domingo, 1 de março de 2015

Estratégia e preços de mercado

Galícia AvantarComo afirmar a neutralidade do mercado quando o preço de bens estratégicos obedece diretamente à lógica do poder, ou mesmo da guerra?

José Luis Fiori - http://cartamaior.com.br/

 “A economia, como é ensinada e entendida, está sempre um passo atrás da realidade, exceto nas faculdades de administração de empresas”.     

John K. Galbraith, A economia das fraudes inocentes, Companhia das Letras, São Paulo, 2004, p: 29 
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Através da história, os impérios clássicos e todos os grandes estados nacionais lutaram para conquistar e monopolizar “posições estratégicas”, que garantissem suas fronteiras e sustentassem sua expansão internacional. Isto aconteceu com Roma, Pérsia ou China, mas também com Portugal, Espanha ou Holanda.

E foi com este mesmo objetivo que a Inglaterra construiu uma rede de ilhas, cabos e portos ao redor do mundo, onde apoiou a expansão secular do seu poder naval, e do seu império, entre os séculos XVIII e XX. Da mesma forma que os EUA planejaram e construíram no século XX, a “teia estratégica” em que instalaram as mais de 700 bases militares em que se sustenta hoje o seu poder global. Luta, conquista e preservação destes territórios sempre obedeceram a uma lógica e um cálculo militar, mas nunca teve nem cumpriu objetivos exclusivamente militares. Pelo contrário, muitas vezes foi a conquista e construção desta infraestrutura logística que abriu e assegurou o caminho de expansão e da internacionalização econômica destes países. Garantindo, ao mesmo tempo, o acesso e o controle monopólico de alguns recursos estratégicos, por parte dos seus grandes grupos econômicos privados e nacionais.

Nesta trajetória comum e expansiva do poder e do capital, o controle da moeda e da energia sempre foi absolutamente decisivo e indispensável para o funcionamento da “máquina da guerra” destes estados, e, simultaneamente, da “máquina econômica” dos seus capitalismos nacionais.

É por isto que se pode dizer que a “moeda” e a “energia” são recursos que têm “valor estratégico”: porque são cruciais para a defesa e a expansão dos estados e das economias nacionais, mas também porque funcionam como um instrumento de poder das potencias vitoriosas que utilizam o seu controle da moeda, do crédito e da energia, para impor a sua vontade política, dentro do sistema mundial.

O valor destes “bens estratégicos”, portanto, transcende seu preço de mercado, e está sempre “sobredeterminado” pela sua importância para a luta das nações e das grandes corporações internacionais, pelo controle e monopólio destes mesmos bens e recursos. Isto acontece com a moeda e com o petróleo, mas acontece também com todo e qualquer outro produto ou serviço, que tenha ou adquira em algum momento esta mesma importância para as grandes potências e para as grandes corporações internacionais.

Não é difícil de entender este argumento, basta olhar para o que está acontecendo - no mundo da guerra e dos “mercados estratégicos” - neste momento em que as decisões político-estratégicas dos EUA e de alguns de seus principais aliados – entre estados e grandes corporações – estão provocando variações no valor do Dólar, e no preço do petróleo que devem atingir países e mercados ao redor de todo o mundo. A explicação detalhada destas mudanças não é simples nem linear, mas neste caso, não há duvida que o controle político - direto ou indireto - da moeda, do crédito e do preço do petróleo, está sendo utilizado pelos EUA para impor sua vontade nos vários tabuleiros geopolíticos do mundo, onde há países que resistem ao seu poder imperial. 

Mas é preciso ter claro que este fenômeno não é novo nem é original. Para manter-nos no século XX: foi a mesma que aconteceu depois da II Guerra Mundial, com a criação e o abandono do sistema de Bretton Woods, com a sua regulação dos mercados financeiros, por parte dos EUA, e com a simultânea criação e destruição da matriz energética barata em que se sustentou a reconstrução da economia mundial, entre 1945 e 1973.

E o mesmo voltou a acontecer com a subida da taxa de juros norte-americana, em 1978 e 79, e com o choque do preço do petróleo do início da década de 80, para ficarmos apenas em alguns exemplos. Mas é lógico que não se trata de uma prática exclusiva dos EUA, ou dos países anglo-saxões e que deverá ocorrer o mesmo com todo e qualquer estado expansivo que participe da luta pelo poder e pela riqueza internacionais, e que passe a controlar posições e recursos estratégicos utilizando-os para bloquear o acesso dos seus concorrentes às mesmas posições e recursos. E o mesmo acontece com as grandes corporações multinacionais, que se apoiam no poder dos seus estados para expandir-se e para conquistar vantagens monopólicas, e que calculam sua expansão e seus investimentos com base na mesma lógica de conquista e dominação exclusiva de territórios e de mercados, muito mais do que de busca do lucro imediato.

Neste sentido se pode dizer – radicalizando o argumento - que para as grandes potências e para as grandes corporações multinacionais, privadas ou publicas, a conquista de posições e de recursos estratégicos não tem um preço de mercado, porque seu valor está permanentemente “sobredeterminados” pela sua importância e pela sua “utilidade” na luta entre estas organizações, pelo poder e pela riqueza internacionais.

Agora, se o sistema interestatal capitalista funciona desta maneira, como se mantém ainda viva a utopia e a ladainha liberal da “reforma” e “despolitização” dos mercados, quando pelo menos dois dos seus principais “insumos” (a moeda e a energia) possuem preços ou valores que obedecem à lógica do poder, ou mesmo da guerra, e não apenas à logica do mercado, ensinada pelos manuais de economia?

Um problema que fica ainda complexo quando se sabe que a “lista” dos bens estratégicos não se restringe à moeda e à energia, e pode variar através do tempo e do espaço, em função dos objetivos estratégicos dos estados e das grandes corporações envolvidas na luta permanente pelas posições e recursos estratégicos de todo o mundo.

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José Luis Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Créditos da foto: Galícia Avantar

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