“Mais mercado ou o caos”, eis a
chantagem permanente que demonstra o grau de ofensividade da nova
reestruturação do capital em curso. Bancos privados, fundos de investimento
orientados pelos fluxos internacionais e consultorias coligadas seguem
defendendo a atrofia programa e não reversível do BNDES
por Luis Fernando Novoa Garzon //
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O ataque apriorístico a qualquer
crédito público direcionado é uma linha de demarcação ideológica neoliberal
calculadamente extremada. Como prêmio, obtém garantias de subsunção gradual do
financiamento público. Assim, os mercados de capitais podem recolocar-se
gradualmente nas “lacunas de mercado” até então preenchidas pelos bancos
públicos, valendo-se agora de um amplo leque de subsídios fornecidos por estes
próprios.
O horizonte finalístico do BNDES,
notadamente a partir de 2011, não tem sido outro: ampliação das operações
indiretas, estímulo à emissão de debêntures, capitalizações e garantias
intercaladas. A seletividade reversa autoimposta vai guarnecendo os vácuos de
intermediação de investimentos de longo prazo, que irão tornar o BNDES uma
“instituição-tampão” a repetir o que qualquer banco de investimento pode fazer.
A “normalização financeira”
(financial deepening) do país pressupõe o enraizamento dos requisitos do
sistema financeiro, assim como a constitucionalização da ambiência
jurídico-institucional pró-investimentos. A narrativa da “maturidade
financeira” do país inscreve-se de modo natural em um quadro evolutivo em que
uma proclamada superioridade técnica se imporia necessariamente. Tal enunciação
revela uma pretensão política de organização privada e paraestatal de uma nova
articulação entre poupança e financiamento.
É uma resposta previsível da
tecnocracia do sistema financeiro diante da capacidade “contracíclica”
demonstrada pelo banco de expandir determinadas cadeias produtivas e de induzir
processos de conglomeração. Lazzarini (2011), entre outros porta-vozes do
oligopólio financeiro, acoplou a esse cenário uma versão anacrônica de
capitalismo de Estado. O “capitalismo de laços” é uma reinterpretação do
“patrimonialismo” como um conjunto de relações arcaicas que bloqueia o
surgimento de uma sociedade de mercado meritocrática. Sob essa óptica estreita,
as privatizações dos anos 1990, para Lazzarini, “paradoxalmente ajudaram a
reforçar a influência do governo e de certos grupos domésticos”.
A demonização do Estado
brasileiro como principal conector das redes empresariais, na figura de um
“Leviatã como sócio minoritário” (Musacchio e Lazzarini, 2014), põe
convenientemente em pauta a necessidade perene de “reprivatizações” – incluída
a do BNDES. As incursões promovidas pelo banco entre 2008 e 2010, para esses
autores, não apenas distorceram os mecanismos normais de alocação econômica,
como também criaram um vetor para novas e indesejáveis distorções. Na via
inversa, é necessário afirmar que o Estado não cria unilateralmente um “canal
de influência no mercado”, mas materializa um campo de influências recíprocas
entre os grupos econômicos com maior poder de mercado.
Em busca das dobras do tempo
Imaginou-se o BNDES – assim como
no caso de estatais e agências públicas vinculadas congenitamente a um projeto
de “construção nacional” – como um banco de infusão da mudança estrutural da
economia brasileira, por isso capaz de penetrar em um tempo desconhecido ou não
totalmente concernido nas injunções do mercado. Ignácio Rangel (2005), durante
a aplicação do Plano de Metas (1956-1960), fez da “análise de projeto” pedra de
toque para a defesa da autonomização da ação do banco e para a projeção dessa
ação no tempo. A burocracia tecnificada procurava converter valor simbólico em
maiores margens de autonomia decisória. Rangel propugnava a necessidade de um
banco com mirada nacional, ou seja, com amplo conhecimento dos “custos e
benefícios sociais” envolvidos, conhecimento que dependia de uma ação
retificadora dos projetos. Assim, era preciso rigor na elaboração de critérios
de prioridade – “critérios que nos libertem do grosso empirismo imediatista do
empresário privado” (Rangel, 2005, p.258).
