É legítimo esperar que o Estado intervenha para evitar a
propagação de mensagens e a convocação de novas Marchas que procurem deduzir o
mesmo "pleito"?
Fábio de Sá e Silva – Carta Maior
No último fim de semana, o Brasil acompanhou atento os
resultados práticos da convocação, pelas redes sociais, da “Marcha da Família
com Deus pela Liberdade”. A iniciativa buscava reeditar evento semelhante que
precedeu e, em grande medida, prefigurou o golpe militar ocorrido no país em
1964. Assim como seus antecessores de décadas atrás, os participantes da atual
Marcha pediam a intervenção das forças armadas contra os governos comunistas
(sic) instaurados no Brasil.
Ao contrário da experiência anterior, a adesão à nova Marcha
foi baixíssima, exibiu momentos e personagens que muitos classificaram como
cômicos, e – talvez o mais importante –, ensejou a organização de Marchas
contrárias (antifascistas), em geral mais bem sucedidas em sua capacidade de
mobilização.
Para muitos, esses acontecimentos deram sinal inequívoco de
amadurecimento da democracia e da inviabilidade política de um novo golpe,
neste momento em que podemos contar com mais tempo de vida da Constituição de
1988 do que da ditadura que a antecedeu. Mas não deixa de ser importante
derivar deles novas reflexões, as quais nos ajudem, inclusive, a compreender
melhor o alcance e o sentido daquilo que, sob o guarda-chuva do regime
democrático, temos sido capazes de construir.
Uma questão relevante a esse respeito, mas que passou
inobservada para a maioria dos analistas, diz respeito à própria liberdade de
que dispuseram os integrantes da Marcha para organizá-la. Afinal, longe de se
tratar de um evento surpresa ou clandestino, a nova Marcha está ancorada em
blogs e perfis públicos de redes sociais, nos quais – em meio a postagens
difamatórias contra petistas, mas também contra homossexuais, "mães
solteiras”, legalização de drogas e o Marco Civil da Internet – os dias para o
evento chegaram a ser contados. E tais meios de mobilização não apenas continuam
ativos – ainda que com seus pouco mais de dois mil seguidores –, como agora
convocam para novo ato no dia 31/03, véspera do aniversário do golpe de 1964.
A questão que sobrevém é: Deve essa liberdade ser garantida?
Ou, ao contrário, é legítimo esperar que o Estado intervenha para evitar a
propagação de mensagens e a convocação de novas Marchas que procurem deduzir o
mesmo "pleito"?
Não se trata, apenas, de discussão filosófica. Afinal, por
bem menos – o caso notório da "Marcha da Maconha" –, instituições
encarregadas de dar força normativa à Constituição, como o Ministério Público e
os Tribunais de Justiça dos Estados, já haviam considerado plausível a
limitação dos direitos fundamentais à expressão e à reunião, conforme previsão
da Carta Política (art. 5o, IV e XVI). Naquelas ocasiões, argumentou-se que a
"Marcha da Maconha" envolveria desde a apologia a crimes até a
formação de quadrilha.
Em 2011, o STF liberou a realização dessa iniciativa, ante o
entendimento expresso de que o fazia por ela não envolver a apologia a crimes,
ao contrário do que diziam juízes e promotores de instâncias inferiores.
"Do que se pode perceber, não há qualquer espécie de enaltecimento, defesa
ou justificativa do porte para consumo ou tráfico de drogas ilícitas, que são
tipificados na vigente lei de drogas. Ao contrário, resta iminente a tentativa
de pautar importante e necessário debate das políticas públicas e dos efeitos
do proibicionismo," disse o Ministro Celso de Mello, no voto condutor do
julgamento pelo pleno do Tribunal.
O que dizer, porém, de uma Marcha na qual explicitamente se
reivindica a subversão do regime democrático? Pode a Constituição resguardar um
direito que coloque sob ameaça o que talvez seja o seu principal fundamento?
Um exemplo instrutivo pode ser encontrado na chamada
controvérsia Skokie, verificada nos EUA dos anos 1970. Na ocasião, integrantes
de uma versão norte-americana do "Partido Nacional Socialista"
planejavam uma Marcha em defesa do nazismo na cidade de Skokie, em Illinois,
cidade esta habitada por um sem número de judeus, muitos deles sobreviventes do
holocausto.
Em uma primeira apreciação do caso, um juízo local concedeu
liminar proibindo o Partido de realizar uma série de ações, tais como
"paradas com uniformes", "exibição da suástica", ou
"distribuição de panfletos com ofensas contra judeus ou outras ofensas
baseadas em raça, fé, ou religião". O caso chegou à Suprema Corte
Estadual, onde, por maioria apertada, reconheceu-se que as proibições do juízo
local contrariavam a liberdade de expressão.
O Município de Skokie não se resignou e editou várias leis
que buscavam visivelmente restringir a manifestação do Partido: exigência de
seguro contra danos ao patrimônio por parte dos organizadores de manifestações,
proibição geral de disseminação de material ofensivo a grupos e proibição de
uso de roupas de estilo militar em manifestações. Tais leis foram mais uma vez
questionadas em juízo pelos nazistas, curiosamente representados por um
advogado judeu. Na decisão da justiça local, preservada pelas instâncias
superiores, as leis foram invalidadas, ficando registrada a observação de que
“é melhor permitir aqueles que pregam o ódio racial a que destilem seu veneno
em retórica do que incorrer no pânico e embarcar no perigoso caminho de
permitir que o governo decida o que os cidadãos podem e não pode dizer e ouvir”
(Colin v. Smith, 1978).
A experiência histórica dá razão aos resultados da
controvérsia Skokie. A plena liberdade de expressão sempre se mostrou basilar
para as mais sólidas dessas experiências; e que o exercício dessa liberdade
venha a tencionar com aquilo que está instituído, isso também é característico
das sólidas democracias. Mas se a liberdade de expressão deve ser assegurada
aos cidadãos mesmo quando estes decidem utilizá-la contra os seus próprios
fundamentos, os poderes instituídos a partir da mesma Constituição que a
garante têm bem menos espaço para tergiversação. Tão ou mais “perigoso” que uma
Marcha que preconiza a volta da ditadura é o silêncio de quem, a esta altura,
já deveria ter assimilado – e afirmado publicamente – a convicção acerca da
vigência e da solidez das instituições próprias do regime democrático.
Quando alguns – não obstante poucos e caricatos – saem às
ruas para pedir a volta dos militares ao poder, é hora de os próprios militares
enunciarem o compromisso com a subordinação ao governo civil e eleito e, aos
que ocupam esta posição, de marcarem o 1o de abril com ações que garantam o
direito à memória e à verdade, já que não se pode esperar muito pela justiça.
Assim como quando outros, na pequena e distante cidade de Skokie, saíam as ruas
em defesa do nazismo, a elegante interpretação do juízo local não deixava
dúvida sobre quais eram os limites aos quais o exercício dessa liberdade estava
submetido: o de apenas e tão somente poder "destilar o veneno em
retórica".
________
Fábio de Sá e Silva é PhD em Direito, Política e Sociedade
pela Northeastern University e professor substituto de Teoria Geral do Direito
da Universidade de Brasília (UnB). O artigo reflete opiniões estritamente
pessoais.
Créditos da foto: Roberto Brilhante
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