Um grande problema do déficit
fiscal brasileiro aparece quando se considera a conta de juros nominais, de
8,5% do PIB, quando a inflação não é de demanda.
Rodrigo Medeiros // www.cartamaior.com.br
Um tema que vem merecendo um bom
destaque na imprensa é o das contas públicas e suas relações com a evolução da
economia brasileira. Desde o fim da eleição de 2014, já havia a expectativa de
um ajuste a ser realizado. Para que a confiança do mercado financeiro estivesse
presente ao longo do processo, o governo trouxe uma figura de respeito desse
setor para integrar a nova equipe econômica. O viés contracionista do ajuste
macro buscava oferecer a perspectiva de rápida recuperação da “confiança”,
através de uma espécie de “austeridade expansionista” tão criticada por
Krugman, Stiglitz e outros que consideram a importância dos multiplicadores
fiscais.
Desde o início do processo que
visava a “recuperação” da confiança na economia, não acreditei que seria algo
rápido e fácil de realizar. Afinal, desde meados de 2014, os preços
internacionais das commodities, que representam aproximadamente dois terços das
exportações brasileiras, caíram fortemente e tal fato impactaria negativamente
na nossa economia em 2% do PIB (pelo método do multiplicador da base
exportadora). Algum tempo depois, o Ministério da Fazenda divulgou a estimativa
de que a operação Lava Jato levaria outros 2% do PIB por conta da paralisação
de investimentos e projetos. Essas questões afetaram adversamente as receitas
públicas em nosso país, inclusive o potencial de crescimento da relação
dívida/PIB em uma recessão aprofundada.
A economia brasileira vinha
deslizando para baixo desde 2011 e já era possível notar que o governo federal
tentava "esticar a situação anterior" a partir de 2012 com algumas
medidas que hoje são tão criticadas, mas que foram apresentadas pelo
empresariado então (as desonerações fiscais e a queda dos preços de energia
elétrica, por exemplo). Segundo avaliaram José Oreiro (IE/UFRJ) e Paulo Gala
(FGV-EESP), a histerese derivada da desindustrialização prematura da economia
brasileira aponta para a saída lenta, difícil e dolorosa da crise. O Fundo
Monetário Internacional (FMI), por sua vez, estimou que o nosso PIB deverá cair
3,5% em 2016 e parar de piorar em 2017.
De acordo com o “Resultado do
Tesouro Nacional”, de dezembro de 2015, a receita total em 2015 caiu 6,3% em
termos reais e as despesas totais cresceram 2,1% para o governo central. As
despesas discricionárias caíram em termos reais a um patamar inferior ao ano de
2013. Para o “Cenário Macroeconômico 2016”, da Gradual Investimentos, "o
problema fiscal [brasileiro] verificado nos últimos anos foi derivado não de um
aumento repentino das despesas, mas antes de tudo de uma queda abrupta das
receitas. Não quero dizer com isso que não houve aumento das despesas nos
últimos anos, mas o ponto aqui é verificar o que de fato estourou as contas
públicas em 2014/2015".
Desde o final de 2014, estava
claro para mim que a desindustrialização prematura da economia brasileira
dificultaria o processo de rápida recuperação econômica em um contexto no qual
o FMI chamou, posteriormente em 2015, de “um novo medíocre” em termos de
expectativas de crescimento global. Lawrence Summers, ex-secretário do Tesouro
norte-americano e acadêmico de prestígio internacional, defende a tese da
“estagnação secular” e suas implicações derivadas da histerese na redução do
crescimento potencial (“Vox/ CEPR's Policy Portal”, 30/10/2014). Entre nós,
poucos identificaram o efeito de histerese na desindustrialização prematura
(nesse sentido, recomendo os blogs dos economistas Paulo Gala e José Oreiro).