O traquejo do BNDES com a
intertemporalidade seria por isso uma competência adquirida por ele, e não
apenas uma derivação da estrutura estável de seu funding. Um banco com a
incumbência de suprir a ausência de uma burguesia nacional torna-se, sem
querer, uma alegoria em que a parte parece valer pelo todo. Ao longo desses
avanços autorizados (abrindo fronteiras econômicas) e recuos forçados (para
consolidar monopolizações e privatizações), planejar virou sinônimo de pensar a
inserção do agente em um “ambiente de negócios” determinado. Para isso, na
prática, já não há necessidade de antecedência do pensar coletivo; não há,
portanto, planejamento, e sim encaixe e desempenho.
O desempenho do
desenvolvimentismo real brasileiro não se fez notar nas atividades de maior
capacidade de “transferência de tecnologia” ou de “aprendizado institucional”.
A ordem de justificação do BNDES passou a ser: induzir transbordamentos nas
“empresas-líderes” dos ramos frigorífico, de papel e celulose, de petróleo e
gás e de mineração e siderurgia básica. Aprofundar as dinâmicas do padrão de
acumulação vigente é, ao mesmo tempo, uma não escolha e uma escolha – por
impulsionar mais um espasmo de crescimentismo que só faz multiplicar
assimetrias.
Que tipo de “projeto nacional”
pode surgir no interior dos conglomerados e no embate dos investimentos?
Conglomeração ativa e inovadora para assegurar inserção vantajosa no mercado
internacional, eis o minimalismo a que chegaram os intelectuais herdeiros do
desenvolvimentismo. Estes já não padecem de saudades do fordismo periférico ou
do subdesenvolvimento, isto é, das possibilidades “complementadoras” que
franqueavam, e sim de saudades mais etéreas, atadas ao paralelo coreano ou
taiwanês. Tal paralelo somente foi cabível circunstancialmente entre os anos
1980 e 1990, enquanto se impunha o “Consenso de Washington” na América Latina e
se permitiam “especializações competitivas” em zonas econômicas específicas do
cinturão asiático. A expressão “Prebisch renasce na Ásia”1 é representativa
desse esforço de apreciação do modelo asiático como alternativa, no qual se
“reinventava a substituição de importações voltada para as indústrias de alta
tecnologia” (Amsden, 2004, p.76).
A meta cepalina (da primeira
geração) de máxima diversificação econômica para proporcionar autonomia e
soberania nacionais logo foi substituída pela meta de ocupação de “nichos
tecnológicos” reestruturadores. Uma leitura minimamente realista da dinâmica
capitalista demonstra que os chamados “ciclos de inovação” são acionados no
bojo de processos de aquisição de mais-valia extraordinária, de concentração de
capital e de enquadramento do mundo do trabalho. No presente momento, no
Brasil, todas as agendas que convergem pelo alto tratam de endossar um ambiente
de crescente contratualismo privado, o mais apropriado para realizar o
“potencial inovador” da economia de commodities.
Miniaturizou-se ou sintetizou-se
no BNDES a fórmula dos governos Lula e Dilma, pela qual se paga o preço da
sobrevivência assumindo in totum o programa daqueles segmentos que se
assenhoraram do que possa ser considerado factível. Nos dois últimos anos do
governo FHC (2001-2002), o BNDES estava para ser extinto, como forma de
sabotagem programada. A questão é – ao fim e ao cabo de sua sobrevivência
institucional, vivendo o avesso do que se lhe proclamara e afiançara – se valeu
a pena. Avançamos, afinal, em qual direção?
Luis Fernando Novoa Garzon
Luis Fernando Novoa Garzon é
sociólogo e doutor em Planejamento Urbano e Regional. Contato:
l.novoa@uol.com.br.
Ilustração: Rafael Matsunaga/cc
1 Feita por conta do centenário de nascimento
de Raul Prebisch, primeiro presidente da Comissão Econômica para a América
Latina e o Caribe (Cepal) e precursor, junto com Celso Furtado, do pensamento
econômico histórico-estrutural na América Latina.
Referências bibliográficas
AMSDEN, Alice H. La sustitución
de importaciones en las industrias de alta tecnología: Prebisch renace en Asia.
Revista de la CEPAL, n. 82, p. 75-89, abr. 2004.
LAZZARINI, Sérgio G. Capitalismo
de laços: os donos do Brasil e suas conexões. Rio de Janeiro: Elsevier/Campus, 2011.
MUSACCHIO, Aldo; LAZZARINI, Sérgio G.
State-owned enterprises in Brazil: history and lessons. Workshop on State-Owned
Enterprises in the Development Process – OECD Conference, Paris, abr. 2014.
RANGEL, Ignácio. Obras reunidas.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
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