por Martin Denoun e Geoffroy Valadon
Na casa de cada um de nós existem ao mesmo tempo um problema
ecológico e um potencial econômico. Temos em nosso lar muitos bens que não
utilizamos: a furadeira que dorme dentro de um armário e só será útil, em
média, por treze minutos em sua vida, os DVDs que foram vistos uma ou duas
vezes e se acumulam, a máquina fotográfica que capta mais pó do que luz, mas
também um carro que só usamos sozinhos menos de uma hora por dia, ou o
apartamento que fica vazio por todo o verão. A lista é longa. E representa uma
quantidade impressionante tanto de dinheiro quanto de lixo futuro.” Tal é,
grosso modo, a chamada principal dos teóricos do consumo colaborativo. Pois,
acena com um grande sorriso Rachel Botsman,1 uma das chefes da fila,
“precisamos do buraco, não da furadeira! Do filme, não de um DVD, de
transporte, não de um carro”.
Jeremy Rifkin foi quem diagnosticou essa transição de uma
era da propriedade para uma “era do acesso”,2 na qual a dimensão simbólica dos
objetos diminui à medida que aumenta sua dimensão funcional: enquanto um carro
era outrora um elemento de statussocial que justificava sua compra para além de
sua utilidade, os consumidores passaram agora a alugar seu veículo.
Hoje, é o próprio carro ou a própria casa que os jovens
propõem para locação. Se desse modo provocam o desespero de muitos industriais
da automobilística ou da hotelaria, outros veem nisso um desapego com relação
aos objetos de consumo que traz esperanças. As plataformas de troca permitem um
melhor emprego dos recursos, atomizam a oferta, eliminam os intermediários e
facilitam a reciclagem. Assim, elas destroem os monopólios, fazem baixar os
preços e trazem novos recursos aos consumidores. Estes seriam, assim, levados a
comprar bens de qualidade, mais duráveis, incitando os industriais a renunciar
à obsolescência programada. Seduzidos pelos preços baixos e pela comodidade
dessas relações par a par (P2P), eles contribuiriam com a redução dos dejetos.
A imprensa internacional, do Times ao Le Monde, passando pela The Economist,
deu “capa” sobre essa “revolução no consumo”.
Um truque de astúcia
Os partidários do consumo colaborativo são frequentemente
pessoas que se decepcionaram com o “desenvolvimento sustentável”. Mas, ainda
que critiquem sua superficialidade, é raro que façam uma crítica aprofundada.
Dizendo-se, sobretudo, seguidores de Rifkin, nunca evocam a ecologia política.
Citam Gandhi com boa vontade: “Há recursos suficientes neste planeta para
suprir as necessidades de todos, mas não haverá nunca o bastante para
satisfazer os desejos de posse de alguns”.3 Isso não os impede de manifestar
uma forma de desprezo em relação aos partidários da diminuição e dos militantes
em geral, vistos como utopistas marginais e “politizados”.
“Foi em 2008 que atingimos o limite. Juntos, a mãe natureza
e o mercado disseram ‘stop!’. Sabemos bem que uma economia baseada no
hiperconsumo é uma pirâmide de Ponzi,4 um castelo de cartas”, argumentava
Rachel durante a conferência Technology, Entertainment and Design (TED).5
Segundo ela, a crise, obrigando as pessoas a se virar, teria gerado um aumento
de criatividade e confiança mútuas que provocou a explosão desse fenômeno do
consumo colaborativo.6
Cada vez mais sites na internet propõem trocar ou alugar
bens “adormecidos” e caros: lava-roupas, roupas de marca, objetos high-tech,
equipamentos de acampamento, mas também meios de transporte (carro, bicicleta,
barco) ou espaços físicos (depósitos, vagas na garagem, quartos etc.). Esse
fenômeno atinge até a poupança: melhor do que deixar o dinheiro dormindo na
conta, particulares realizam empréstimos evitando os bancos.7
Na área dos transportes, o carpooling consiste em dividir o
custo de um trajeto; uma espécie de carona organizada e contributiva, que
permite, por exemplo, viajar de Lyon a Paris por 30 euros, em vez de 60 euros
de trem, e ainda conhecer pessoas durante o trajeto. Diversos sites surgiram na
França nos anos 2000 para propor esse serviço. Depois aconteceu a evolução
típica dos start-ups da web: eles lutam para se impor como o padrão
incontornável gratuito e, uma vez que conseguiram obter essa posição, impõem aos
utilizadores uma cobrança por meio do site, “para maior segurança”, tirando uma
comissão de 12%. Enquanto o número um francês, o Covoiturage.fr, se tornou
BlablaCar a fim de se lançar na conquista do mercado europeu, e seu equivalente
alemão, Carpooling, chegou à França, caronistas irritados pela mudança
mercantil do site francês lançaram a plataforma associativa e gratuita
Covoiturage-libre.fr.