Segundo afirma Paulo Gala (FGV-EESP), “como bem ressalta o economista argentino
Roberto Frenkel num trabalho recente, aquele que se queima com leite vê uma
vaca e chora! (Ditado argentino.) Será muito difícil convencer os empresários
brasileiros a voltarem a investir no setor de bens transacionáveis não
commodities depois de uma década de sobrevalorização cambial. Sem esses
investimentos não haverá aumento de produtividade e complexidade e nossa renda
per capita mal conseguirá crescer, se é que vai crescer nos próximos anos”
(04/01/2016).
José Oreiro (IE/UFRJ), por sua
vez, diz que “se a taxa de câmbio permanece sobrevalorizada por longos
períodos, como ocorreu com a economia brasileira no período 2005-2014, então a
mudança na estrutura produtiva decorrente dessa sobrevalorização não poderá ser
totalmente revertida com o retorno da taxa de câmbio ao seu patamar original.
Será necessário que a taxa de câmbio se deprecie além do ponto inicial e fique
nesse novo patamar por um período de tempo suficientemente longo para que as
firmas estrangeiras que entraram no bojo da sobrevalorização cambial decidam se
retirar do mercado” (06/01/2016). A sobrevalorização cambial crônica do real
vem ocorrendo desde o Plano Real (1994) e foi intensificada no boom das
commodities, algo que contribuiu para a nossa desindustrialização prematura e a
estagflação vigente. No plano das contas públicas, é bem interessante observar
o drama do Estado do Rio de Janeiro e como a “maldição do petróleo” impactou
nas finanças públicas fluminenses.
Câmbio e juros são dois preços
fundamentais voláteis em uma economia emergente. Nesse sentido, algumas
reflexões se mostram bem relevantes. O professor e ex-ministro João Sayad, no
livro “Dinheiro, Dinheiro” (Portfolio Penguin, 2015), levanta a hipótese de que
“o regime de metas de inflação gera instabilidade. Aumenta a inflação, sobem os
juros. A inflação cai, mas a taxa de câmbio também. No curto prazo, um ano, o
resultado é favorável, mas num prazo maior o balanço de pagamentos se
desequilibra”. O economista Bráulio Borges, na “Folha de S.Paulo” (02/09/2014),
ao analisar o desempenho do tripé macroeconômico implementado em 1999, afirma
que “chama a atenção o fato de que, no período de 16 anos compreendido entre
1999 e 2014, a inflação medida pelo IPCA foi igual ou inferior ao centro da
meta estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional em apenas 4 (ou 25% do
total)”. Entre 2004 e 2008, ele foi exitoso em apenas 2 dos 5 anos.
Quando se fala sobre o Brasil, a
comparação com outros países da região aponta, na cabeça de alguns, para uma
receita a ser seguida. Se “eles” crescem mais, "estão em melhor
forma". Não se avalia se esse tipo de crescimento está distribuindo renda
ou concentrando riquezas nas mãos de poucos e se o Brasil suportaria efetivamente
permanecer aprisionado a esse modelo primário-exortador. A destruição ambiental
tampouco é considerada, assim como não é avaliado se um modelo que
"serve" a um país de menor dimensão atenderá a um país maior.
O jornal “El País Brasil”
(24/10/2015) publicou uma matéria sobre a crise na América Latina, citando como
o Brasil, a Colômbia, o Peru e o Chile amargam déficit nas contas públicas com
o fim da festa das commodities. Ricardo Caballero (MIT) afirma, na matéria
citada, que “tivemos um episódio daquilo que se conhece como doença holandesa.
Quando o preço e a produção de um bem de exportação sobem muito, as
matérias-primas em nosso caso, geralmente elas arruínam o resto do setor
exportador, por causa de uma valorização sustentada da taxa de câmbio”. Para o
colombiano José Antonio Ocampo (Universidade Columbia), também citado na
respectiva matéria, “a desindustrialização foi excessiva, o investimento em
tecnologia muito baixo, e há muito por fazer até obter uma educação de
qualidade, um setor público eficaz, e uma melhora na infraestrutura que
potencialize o crescimento”.
