Há uma revolução em marcha nos bastidores da
sociedade venezuelana. Uma revolução pelo livro, ancorada em uma rede de
editoras e livrarias públicas.
por: Saul Leblon – Carta Maior
Que uma feira de livros inaugurada em Caracas, na semana
passada, tenha atraído tanto ou mais público que um protesto contra Cuba
marcado para o mesmo dia, pode soar estranho ao discernimento de quem se
informa apenas pela mídia conservadora.
Mas foi exatamente o que sucedeu na última sexta-feira, como
relata o economista Pedro Silva Barros, que passa a colaborar com Carta Maior
diretamente da capital venezuelana.
Seu oportuno texto de estreia (leia nesta pág.) informa não
apenas que –pasmem - existem venezuelanos mais interessados em literatura do
que em rejeitar a parceria cubana nas áreas da saúde, educação etc.
O inusitado, quando se toma a emissão conservadora como
norma, é mais amplo e profundo.
Pedro Silva Barros relata a existência de uma verdadeira
revolução silenciosa nos bastidores da suposta conflagração irreversível da
sociedade venezuelana, sugerida pelos despachos que o ‘jornalismo isento’ envia
ao Brasil.
Erradicado o analfabetismo em 2005, feito atestado pela
Unesco e graças à estreita cooperação
entre Havana e Caracas, o governo venezuelano cuida de baratear o acesso
à literatura, expandindo uma rede de
livrarias públicas e semeando editoras
pelo país.
Uma delas, informa Pedro Barros, a Editorial El Perro y la
Rana, já reúne um catálogo de mais de 4.300 títulos.
A malha de livrarias públicas - Librerías del Sur, inclui
lojas em todos os estados. A venda de livros subsidiados em locais de grande
circulação pública, como estações do metrô, tornou-se trivial.
Não há notícia de ‘dirigismo autoritário’ na política
editorial. A menos que se inclua nessa pauta conservador a distribuição
gratuita de um milhão de exemplares de Don Quixote de La Mancha, obra-prima da
literatura mundial, cujo quarto centenário foi festejado assim pelo então
Presidente Chávez.
Essa revolução se entrelaça a outra, a do acesso à educação
superior na Venezuela: o país tem cerca de 28 milhões de habitantes e dois
milhões de universitários (o Brasil tem sete milhões para uma população de 190
milhões).
Nada disso diminui nem desmente a existência de uma polarização
política nesse momento, extremada pela radicalização de uma parte da oposição
venezuelana, e que já fez 29 vítimas fatais dos dois lados.
O que esses relatos ajudam a entender é por que um governo
que teria contra si uma sociedade integralmente dilacerada, como ensina o
martelete conservador, não caiu até agora .
A dificuldade de se obter maior transparência no noticiário
relacionado aos conflitos e disputas vividos naquele país –razão do novo nome
incorporado à equipe de colaboradores de Carta Maior-- fala diretamente ao momento brasileiro.
Não se trata de equiparar a radicalidade , nem os desafios
contidos na agenda venezuelana.
Trata-se de chamar a
atenção para o decisivo papel da informação plural quando
do que mais se necessita é dotar a agenda do desenvolvimento de um
razoável grau de coerência, que permita concentrar energias em processos e prioridades de interesse da maioria da
população.
Essa é uma das mais delicadas operações da democracia:
assegurar que o embate político gere a força, a legitimidade e o consentimento
necessários à aglutinação das grandes maiorias requeridas às transições de
ciclo histórico.
O oposto disso é o golpe. A crispação neoudenista. O
comportamento vergonhoso de uma mídia que, à falta de cardápios defensáveis dedica-se
a denunciar supostos privilégios no do ex-ministro José Dirceu.
Escandaliza-a a hipótese de que o ex-ministro possa,
digamos, ter devorado um Big Mac na Papuda, mas não a sua retenção ilegal em
regime fechado, depois do direito assegurado ao semiaberto.
Qual o passo seguinte dessa espiral da exasperação?
Aquilo que o conservadorismo brasileiro não hesitou em acionar
há 50 anos.
Quando se viu na iminência de ceder espaço à hegemonia em
formação em torno das reformas de base
propostas por Jango, (como ficou documentado em pesquisas do Ibope, só
recentemente divulgadas), golpeou a democracia a propósito de defendê-la.
É impossível exagerar a importância da mídia no processo de
desenvolvimento de uma sociedade.
De qualquer sociedade. Mas sobretudo daquelas que, a exemplo da Venezuela, Brasil,
Argentina, entre outras, vivem nesse
momento a inflamável confluência de uma dupla travessia.
Ela inclui reformar o motor de desenvolvimento em meio à
habitual escassez de recursos, agravada
pela reordenação da economia
mundial .
O conjunto estreita adicionalmente a margem de manobra do
Estado para gerir as dilacerantes contradições
do capitalismo na América Latina.
A alternativa ao golpismo é a repactuação política da agenda
do desenvolvimento.
Seu requisito básico é facultar à sociedade o acesso a dados
e análises que lhe permitam assumir o comando do seu destino.
Se nem o florescimento editorial na Venezuela é informado
por aqui, o que esperar das questões mais agudas - e as graúdas - que envolvem
as escolhas do desenvolvimento brasileiro?
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