgimento da “responsabilidade de proteger as
populações”,8 o direito internacional mergulha um pouco mais profundamente no
banho da emotividade, com cada um colocando sua “linha vermelha” no lugar que
lhe convém, sem nem sequer fingir se preocupar com a “segurança coletiva”. Mas,
mais uma vez na questão síria, os diplomatas parecem ter sido convencidos de
que não poderiam “não fazer nada”, alguns se deixando levar por certo
messianismo. Como se só houvesse a via armada.
Contrariamente à tradição que é sua há décadas, o governo
francês assume assim um “absolutismo moral”, que não deixa de lembrar a atitude
dos neoconservadores norte-americanos. Estes, na época de George W. Bush,
tinham mergulhado a “comunidade internacional” em um clima de Velho Testamento,
falando em “punições” e “castigos” do “Eixo do Mal” no Iraque ou no
Afeganistão. Ao fazê-lo, Paris impede qualquer negociação séria, eliminando das
discussões algumas facções da oposição síria.
Como assinalam alguns psicanalistas, a emotividade revela a
imaturidade do sujeito que não resolveu alguns conflitos afetivos da infância.
Estaria a sociedade internacional em plena regressão? A ideia de “ataques” mais
ou menos “cirúrgicos”, que habilmente evitam os inocentes para atingir apenas
os carrascos, apoia-se no pensamento mágico. As mortes de civis tornam-se,
nessa visão, meros “danos colaterais”. E o uso de drones, dirigidos a
distância, por soldados mantidos bem longe dos combates também participa da
eufemização infantil da violência. Essa prática é certamente menos
traumatizante para os militares que a realidade de um bombardeio, como os que a
Europa conheceu entre 1939 e 1945, em Roterdã ou em Dresden.
Segundo a Anistia Internacional, 112 países torturaram seus
cidadãos em 2012; em cinquenta, as forças de segurança são responsáveis por
homicídios ilegais cometidos em tempos de paz; em 31, registraram-se
desaparecimentos forçados. É provável que a Síria figure em todas essas “listas
negras” – assim como outros Estados ditatoriais ou autoritários, cujas
populações não têm, em sua desgraça, a chance de ser objeto da atenção
diplomática e da mídia. Contam-se milhões de mortos na República do Congo desde
1997, e a repressão de tâmeis no Sri Lanka fez 40 mil vítimas em 2012.
Que buscam em última instância as grandes potências que,
desde 1990, realizam intervenções militares “humanitárias”? O que elas têm a
ganhar com a banalização do uso da força? Ao distorcer a Carta das Nações
Unidas, não se abre a porta da ONU, já frágil, para os ventos tumultuosos das
relações de forças desenfreadas? Deslegitimam-se as regras do jogo
estabelecidas em 1945. Prenúncio dessas perturbações, a intervenção da Otan no
Kosovo tinha justificado, aos olhos de Moscou, a repressão na Chechênia. Se o
abuso da força é, em todos os momentos, o apanágio dos poderosos, por que
facilitá-lo enfraquecendo aquilo que pode detê-lo?
A mobilização de Paris e Washington, perante a oposição dos
Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) no caso sírio, lança uma
luz crepuscular sobre os equilíbrios internacionais herdados da Segunda Guerra
Mundial. A justificativa para o uso da força, sem medo de violar a Carta das
Nações Unidas, reavivou na memória dos países do Sul a lembrança de
intervenções humanitárias. Brasília, Pretória e Nova Déli exigem o respeito a
ela. Recusam-se a ser relegadas à sala de espera da “comunidade internacional”.
Não são mais os países dependentes e submissos de outrora. Pensando justificar,
com um ativismo militar desenfreado, seu prestígio internacional, não estaria a
França preparando sua expulsão da história e, mais especificamente, a perda de
um direito de veto que sua identificação com um Ocidente guerreiro não poderia
mais justificar?
Anne-Cécile Robert é jornalista e autora, com Jean
Christophe Servant, de Afriques, années zéro (Nantes, L'Atlante, 2008).
Ilustração: Daniel Kondo
1 Le Figaro,
Paris, 28 ago. 2013.
2 Thierry de
Montbrial e Jean Klein, “Sécurité collective” [Segurança coletiva], em
Dictionnaire de stratégie, PUF, Paris, 2000, p.305-309.
3 Ler Frédéric
Durand, “Fragile rétablissement au Timor-Leste” [Frágil recuperação no Timor
Leste], Le Monde Diplomatique, jul. 2012.
4 Um milhão de
soldados teriam sido submetidos a gases durante a Primeira Guerra Mundial; 90
mil teriam sido mortos em virtude disso.
5 Os europeus,
em particular, invocaram a necessidade de proteger os cristãos no Império Otomano.
Ler Antoine Rougier, “La théorie de l’intervention d’humanité” [A teoria da
intervenção humanitária], Revue Générale de Droit International Public, Paris,
1910, p.486-526.
6 Ler Serge
Halimi, “Quand le doigt montre la lune” [Quando o dedo aponta para a lua], Le
Monde Diplomatique, maio 1999.
7 A destruição
de uma ferrovia pertencente a uma empresa japonesa em Mukden (hoje Shenyang)
foi usada como pretexto para a invasão da Manchúria do Japão em 18 de setembro
de 1931.
8 Ler
“Origines et vicissitudes du ‘droit d’ingérence’” [Origens e vicissitudes do
“direito de intervir”], Le Monde Diplomatique, abr. 2011.
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