Como afirmar a neutralidade do mercado quando o preço de
bens estratégicos obedece diretamente à lógica do poder, ou mesmo da guerra?
José Luis Fiori - http://cartamaior.com.br/
“A economia, como é ensinada e entendida, está
sempre um passo atrás da realidade, exceto nas faculdades de administração de
empresas”.
John K. Galbraith, A economia das
fraudes inocentes, Companhia das Letras, São Paulo, 2004, p: 29
_____________
Através da história, os impérios clássicos e todos os
grandes estados nacionais lutaram para conquistar e monopolizar “posições
estratégicas”, que garantissem suas fronteiras e sustentassem sua expansão
internacional. Isto aconteceu com Roma, Pérsia ou China, mas também com
Portugal, Espanha ou Holanda.
E foi com este mesmo objetivo que a Inglaterra construiu uma
rede de ilhas, cabos e portos ao redor do mundo, onde apoiou a expansão secular
do seu poder naval, e do seu império, entre os séculos XVIII e XX. Da mesma
forma que os EUA planejaram e construíram no século XX, a “teia estratégica” em
que instalaram as mais de 700 bases militares em que se sustenta hoje o seu
poder global. Luta, conquista e preservação destes territórios sempre
obedeceram a uma lógica e um cálculo militar, mas nunca teve nem cumpriu
objetivos exclusivamente militares. Pelo contrário, muitas vezes foi a
conquista e construção desta infraestrutura logística que abriu e assegurou o
caminho de expansão e da internacionalização econômica destes países.
Garantindo, ao mesmo tempo, o acesso e o controle monopólico de alguns recursos
estratégicos, por parte dos seus grandes grupos econômicos privados e
nacionais.
Nesta trajetória comum e expansiva do poder e do capital, o
controle da moeda e da energia sempre foi absolutamente decisivo e
indispensável para o funcionamento da “máquina da guerra” destes estados, e,
simultaneamente, da “máquina econômica” dos seus capitalismos nacionais.
É por isto que se pode dizer que a “moeda” e a “energia” são
recursos que têm “valor estratégico”: porque são cruciais para a defesa e a
expansão dos estados e das economias nacionais, mas também porque funcionam
como um instrumento de poder das potencias vitoriosas que utilizam o seu
controle da moeda, do crédito e da energia, para impor a sua vontade política,
dentro do sistema mundial.
O valor destes “bens estratégicos”, portanto, transcende seu
preço de mercado, e está sempre “sobredeterminado” pela sua importância para a
luta das nações e das grandes corporações internacionais, pelo controle e
monopólio destes mesmos bens e recursos. Isto acontece com a moeda e com o
petróleo, mas acontece também com todo e qualquer outro produto ou serviço, que
tenha ou adquira em algum momento esta mesma importância para as grandes
potências e para as grandes corporações internacionais.
Não é difícil de entender este argumento, basta olhar para o
que está acontecendo - no mundo da guerra e dos “mercados estratégicos” - neste
momento em que as decisões político-estratégicas dos EUA e de alguns de seus
principais aliados – entre estados e grandes corporações – estão provocando
variações no valor do Dólar, e no preço do petróleo que devem atingir países e
mercados ao redor de todo o mundo. A explicação detalhada destas mudanças não é
simples nem linear, mas neste caso, não há duvida que o controle político -
direto ou indireto - da moeda, do crédito e do preço do petróleo, está sendo
utilizado pelos EUA para impor sua vontade nos vários tabuleiros geopolíticos
do mundo, onde há países que resistem ao seu poder imperial.
Mas é preciso ter claro que este fenômeno não é novo nem é
original. Para manter-nos no século XX: foi a mesma que aconteceu depois da II
Guerra Mundial, com a criação e o abandono do sistema de Bretton Woods, com a
sua regulação dos mercados financeiros, por parte dos EUA, e com a simultânea
criação e destruição da matriz energética barata em que se sustentou a
reconstrução da economia mundial, entre 1945 e 1973.
E o mesmo voltou a acontecer com a subida da taxa de juros
norte-americana, em 1978 e 79, e com o choque do preço do petróleo do início da
década de 80, para ficarmos apenas em alguns exemplos. Mas é lógico que não se
trata de uma prática exclusiva dos EUA, ou dos países anglo-saxões e que deverá
ocorrer o mesmo com todo e qualquer estado expansivo que participe da luta pelo
poder e pela riqueza internacionais, e que passe a controlar posições e
recursos estratégicos utilizando-os para bloquear o acesso dos seus
concorrentes às mesmas posições e recursos. E o mesmo acontece com as grandes
corporações multinacionais, que se apoiam no poder dos seus estados para
expandir-se e para conquistar vantagens monopólicas, e que calculam sua
expansão e seus investimentos com base na mesma lógica de conquista e dominação
exclusiva de territórios e de mercados, muito mais do que de busca do lucro
imediato.
Neste sentido se pode dizer – radicalizando o argumento -
que para as grandes potências e para as grandes corporações multinacionais,
privadas ou publicas, a conquista de posições e de recursos estratégicos não
tem um preço de mercado, porque seu valor está permanentemente
“sobredeterminados” pela sua importância e pela sua “utilidade” na luta entre
estas organizações, pelo poder e pela riqueza internacionais.
Agora, se o sistema interestatal capitalista funciona desta
maneira, como se mantém ainda viva a utopia e a ladainha liberal da “reforma” e
“despolitização” dos mercados, quando pelo menos dois dos seus principais
“insumos” (a moeda e a energia) possuem preços ou valores que obedecem à lógica
do poder, ou mesmo da guerra, e não apenas à logica do mercado, ensinada pelos
manuais de economia?
Um problema que fica ainda complexo quando se sabe que a
“lista” dos bens estratégicos não se restringe à moeda e à energia, e pode
variar através do tempo e do espaço, em função dos objetivos estratégicos dos
estados e das grandes corporações envolvidas na luta permanente pelas posições
e recursos estratégicos de todo o mundo.
________
José Luis Fiori, cientista político, é professor da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Créditos da foto: Galícia Avantar
Nenhum comentário:
Postar um comentário