Há uma coisa na Argentina que
tanto a direita quanto a esquerda concordam: Cristina Kirchner está mais forte
que nunca.
Darío Pignotti // www.cartamaior.com.br
Existe preocupação hoje na
direita argentina. Ha alguns dias, em Buenos Aires, os rumores correm e falam
sobre um retorno (iminente?) da ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner,
que deixou o governo com cerca de 50 % de popularidade, para assumir o papel de
líder da oposição contra “este regime instaurado por Mauricio Macri, cujos dois
primeiros meses de governo estiveram marcados por demissões, repressão e
censura. Cristina é uma grande dor de cabeça para a direita”, assegura Martín
Sabbatella, um dos homens de confiança da ex-mandatária, em entrevista para
Carta Maior.
As pesquisas mostraram que se
Cristina tivesse sido candidata em 2015 – o que não foi possível, já que a
Constituição impede uma segunda reeleição consecutiva – certamente teria vencido
Macri, que foi eleito graças a uma estreita vantagem, no segundo turno que
disputou com Daniel Scioli.
Durante o diálogo com Carta
Maior, o jovem dirigente cristinista Martín Sabbatella falou do agitado cenário
político argentino, iniciado em dezembro com um ato de cerca de 100 mil e
militantes, reunidos na Praça de Maio
(https://www.youtube.com/watch?v=Wqt9z84s7jk) para se despedir da
ex-mandatária, e continuado em janeiro com outro encontro, convocado para
defender a democracia midiática e denunciar a caça às bruxas contra os
jornalistas que se opõem ao macrismo.
Sabbatella se tornou um dos
dirigentes próximos a Cristina desde que ela o escolheu como o funcionário
encarregado de liderar a batalha cotidiana contra o oligopólio midiático do
Grupo Clarín, que resistiu para não aplicar a lei de democratização da
comunicação.
Essa lei, também conhecida como
Ley de Medios, um dos símbolos dos doze anos de kirchnerismo (governos de
Néstor e Cristina), foi anulada por Macri poucos dias depois de chegar à Casa
Rosada, medida tomada junto com a demissão de Sabbatella como responsável pela
AFCSA (Autoridade Federal de Comunicação e Serviços Audiovisuais), entidade
criada para fazer funcionar as determinações da nova legislação, o que incluía
garantir que o Grupo Clarín cumprisse com a desmonopolização e se desfizesse de
parte das empresas que formam sua rede tentacular de televisão aberta e a cabo.
Retorno
– Cristina antecipará seu retorno
ao cenário político?
– Não posso falar por Cristina,
ela é quem deve decidir quais serão seus próximos passos políticos.
Claro que ela vem observando como
a situação se agravou em muito pouco tempo, ninguém esperava uma política de
choque tão autoritária, tão agressiva quanto a que temos vivido desde que Macri
chegou ao governo. Agora, se sua pergunta quer dizer “quando Cristina vai
voltar”, eu a colocaria de outra forma, porque Cristina nunca se foi, ela
somente terminou seu mandato, não ocupa mais a Casa Rosada, mas ela continua
estando presente.
Ela tem passado estes dias
descansando na Patagônia, junto com sua família, mas se mantém em contato
permanente com os companheiros, consultando, analisando, tomando decisões.
Veja bem uma curiosidade que está
sucedendo hoje na Argentina, algo que tanto nós quanto a direita concordamos:
todo mundo sabe que Cristina está mais forte que nunca.
Depois de ver a multidão que foi
espontaneamente à Casa Rosada para se despedir dela no dia 9 de dezembro, estou
seguro de que se hoje ela convocasse um ato em Buenos Aires encheria qualquer
praça, e também sabemos que Macri não seria capaz de mobilizar tanta gente
quanto ela.
Cristina desmente o princípio de
que quando um presidente deixa o governo sua popularidade sofre um baque. Ela
saiu com um índice de aprovação alto, e nisso a situação de Cristina se compara
com a do ex-presidente Lula no Brasil, em 2010, quando terminou seu segundo
mandato com altíssima aprovação.
Cristina é, sem dúvidas, a
condutora indiscutível do movimento popular na Argentina. Se tivesse sido ela a
candidata em outubro passado, tenho certeza de que venceria contra Macri.
– Então é possível que ela se
apresente como candidata para um terceiro mandato em 2019.
– Dentro do movimento popular,
neste momento, ninguém está discutindo ainda qual será a estratégia eleitoral
para daqui a quatro anos. Tenho certeza que Cristina não está preocupada com
esse tema, porque agora há outros assuntos prioritários.
Ainda assim, se tivesse que dar
minha opinião pessoal, diria que gosto da ideia de que ela seja presidenta pela
terceira vez, assim como milhões de argentinos também gostariam.