A partilha de automóveis também é um avanço cultural e
ecológico. Plataformas como Drivy permitem a locação de carros entre
particulares. No entanto, os agentes dominantes do mercado são na verdade as
locadoras flexibilizadas (locação por minuto e self-service) que possuem sua
própria frota de milhares de veículos. A redução anunciada do número de
veículos é, então, completamente relativa. Mesmo a frota dos Autolib, colocada
em ação pela prefeitura de Paris com o grupo Bolloré no mesmo modelo do Vélib
[Vélib é um sistema de empréstimo de bicicletas mediante um valor simbólico, da
prefeitura de Paris; Autolib segue seu modelo, emprestando pequenos carros
elétricos – N.T.], substitui o transporte coletivo mais do que permite a
diminuição dos carros.8
No que se refere à moradia, a internet também favoreceu o
aumento das trocas entre particulares. Diversos sites9 permitem contatar uma
multidão de anfitriões dispostos a recebê-lo gratuitamente em casa por algumas
noites, e isso em quase todos os países. Mas o fenômeno do momento é o bed
& breakfast informal e citadino e seu líder incontestável, o AirBnb. Essa
start-up propõe aos interessados passar a noite na casa de atenienses ou
marselheses que vão preparar um generoso café da manhã “opcional” por um preço
menor do que o de um hotel. Um quarto desocupado em casa ou seu apartamento
vazio quando você sai de férias podem assim se tornar uma fonte de renda. Em
uma palavra: “AirBnb: travel like human” – “Com AirBnb você viaja como um ser
humano”. Na imprensa econômica, no entanto, a start-up mostra outra face. Ela
se orgulhava de cobrar mais que 10% da soma paga pelos hóspedes e de ver seu
valor de negócios de US$ 180 milhões em 2012 crescer tão rapidamente quanto sua
capitalização na bolsa, de cerca de US$ 2 bilhões.
“A riqueza reside muito mais no uso do que na posse –
Aristóteles”, clamava a empresa de partilha de veículos City Car Club. Mas,
olhando mais de perto, o desapego com relação à posse diagnosticado por Rifkin
não parece implicar uma relação com o consumo: o sonho de outrora de possuir
uma Ferrari hoje é simplesmente o de dirigir uma. E, se as vendas diminuem, as
locações aumentam. Essa “era do acesso” é na verdade uma mudança na forma de
consumo ligada a uma mudança logística: a colocação em circulação de bens e
competências de cada um por meio de interfaces desenvolvidas da web. Longe de
se assustar, as empresas veem nessa fluidificação todo um potencial de novas
transações, das quais elas serão os intermediários remunerados.
Por um lado, isso permite ampliar a base de consumidores: os
que não tinham meios para comprar um objeto caro podem alugá-lo de seus pares.
Por outro lado, a mercantilização se estende para a esfera doméstica e para os
serviços entre particulares: um quarto de hóspedes ou o assento do passageiro
de um carro podem ser oferecidos para locação, assim como uma ajuda no
encanamento ou em inglês. Pode-se, inclusive, antecipar a mesma repercussão que
na área energética, na qual as reduções de despesas consequentes do progresso
técnico levaram ao aumento do consumo:10 o lucro que uma pessoa consegue pela
locação de seu videoprojetor vai incitá-la a consumir ainda mais.
No entanto, existem muitas novas práticas que vão na
contracorrente do consumismo. Elas são muito diferentes: os
couchsurfers(literalmente “surfistas de sofá”) recebem gratuitamente
desconhecidos para dormir em casa ou se beneficiam de sua hospitalidade. Os
utilizadores do Recupe.net ou do Freecycle.org doam objetos que não utilizam
mais, em vez de jogar fora. Nos sistemas de troca locais (SEL), os membros
oferecem suas competências sobre uma base igualitária: uma hora de jardinagem vale
uma hora de serviços de encanador ou de web design. Nas Associações pela
Manutenção de uma Agricultura Camponesa (Amap), cada um se compromete a fazer
suas compras durante um ano do mesmo agricultor local, com quem pode
desenvolver relações, e participa gratuitamente das distribuições semanais de
legumes. Esse compromisso relativamente obrigatório traduz uma iniciativa que
ultrapassa a simples consomm’action(jogo de palavras com a palavra “consumo” em
francês – N.T.), consistindo em “votar com a carteira”.
Qual é o ponto em comum entre esses projetos associativos e
as start-upsde distribuição C2C – consumer to consumer, “de consumidor a
consumidor”? Comparemos os couchsurferse os hospedeiros do AirBnb: para os
primeiros, o essencial reside na relação com a pessoa encontrada, e o conforto
é secundário, enquanto para os segundos é o contrário. Os critérios de suas
avaliações respectivas são, então, sensivelmente diferentes: o que prima no
AirBnb, para além do preço, é a limpeza do local e a proximidade com o centro
turístico, enquanto no Couchsurfing.org, para além da gratuidade, são os
momentos partilhados com o hospedeiro. Da mesma forma, plataformas como a
Taskrabbit.com propõem também a troca de serviços entre particulares pagantes,
enquanto os SEL repousam na troca gratuita.
