Ocupações de escolas em São Paulo
retomam forma e estética das revoltas de junho de 2013 e conquistam nova
vitória sobre o governo estadual de Geraldo Alckmin. Movimento pode ser
entendido como um segundo momento de amadurecimento de uma nova geração de
militantes
por Cristiano Navarro e Luís
Brasilino // http://www.diplomatique.org.br/
Cercados por um imenso
contingente de policiais militares, sob a pressão de iminentes ordens judiciais
de reintegração de posse, e caluniados pela criminalização dos grandes veículos
de comunicação, os estudantes mobilizados contra o projeto de reorganização das
escolas de São Paulo responderam: “Não tem arrego!”.
Uma resistência que, como em
junho de 2013, ergueu-se e venceu o governo estadual sem contar com partidos
políticos, carros de som, lideranças ou representação de organizações institucionais.
Assim, por mais de dois meses, jovens de cerca de 230 escolas da capital,
litoral e interior, de regiões periféricas ou centrais, derrotaram a imposição
de um projeto que teve como centro o fechamento de 93 escolas para a redução de
investimento na educação. Surdo à participação popular, o governador do estado
de São Paulo, Geraldo Alckmin, propôs um diálogo cuja linguagem expressou seus
argumentos de convencimento por meio da extrema violência policial e anúncios
publicitários da reforma proposta. Ao poder público, o movimento de estudantes
se fez ouvir depois de uma sequência de atos que se esgotaram pela falta de
diálogo e foram substituídos por outros cada vez mais radicais e mais
solidários.
Num primeiro momento, organizaram
passeatas, depois audiências públicas, ocupações, aulas de formação política e,
por fim, o fechamento diário de ruas em dois períodos, de manhã e ao final da
tarde. Como se pudessem ser invisíveis e, ao mesmo, capazes de registrar com
seus celulares o total descontrole dos aparatos repressivos, os estudantes
surgiam, chamavam atenção e desapareciam, para depois ressurgir com mais força.
Táticas de uma guerrilha desarmada no enfrentamento de um exército regular
paquidérmico.
Formação na luta
A primeira ocupação ocorreu numa
quinta-feira, 5 de novembro, quando, em assembleia, os secundaristas da Escola
Estadual (E. E.) Diadema decidiram impedir a rematrícula que os transferiria em
definitivo da escola onde muitos compartilharam com seus melhores amigos boa
parte da vida. “Nós chegamos a fazer um abaixo-assinado com mais de 10 mil
assinaturas contra o fechamento do ensino médio na nossa escola. O documento
foi assinado por todos os vereadores da cidade, mas isso não adiantou nada. Em
um grupo de WhatsApp que agrupava as escolas mobilizadas, cogitava-se a
possibilidade de uma ocupação para barrar o fechamento. Como nossa rematrícula
estava marcada para segunda-feira, dia 9, não tínhamos alternativa senão
ocupar”, narra Fernanda Freitas, de 17 anos, estudante do 2º ano do ensino médio
na E. E. Diadema.
A inspiração veio do manual “Como
ocupar um colégio?”, disponível no perfil “O Mal Educado”, uma das páginas de
apoio à luta dos estudantes no Facebook. Baseado nas experiências do movimento
chileno conhecido como a Revolta dos Pinguins, que em 2011 ocupou mais de
setecentas escolas do país, o guia explica passo a passo os planos de ação e
organização da tomada do espaço de ensino. No fim de semana seguinte, os alunos
de Diadema constituíram comissões de segurança, alimentação, comunicação,
limpeza, porta-voz e elétrica. Na segunda-feira, dia 9, eles informaram a
decisão de só sair quando tivessem a garantia de que seriam atendidos. A
direção chamou policiais para retirar os adolescentes da escola. No entanto,
eles já haviam providenciado um termo de responsabilidade assinado pelos pais
autorizando que seus filhos ficassem na instituição, prevenindo-se de qualquer
ação do Conselho Tutelar. Ao todo, eles permaneceram 42 dias no local.
Um dia após a ocupação de
Diadema, o rastro de pólvora acendido na região do ABC seguiu para a região
central da capital, e a E. E. Fernão Dias, em Pinheiros, também foi ocupada. Em
duas semanas, 52 cidades do estado tinham unidades sob posse dos estudantes.
Os vídeos com mensagens, músicas
e atividades realizadas dentro de inúmeras ocupações espalharam-se pelas redes
sociais. As imagens mostravam os espaços de ensino, autoritários e decadentes,
convertendo-se em lugares de autogestão e livre expressão, laboratórios de
experiências autônomas radicalmente democráticas. Receberam o cuidado dos
ocupantes como nunca havia ocorrido: atividades culturais, aulas alternativas,
limpeza, pinturas, grafite...
O escritor, educador e ativista
do movimento de saraus de poetas da periferia, Allan da Rosa, esteve em escolas
ocupadas na Zona Sul da capital dando apoio e ministrando aulas. “A rapaziada
ocupou surpreendentemente as escolas que tanto lhe machucaram e subestimaram,
muitas vezes em prédios caindo aos pedaços, que foram reformados, capinados e
ajardinados pelos próprios estudantes, que angariavam verba ou encontravam
materiais ocultos em galpões e quartinhos trancados por diretores. O movimento
dos secundaristas é uma lufada de esperança em hora de nojento atoleiro
político. É real ventania cheia de pólen adentrando um cenário e contexto
desoladores”, avalia. O escritor realça as intersecções do movimento, chamando
atenção para o protagonismo das mulheres e dos jovens negros, “os mesmos que
integram o grupo dos mais estereotipados e assassinados no país do genocídio da
juventude negra”.