Cristina e Lula assediados pelo
“Partido Judiciário”
Martín Sabbatella conta que tem
se informado a respeito da caça promovida por setores da Justiça e dos meios
grandes (que não são o mesmo que grandes meios) de comunicação brasileiros
contra o ex-presidente Lula. E observa que tanto no Brasil quanto na Argentina
se formaram “partidos judiciários”, que operam como braços da direita para
atacar os grandes líderes populares.
– A situação de Cristina e de
Lula são similares?
– Cristina deixou o governo em
dezembro, ainda não podemos fazer um diagnóstico completo da situação, mas não
há dúvidas de que surgem muitos pontos em comum sobre como a direita ataca
tanto Lula quanto Cristina.
A estratégia dos partidos de
direita da Argentina, do Brasil, da América Latina, é fortalecida pelo apoio
que recebem de parte dos poderes judiciários.
Os poderes judiciários dos nossos
países às vezes atuam como máfias. Estamos falando de amplos setores da Justiça
que foram colonizados pelas corporações, ou que temem enfrentar essas
corporações econômicas e midiáticas.
A presidenta Cristina vem
denunciando essa manipulação da lei com fins políticos e eleitorais há tempos.
Ela definiu esse grupo de poder como o “Partido Judiciário”, se trata de um
partido que acossa os dirigentes populares através da perseguição, com
campanhas montadas em cumplicidade com os grandes meios privados de
comunicação, campanhas baseadas em mentiras repetidas até que as pessoas acabam
tomando-as como verdades, com causas que são inventadas entre juízes e
promotores.
Então, se pode dizer, sem querer
fazer comparações automáticas ou simplistas, que se pode ver claras semelhanças
entre as campanhas sujas realizadas contra Cristina e as que sofrem outros
dirigentes da região, como a que ataca o ex-presidente Lula.
E então nos perguntamos: por que
continuam hostilizando Cristina se acabam de ganhar uma eleição presidencial
com Macri?
Porque querem destruir o legado
do seu governo e do presidente Néstor Kirchner. Querem destruir seu capital
político, seu capital simbólico.
A direita queria que o
kirchnerismo desaparecesse no dia 10 de dezembro de 2015 (último dia de mandato
de Cristina) e isso não aconteceu. Por isso seguirão hostilizando Cristina,
através do “Partido Judiciário” e dos meios hegemônicos.
Praças cheias, contra Macri
Sabbatella analisa com realismo o
cenário argentino surgido após as eleições de outubro do ano passado. “Nós
assimilamos o fato de que perdemos, isso não se pode negar. E também aceitamos
que a direita venceu, por pouco mas venceu. E também somos conscientes de que a
direita vai utilizar todo o poder que tem agora para nos golpear com dureza”.
Mas, ao mesmo tempo, o dirigente
cristinista destaca a “capacidade de resistência e mobilização” demostrada pelo
movimento popular nestes dois meses, quando não só lotaram Praça de Maio de
Buenos Aires (em frente ao palácio presidencial), como as dezenas de “praças do
povo”, no interior do país.
Neste sábado (13/2), o próprio
Sabbatella encabeçará um ato numa praça de Buenos Aires, onde também se
apresentará Fito Páez, um dos maiores ícones do rock argentino.
– Macri esperava tamanha
mobilização opositora?
– Creio que não, me parece que a
direita está perplexa ao ver como o povo argentino está se colocando contra os
seus abusos, seu autoritarismo, a repressão aberta. Reprimiu trabalhadores na
cidade de La Plata (capital província de Buenos Aires), prendeu uma dirigente
popular como Milagro Sala (na província de Jujuy, região noroeste).
– Quem analisa a situação
argentina de longe acha paradoxal ver tantas mobilizações contra um governo
recém iniciado.
– A direita também está vivendo
essa perplexidade, porque creio que não esperava ver protestos na Praça de Maio
e em outras praças centrais, em capitais e grandes centros de todo o país. Isso
acontece devido à consciência nacional, popular e democrática, criada ao longo
de 12 anos de governos de Néstor Kirchner e Cristina.
O kirchnerismo deixou um legado
que está presente, tem uma dimensão fundacional, o kirchnerismo é como uma casa
onde habitam as diversas tradições da cultura política nacional e popular.
– O governo Macri Se trata de um
governo de direita clássico?
– Estamos sob um governo que
repete os velhos costumes da direita, que criminaliza a mobilização social, que
busca disciplinar os movimentos, é a direita de sempre, que quis vender uma
imagem suave, uma imagem que se desvaneceu rapidamente.
Macri pertence à tradição da
velha direita argentina, que é uma direita com muitos pontos de contato com as
de outros países latino-americanos.