Um relatório da Economist
Intelligence Unit (EIU), de setembro de 2015, chamado “Growth in an Uncertain
Global Environment”, trouxe um olhar de preocupação para a América Latina. As
moedas da região já sofriam pressões por desvalorizações cambiais e as
políticas monetárias domésticas enfrentavam então um delicado dilema. Afinal,
devem as autoridades monetárias elevar as taxas básicas de juros domésticas
para combater as pressões inflacionárias derivadas de repasses das
desvalorizações cambiais das moedas nacionais quando as economias estão
desacelerando? O relatório “Fiscal Monitor” (outubro de 2015), do FMI, mostrou
em números como países da América Latina e de outras regiões enfrentam problemas
nos seus resultados fiscais. Segundo foi projetado, o Chile, por exemplo, só
zerará o seu déficit fiscal primário em 2018. O caso do Peru é parecido para
esse mesmo horizonte de tempo. No horizonte de projeção do FMI até 2020, não
consta a expectativa de que os EUA zerem o seu déficit primário. Essa
expectativa também não está presente para o G7 e o G20.
Um grande problema do déficit
fiscal brasileiro aparece quando se considera a conta de juros nominais, de
8,5% do PIB, quando a inflação não é de demanda. Não é estranho, portanto, que
o setor bancário tenha elevado de forma extraordinária os seus lucros:
“somados, os ganhos dos quatro maiores bancos cresceram mais de 40% no primeiro
semestre, na comparação com os primeiros seis meses de 2014” (“G1”, 14/08/2015).
Felizmente, há questões no presente que representam pontos de convergências na
priorização de reflexões e ações para o curto prazo: a reversão de renúncias
fiscais concedidas de forma indiscriminada, o combate sistemático à sonegação
fiscal anual da ordem e 10% do PIB, a redução dos custos de transação na
economia, o enxugamento de excessos burocráticos, as melhorias na gestão
pública e nas agências reguladoras, a avaliação de programas, o orçamento de
base zero, entre outros.
Por outro lado, existem temas bem
relevantes, como é o caso da tributação progressiva, que não são considerados
pelos supply-siders. Eles preferem atacar as vinculações orçamentárias e as
despesas obrigatórias dos orçamentos públicos. O Brasil já viveu o tempo no
qual a sua inserção global foi primário-exportadora e os governos estiveram
livres de vinculações orçamentárias e algumas despesas obrigatórias. A Primeira
República, oligárquica e antissocial, não resolveu o problema das contas
públicas brasileiras e isso ficou bem claro nos desdobramentos da crise de
1929: concentração de riquezas e socialização de prejuízos. Coube
posteriormente ao ministro Osvaldo Aranha um levantamento dos empréstimos que
Estados e municípios tinham contraído no estrangeiro, tendo em vista a consolidação
da dívida externa brasileira. A década de 1930, na onda da Grande Depressão,
não foi marcada pelos avanços do liberalismo econômico e da paz mundial. Em
síntese, desvalorizações cambiais competitivas em um processo de desaceleração
global representam um sinal de alerta.
Os tempos são “outros”, mas é
importante aprender com as experiências passadas do sistema capitalista. Para
Dani Rodrik, professor de Harvard, "a economia não é o tipo de ciência na
qual alguma vez poderá existir um único modelo genuíno que funcione melhor em
todos os contextos (...) diferentemente das ciências naturais, o avanço
científico das econômicas não se dá pela substituição de velhos modelos por
melhores, mas pela expansão de sua biblioteca de modelos, com cada um esclarecendo
uma contingência social diferente" (“Valor Econômico”, 11/09/2015). Essa é
uma boa reflexão para um debate civilizado, aberto ao dissenso e que seja
pautado pela ética da responsabilidade.
Rodrigo Medeiros é professor do
Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)
Créditos da foto: Rafael
Neddermeyer / Fotos Públicas
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