Se, em seus artigos destinados ao grande público, os
promotores do consumo colaborativo citam frequentemente as iniciativas
associativas para se vangloriar do aspecto “social” e “ecológico” dessa
“revolução”, estas desaparecem para dar lugar às start-upsquando se expressam
na imprensa econômica. Não apenas porque as trocas com fins não lucrativos são
mais dificilmente monetarizáveis, mas também porque não são “massificáveis”. Na
verdade, só podemos reunir as duas iniciativas sob a etiqueta de “economia da
partilha” se focalizarmos a forma dessas relações, desprezando as lógicas muito
diferentes que as alimentam. Esse amálgama, que culmina no truque de mágica que
consiste em traduzir to share(compartilhar) por “alugar”, é amplamente encorajado
por aqueles que buscam lucrar com esse fenômeno. Por um subterfúgio que se
aproxima do greenwashing, projetos como os Amap vêm servir de caução a essas
indústrias. Aqueles que fazem eco diminuindo os valores sociais subjacentes a
esses projetos participam assim de uma espécie de collaborative-washing. As
pessoas que oferecem seu teto, sua mesa ou seu tempo a desconhecidos se
caracterizam geralmente por valores de partilha, igualdade e ecologia; o que os
aproxima mais das cooperativas de consumo e de produção do que das plataformas
de troca C2C.
Essa dualidade recorta muitas outras: a que separa o
“desenvolvimento sustentável” da ecologia política, ou ainda o movimento do
software open source – que promove a colaboração de todos para melhorar os programas
de computador – e o do software livre – que promove as liberdades dos
utilizadores numa perspectiva política. Em cada uma dessas áreas, poderíamos
ouvir a famosa distinção operada por Richard Stallman, um dos pais do software
livre: “O primeiro é uma metodologia de desenvolvimento; o segundo é um
movimento social”.11
Martin Denoun e Geoffroy Valadon
Autores de Ju-jitsu politique, l'art du levier (Política do
jiu-jitsu, a arte da alavanca). Integrantes do coletivo La Rotative
(www.larotative.org).
Ilustração: Daniel Kondo
1 Cf. Rachel Botsman, What’s mine is yours: how
collaborative consumption is changing the way we live [O que é meu é seu: como
o consumo colaborativo está mudando o modo como vivemos], HarperCollins,
Londres, 2011; Lisa Gansky, The Mesh: why the future of business is sharing [O
Mesh: por que o futuro dos negócios é compartilhar], Portfolio/Penguin, Nova
York, 2010; www.shareable.net. Na França: www.ouishare.net;
www.consocollaborative.com; Observatoire société et consommation, www.lobsoco.com.
2 Jeremy Rifkin, L’âge de l’accès. La nouvelle culture
du capitalisme [A era do acesso. A nova cultura do capitalismo], La Découverte,
Paris, 2005 (1. ed.: 2000).
3 Citado em Anne-Sophie Novel e Stéphane Riot, Vive la
corévolution! Pour une société collaborative [Viva a correvolução! Por uma
sociedade colaborativa], Éditions Alternatives, Paris, 2012.
4 Montagem fraudulenta inaugurada em 1920 por Charles
Ponzi, que consistia em remunerar investidores graças à entrada constante de
novos contribuintes. Ler Ibrahim Warde, “Ponzi, ou le secret des pyramides”
[Ponzi ou o segredo das pirâmides], Le Monde Diplomatique, ago. 2009.
5 “Rachel Botsman: à propos de la consommation
collaborative” [Rachel Botsman: a respeito do consumo colaborativo], maio 2010.
Disponível em: .
6 Ler Mona Chollet, “Yoga du rire et colliers de
nouilles” [Ioga do riso e colar de macarrão], Le Monde Diplomatique, ago. 2009.
7 Zopa, Prosper e Lending Club são as principais
plataformas nos Estados Unidos. Na França, além do Prêt d’union, o Frendsclear
selou uma parceria com o banco Crédit Agricole.
8 “‘On a raté l’objectif. Autolib ne supprime pas de
voitures’, l’interconnexion n’est plus assurée” [“Erramos o alvo. O Autolib não
diminui os carros”, a interconexão não é mais garantida], 26 mar. 2013.
Disponível em: .
9 Couchsurfing.org, Hospitalityclub.org e
BeWelcome.org, principalmente. Este último reuniu os insatisfeitos com os dois
primeiros.
10 Ler Cédric Gossart, “Quand les technologies vertes
poussent à la consommation” [Quando as tecnologias verdes induzem o consumo],
Le Monde Diplomatique, jul. 2010.
11 Richard Stallman, “Pourquoi l’‘open source’ passe à
côté du problème que soulève le logiciel libre” [Por que o “open source” passa
na tangente do problema que o software livre levanta]. Disponível em: .
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12