Da mesma forma com que os
movimentos populares da nossa América têm pontos em comum, os grupos de direita
também são parecidos, e Macri traz de volta muitas coisas que já vimos nos Anos
90, com Menem, com Alberto Fujimori (ex-presidente peruano) e também com
Fernando Collor, entre outros personagens da década neoliberal.
Claro que Macri possui
características próprias, particulares, mas o que mais importa são seus pontos
de coincidência com os grupos de direita dos países vizinhos.
A direita de Macri atua como a
direita do Brasil e de outros países latino-americanos. Quando estão na
oposição, utilizam métodos desestabilizadores, contando com o apoio dos meios
de comunicação de dos juízes cúmplices.
E quando chegam ao poder passam a
tentar destruir os direitos conquistados pelas maiorias populares, se apropriar
dos recursos da pátria para entregar às grandes corporações internacionais,
subordinando-se automaticamente aos interesses dos Estados Unidos.
Ou seja, é um governo eleito,
legítimo, mas que governa obedecendo aos poderes concentrados. Hoje, a
Argentina está sendo governada por seus donos. Além de fomentar a exclusão,
este governo reprime mais do que imaginávamos.
– É uma direita dura
– É um governo legal, que por
momentos governa como se não fosse de fato: reprime, não respeita as leis,
governa através de decretos, não convoca o parlamento.
Censura e livre mercado
“Desde que Macri, que está
co-governando o país junto com o Grupo Clarín, a Argentina vive sob um sistema
de censura moldado pelo livre mercado”, resume Sabbatella.
– Você pode explicar melhor essa
relação entre mercado e censura?
– Esse tipo de censura é a que
estamos vendo desde o dia 10 de dezembro: Macri está devolvendo com juros os
favores que recebeu do Grupo Clarín durante a sua campanha, instaurando uma
censura contra todos os que questionam seus atropelos. Existe um acordo mais ou
menos implícito entre os grandes meios privados e o macrismo, para impedir que
os jornalistas críticos ao governo trabalhem, isso foi o que aconteceu no mês
passado, quando quebraram o contrato do radialista Víctor Hugo Morales. Nesse
caso, se viu claramente como a censura do mercado funciona, porque Víctor Hugo
tinha a maior audiência da sua emissora de rádio. Ou seja, não mandaram ele
embora porque não dava lucro, e sim porque as empresas estão alinhadas
ideologicamente com o modelo de Macri.
Hoje temos um ministro da área
das comunicações que diz sem nenhum cuidado que as comunicações devem ser
deixadas a mercê do jogo da oferta e da procura, como se as notícias fossem
mercadorias, como se não houvesse monopólios, oligopólios que conspiram contra
a pluralidade.
Se o projeto comunicacional de
Macri se impõe, voltaremos ao capitalismo selvagem dos Anos 90, e a pluralidade
que foi se construindo durante o governo de Cristina, através da Ley de Medios,
será seriamente ameaçada. A lei que aprovamos graças à valentia da presidenta
em 2009, que quebrou o tabu de que os políticos nunca tinham a coragem de
enfrentar o Clarín, um grupo econômico que exercia um poder de fato,
chantageando todos os presidentes, impondo sua agenda.
Com essa lei, Cristina e o
kirchnerismo foram além da fronteira do possível, e revalorizaram o campo da
política, que havia sucumbido aos caprichos do Grupo Clarín.
Entre os políticos, havia se
instalado o conceito de que era impossível desafiar o Clarín, e o kirchnerismo
demonstrou que é possível desafiá-lo, e ao mesmo tempo ganhar o respaldo do
povo.
Mas além disso, temos que lembrar
que essa lei é uma conquista do povo argentino.
– É por isso que as pessoas vão
às ruas para defendê-la.
– Sim, por isso. Acontece que o
povo teve uma participação importante na elaboração da lei, através de debates
realizados em todas as províncias, consultas nas faculdades de comunicação, nos
sindicatos de jornalistas. Quando a lei foi aprovada, apesar da chantagem do
Grupo Clarín para que não prosperasse, houve um grande apoio da sociedade, e o
voto quase unânime do Congresso a favor.
É uma conquista política que o
povo argentino não vai querer perder, e nem vai aceitar isso em silêncio, por
isso vemos gente marchando, assinando petições, se mobilizando.
Os que querem enterrar a lei o
fazem porque são conservadores ideologicamente, mas também porque pretendem
blindar este governo, o governo deles, com essa censura que vêm impondo junto
com os grandes meios privados.
Essa censura das corporações
privadas busca impedir que a repressão seja denunciada, impedir que a crítica
aos ajustes neoliberais seja expressada e difundida, impedir que se fale sobre
a polêmica política de sujeição ao Fundo Monetário Internacional e de
claudicação diante dos fundos abutres.
Tradução: Victor Farinelli
Créditos da foto: Presidência da
Argentina
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