Bruna Frascolla
Assim, o neopentecostalismo forneceu os ingredientes para que os evangélicos vivessem uma guerra santa contra seus vizinhos. Sua vitória, no entanto, consistiu em serem ricos.
No ano passado foi lançada, e bem distribuída nas livrarias brasileiras, a obra A fé e o fuzil: Crime e religião no Brasil do século XXI, do jornalista e cientista político Bruno Paes Manso. Mesmo com suas falhas, o livro é uma rica e interessante documentação da mentalidade no Brasil liberal. A tese é esta: diante da incapacidade do Estado em lidar com os pobres, que se tornou crônica nas grandes cidades após o êxodo rural, o neopentecostalismo e o banditismo organizado surgiram como duas mentalidades complementares. Ambas são complementares na medida em que visam dar soluções particularistas e imediatas aos problemas das pessoas, que não são mais pensados em termos sociais.
O autor já vinha estudando a violência. Segundo ele, a violência urbana explodiu em São Paulo nas décadas de 1980 e 1990, para despencar nos anos 2000. Explicar a origem da violência foi um tanto fácil: parte da população rural, seja por necessidade ou por ilusões de riqueza fácil, abandonou suas raízes e migrou para a cidade grande, onde não tinha rede de apoio e precisava de dinheiro para sobreviver (lembremos que no campo, se não há problemas naturais, é possível sobreviver sem dinheiro, direto da terra). Além da precariedade, houve uma mudança de valores: Paes Manso observou que os delinquentes juvenis nasciam em São Paulo, enquanto os justiceiros, que “limpavam” suas favelas, quase sempre nasciam na região nordeste do Brasil. Enquanto os migrantes queriam encontrar um emprego para sustentar suas famílias, a nova geração, que cresceu sob a influência da TV, aspirava consumir produtos de marca – algo que só estaria ao seu alcance por meio do crime. Além disso, a violência serve como um meio de autoafirmação masculina.
Autores de esquerda frequentemente explicam a violência basicamente pela pobreza. Embora críticas à sociedade de consumo apareçam aqui e ali, poucos autores enfatizam que ela implica uma crise de valores. Afinal, a sociedade de consumo é incapaz de gerar coesão social ou dar sentido à vida dos pobres. Em desespero, eles matam e morrem em massa em lutas sem sentido.
A demografia dos evangélicos coincide com a desse povo pobre urbano. A região menos evangélica do Brasil é justamente o Nordeste, região de onde partiu a maior parte dos migrantes que iam tentar a sorte nas grandes cidades.
Ao pesquisar sobre violência, o autor teve que decifrar a causa da queda repentina de homicídios em São Paulo. Ele concluiu que havia dois fatores: a conversão ao evangelicalismo e o PCC (um sindicato do crime). Ambos dão sentido à vida.
Muitas das fontes do autor são ex-criminosos que se tornaram evangélicos. Segundo ele, os relatos de conversão são muito semelhantes: a pessoa de repente tem uma mentalidade alterada e começa a agir de forma diferente, em um processo que eles chamam de “metanoia”.
O autor, agnóstico de formação católica, chegou a fazer cursos de teologia com pastores. Duas de suas críticas aos evangélicos me parecem pertinentes: primeiro, que eles não pensam na sociedade como um todo, já que só lidam com problemas pessoais (especialmente dinheiro e família). Depois, e em parte como consequência disso, porque são inclinados a uma demonização do outro. Ele apresenta duas fontes para isso. O próprio neopentecostalismo alega que todo o mal do mundo vem do diabo, e um representante popular dessa ideia é o teólogo Peter Wagner. O mundo está cheio de demônios, e cabe aos fiéis organizar orações para expulsá-los. Dizem que os demônios estão em vários setores da sociedade, incluindo o governo. Assim, o adversário político não é um mero adversário, mas um agente do diabo.
Além disso, em 1960, veio ao Brasil um certo pastor canadense chamado Robert McAlister. Ele se tornou um dos primeiros televangelistas e teve entre seus aprendizes ninguém menos que Edir Macedo, criador da Igreja Universal do Reino de Deus e dono de um império televisivo internacional. A premissa de McAlister, repetida com sucesso pelos televangelistas brasileiros, é que as entidades africanas e indígenas cultuadas pelo povo eram todas reais e seu poder vinha do diabo. Esta é uma posição contrária à adotada pela Igreja Católica, segundo a qual os feiticeiros não tinham poder e se aproveitavam dos crédulos.
