Deveria ser normal em qualquer país democrático. Porém, no
Brasil uma legislação que não privilegie os desejos das empresas de comunicação
é uma novidade.
Sivaldo Pereira da Silva - Carta Maior
No final do mês passado, o Brasil ganhou uma nova lei que
trata dos direitos online do cidadão, privacidade digital e os limites das
empresas no tratamento de dados dos usuários. O Marco Civil da Internet, agora
denominado de Lei nº 12.965, é uma legislação inovadora que não seguiu uma
trajetória comum e, portanto, merece especial atenção. Trata-se de uma inovação
em pelo menos três sentidos: quanto ao processo de sua elaboração, quanto ao
teor de suas determinações e quanto ao seu significado no cenário
internacional.
Olhemos um pouco para trás: no final da última década
agravou-se no Brasil um ambiente de insegurança jurídica diante da importância
social, econômica e cultural que a Internet adquiriu. Abusos online; invasão de
privacidade; retiradas unilaterais de conteúdo por provedores; pressões para
estratificar usuários por parte das empresas de telecomunicações. Este conjunto
de questões já não podia ser respondido pela legislação analógica vigente.
Para piorar este quadro, o surgimento de Projetos de lei
sobre cibercrimes, como o PL 84/99, ameaçava cobrir esse vazio legal, porém
violando ainda mais os direitos, sob a alegação de dar instrumentos ao aparelho
policial para deflagrar ações investigativas. Emergia a necessidade de se criar
um código que estabelecesse os princípios sob os quais a internet deveria ser
regulada, especificamente no que diz respeito à proteção dos direitos civis.
Assim, em outubro de 2009, a Secretaria de Assuntos
Legislativos do Ministério da Justiça, em parceria com a Fundação Getúlio
Vargas, lançou o projeto para a elaboração do Marco Civil da Internet através
de um processo colaborativo, baseado em ferramentas online de participação. A
ideia não era fabricar uma minuta de lei em um gabinete e jogá-la no
parlamento: o objetivo era construir um texto a partir de diversas
intervenções, somando ideias, incorporando perspectivas e ouvindo as diversas
partes interessadas no debate.
Entre novembro de 2009 e junho de 2010, a plataforma online
do projeto recebeu cerca de 18.500 visitas, totalizando mais de 2.000
contribuições. A partir disso, se elaborou o texto que foi encaminhado para a
Câmara dos Deputados na forma de um projeto de lei. A boa participação e a qualidade das
propostas demonstraram que a internet, quando bem utilizada, é uma ferramenta
plenamente capaz de fortalecer a democracia servindo como um vibrante canal
para a participação política, legitimando proposições e, importante frisar,
qualificando-as.
Como outras experiências de engajamento político digital que
vem ocorrendo no mundo, o Marco Civil é inovador e exemplar: seu processo, se
incorporado no design das instituições brasileiras, pode torná-las mais
abertas, participativas e aproximá-las do cidadão conectado.
Decorrente dessa dinâmica, o projeto de Lei, em seu
conteúdo, passou a refletir um sólido e atual sistema de princípios, cujo
espírito estava centrado na perspectiva de defesa do interesse público. Isso
deveria ser normal em qualquer país democrático. Porém, no Brasil uma
legislação que não privilegie os desejos das empresas de comunicação é uma
novidade, um ponto fora da curva. Uma lei no campo da comunicação cuja essência
é a defesa do interesse do cidadão significa uma ousada e importante inovação
na história deste segmento. Não por acaso, foi uma dura batalha na Câmara dos
Deputados. Ao chegar na Casa legislativa, o projeto ficou parado durante quase
3 anos devido ao forte lobby das empresas de telecomunicações.
Essa barricada ocorreu principalmente porque as teles não
aceitavam a consolidação do princípio da neutralidade de rede, que as impedia
de tratar o usuário de forma estratificada, vendendo acessos diferenciados a
depender do conteúdo. Por exemplo, isso abria caminho para a operadora cobrar a
mais no acesso de um vídeo, um blog, para transmitir som ou usar mídias
sociais. Significaria, sobretudo, o fim da internet como a conhecemos e a
liberdade de expressão online seria uma questão financeira: quem pagar mais
poderia se expressar livremente, baixando, postando todo tipo de conteúdo e
utilizando todos os canais disponíveis. E quem não tivesse dinheiro seria um
sub-usuário, com uma meia-cidadania online. Felizmente, boa parte dos
princípios do projeto original do Marco Civil foi mantida e a neutralidade foi
assegurada, embora ainda precise ser regulamentada via decreto.
Este é um embate mundial que está ocorrendo em todos os
continentes. Isso porque estamos num momento histórico no qual a maioria dos
países ainda está criando suas leis que tratam especificamente dos direitos do
cidadão na rede. A pressão das empresas para que estas novas legislações
incorporem seus interesses de interferir, coletar, processar e vender acesso e
dados do usuário com base na perspectiva de mercado (e não na perspectiva dos
direitos humanos) configura hoje como uma verdadeira guerra que pode mudar a
forma como a internet nasceu e cresceu.
Sendo o Brasil um dos maiores mercados do mundo e um
importante ator político emergente no cenário internacional, a aprovação do
Marco Civil era bastante esperada por analistas estrangeiros. Isso significou o
desfecho de um "round" desta batalha, apontando para uma tendência
que pode agora a inspirar outros países e ser seguida como um exemplo. A não
aprovação do projeto brasileiro teria consequências ruins: inibiria tentativas
mais ousadas e daria às corporações mais poder para influenciar outras nações.
Naturalmente, o Marco Civil, como toda lei, não é perfeita e
possui seus pontos frágeis. O principal deles trata-se do artigo 15 que obriga
a guarda de registros de aplicação (por um período de 6 meses) de todas as
empresas que atuem na internet para fins de investigação criminal. Para muitos
analistas, incluindo um conjunto de organizações civis que assinaram um
manifesto pedindo o veto deste artigo, isso fere o princípio jurídico da
"Presunção de Inocência e Proporcionalidade". Em outras palavras,
isso pressupõe que todos os cidadãos são alvos potenciais de investigações.
Mesmo que o usuário não seja suspeito de qualquer crime ou
que ainda não tenha cometido qualquer ato ilícito. Isso também pode aumentar os
custos dos serviços, estimulando as empresas a comercializarem esses dados
ilegalmente para cobrir seus gastos. Apesar disso, a permanência do artigo não
ofusca a importância de toda a Lei que, num balanço geral, sem dúvida é um
avanço nas políticas de comunicação no Brasil, tanto no processo de sua
construção, quanto em seu conteúdo e seu significado para a comunidade
internacional.
Por fim, vale lembrar que o Marco Civil só entra em vigor 60
dias após a sua sanção, ou seja, só passa a valer a partir da última semana de
junho. É importante ressaltar que toda lei só faz diferença se for devidamente
aplicada e respeitada e o Estado brasileiro ainda não desenvolveu os
instrumentos técnicos e procedimentos burocráticos capazes de realizar uma
efetiva fiscalização das empresas para garantir o cumprimento dessas normas.
Esse é o grande desafio agora.
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Sivaldo Pereira da Silva é jornalista, doutor em
Comunicação, professor da Universidade Federal de Alagoas e do Programa de
Pós-graduação da Universidade de Brasília. É integrante do Intervozes –
Coletivo Brasil de Comunicação Social.
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