Assim, o neopentecostalismo forneceu os ingredientes para que os evangélicos vivessem uma guerra santa contra seus semelhantes. Sua vitória, no entanto, consistiu em ser rico, como defendido de forma bastante explícita por Edir Macedo.
Apesar das críticas, Paes Manso ressalta que há evangélicos virtuosos que sabem viver em uma democracia liberal e cita como exemplo a ministra do Meio Ambiente Marina Silva. No entanto, segundo o autor, mesmo os fiéis virtuosos geralmente tendem a não pensar na sociedade como um todo, pois lhes parece que tudo se resolverá quando cada indivíduo se converter. Não há política em si; há um esforço de moralização.
Quanto ao PCC, a organização do tráfico de drogas de São Paulo, o autor diz que seu modelo é muito diferente do CV, a organização do Rio. Acredito que seria mais sucinto usar a expressão que ouvi de um policial para descrever o PCC: uma seita. Como o autor explicou, o PCC tem um batismo, pelo qual o novo membro se torna parte da organização, e tem uma carta de princípios inspirada nos Dez Mandamentos. Por meio de uma hierarquia rígida, e por meio de uma mudança na moral do novo membro, o PCC impôs ordem nas periferias de São Paulo. Além disso, seu espetacular sucesso econômico permitiu que os pobres alcançassem as maravilhas da sociedade de consumo. O “ funk ostentação ”, que exalta a subcultura do tráfico de drogas e ostenta riqueza, virou isca para rapazes favelados que querem enriquecer.
O livro foca em São Paulo, mas compara a situação com a do Rio de Janeiro. Em São Paulo, igrejas evangélicas convivem com o tráfico de drogas e se misturam a ele, muitas vezes lavando dinheiro. O PCC é uma organização criada em presídios e opera de lá. No Rio, as facções lutam pelo controle territorial – o que faz a violência explodir – e geralmente não se esforçam para moralizar a área que dominam. Uma exceção a essa última tendência é o “Complexo de Israel”, que surgiu durante a pandemia – quando o Supremo Tribunal Federal proibiu a polícia do Rio de Janeiro de entrar nas favelas sem grandes procedimentos burocráticos. O Complexo de Israel é comandado por um pastor-traficante chamado Peixão (ou Peixe Grande), e os membros da facção se veem como o Povo Escolhido, usando a conquista de Josué sobre os Amaleques para justificar a tomada da Terra Prometida (um punhado de favelas do Rio de Janeiro). Nessa área, tanto o catolicismo quanto as religiões não cristãs que envolvem possessão espiritual (Candomblé, Umbanda e Espiritismo) são perseguidas.
Em um texto interessante aqui para o SCF, Raphael Machado já discutiu o Israel Slum Compound e o comparou ao salafismo. No entanto, dadas as semelhanças flagrantes entre esses traficantes de drogas e os calvinistas que praticavam limpeza étnica (toquei no assunto aqui), eu me pergunto se o salafismo, sendo tão tardio, não é uma imitação desse calvinismo também.
Uma consequência grave dessa visão particularista (compartilhada por crentes e criminosos) é que, no fim das contas, a representação política está sujeita à mesma lógica: ela está na raiz do famigerado Centrão, os partidos de centro sem rosto nem ideologia. O que é um político típico do Centrão brasileiro? Aquele que não tem princípios, nem ideias, nem valores. O que ele tem é uma clientela com interesses particulares: um lobby para os pobres que querem benefícios pessoais, ou para os ricos que querem continuar tendo leniência para fazer negócios escusos. O autor chegou a ouvir um ex-vereador que desistiu da política após concluir que seu trabalho era irrelevante, porque nenhum dos seus colegas ouvia suas reclamações, mesmo que fossem bem fundamentadas, aparecessem no jornal e o assunto fosse sério.
Podemos concluir, então, que o Centrão, o narcotráfico e o neopentecostalismo são a face da Nova República (que começou em 1988), a face da democracia liberal. Essa, no entanto, não é uma conclusão a que o autor, um esquerdista liberal, queira chegar. Neste artigo falei bem do livro; no próximo, falarei mal dele.
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