José Paulo Guedes Pinto,
professor de Relações Internacionais e Ciências Econômicas da Universidade
Federal do ABC, também esteve em escolas, oferecendo aulas e apoio logístico, e
se declarou impressionado com os debates entre os estudantes: “É um processo de
formação forte, poderoso, crítico, positivo, progressista. Uma formação
política rápida, de muita qualidade, que pode superar essa dicotomia
partido-sindicato. Eles estão retomando essa perspectiva mais de base da luta
crítica”.
Apesar de a maioria das escolas
não contar com grêmios estudantis ou de estes terem pouca representatividade, o
movimento de ocupações conquistou apoio popular ao expor seus objetivos com
clareza e força política. A estudante Joana Noffs, de 16 anos, que cursa o 2º
ano do ensino médio na E. E. Professor Antônio Alves Cruz, também em Pinheiros,
explica que um dos principais pilares do movimento está na intensa convivência
comunitária experimentada no cotidiano das ocupações. “Construímos uma coisa de
comunidade, os alunos não se conheciam. Agora a gente passou a trabalhar junto,
a gente cozinha junto, almoça junto, limpa a escola junto, e criamos uma
relação que nunca teríamos criado. E isso não só dentro da escola, mas com os
alunos de outras escolas, com unidade, força e solidariedade, com o
envolvimento dos pais e de moradores do bairro.”
Junho de 2013, novembro de 2015
As semelhanças entre os protestos
contra o aumento da tarifa em junho de 2013 e uma das maiores mobilizações
estudantis da história não são mera coincidência. Doutora em Letras e educadora
da Escola Nacional Florestan Fernandes, Silvia Adoue, que participou de
vigílias em apoio à E. E. Lysanias de Oliveira Camargo, em Araraquara (interior
de São Paulo), entende o novo movimento estudantil como parte desse ciclo da
luta de classes inaugurado com as mobilizações puxadas pelo Movimento Passe
Livre em 2013. “Essa nova ascensão das lutas não encontra representação nas
velhas organizações”, avalia.
Nesse sentido, a professora de
Sociologia da FGV-SP Silvia Viana, que acompanhou as mobilizações de 2013 e
2015, avalia que o movimento contra o fechamento das escolas pode ser analisado
“à luz de uma disjunção que, desde 2013, parece ter vindo para ficar: trata-se
do abismo que se abriu entre a contabilidade conjuntural e a política
propriamente dita. O ‘propriamente dita’ deve-se ao samba dos termos clássicos,
que não mais prescindem de complementos”.
No abismo entre a representação
política e as demandas dos jovens, a doutora em Ciências Sociais e professora
de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo, Esther Solano,
aponta para uma surdez autoritária. “A população está manifestando que não quer
mais uma política autoritária e surda, que não dialogue com os cidadãos. Os
jovens de junho de 2013 e os das escolas querem participar da política e ser
protagonistas das decisões. Por outro lado, a resposta do poder público, neste
caso o governo do estado de São Paulo, também tem um paralelo enorme com junho.
É uma resposta negativa ao diálogo; de polícia, e não de política, em que tem
se buscado reprimir os protestos, e não dialogar com eles. Como em junho, a
tática policialesca inflama ainda mais os protestos.”
Esther avalia o movimento como
“um aprendizado democrático, de autogestão e definição de demandas que não está
isento de conflitos internos, mas isso também forma parte do aprendizado. Algo
importante é que nossa educação é do século XIX. Os jovens estão demandando uma
educação nova, crítica, dentro e fora das salas de aula, que fale de feminismo,
de movimentos populares. Temos de rever as velhas estruturas educativas,
políticas, até as velhas estruturas de reivindicação popular, porque os modelos
atuais não dão conta, são rígidos e muitas vezes excludentes”.
O professor de Sociologia da USP
Ruy Braga, que realiza pesquisa comparativa entre a formação de jovem
precariado pós-fordista predominantemente urbano na África do Sul, Brasil e
Portugal, destaca o protagonismo político de uma nova juventude. “São jovens em
condições precárias de vida, nas periferias das grandes metrópoles, que são as
principais vítimas da regulação do conflito urbano via repressão policial. São
as principais vítimas dos assassinatos da polícia militar e encontram-se também
diante de uma realidade muito pouco alvissareira do ponto de vista da inserção
no mercado de trabalho. Ou seja, é a mesma base, o mesmo sujeito coletivo que,
inexperiente politicamente, numa situação de agudização das contradições e da
polarização social como a gente vive hoje no país, tende a politizar-se muito
rapidamente”, comenta Braga.
O professor explica que,
atualmente, há uma contradição entre um ciclo educacional mais qualificado e a
negação dessas potencialidades pelo mercado de trabalho. “De um lado, você
estimula que essa juventude se veja em uma situação empoderada, mais cultivada,
em uma posição superior à geração anterior; por outro lado, isso se choca
flagrantemente com as próprias condições da crise capitalista, da precarização
das condições de trabalho, dos baixíssimos salários... Isso tudo é muito
importante para a gente entender a especificidade do momento presente.”
Em um sentido geral, Silvia Adoue
interpreta que as reivindicações estudantis tendem a esse sentido: demanda de
democratização das decisões sobre os rumos da educação e resistência às medidas
que preparam o sistema público de ensino para a “privatização fatiada”. No
avanço das lutas, a educadora compara: “Muitos estudantes que levam adiante
esse movimento eram crianças em 2013, ainda que alguns tenham participado. A
passagem para a ação no controle do espaço da escola, anteriormente de
alienação, amplia os horizontes do pensamento, a confiança na própria
capacidade de dirigir, de serem protagonistas. Pode-se, sim, falar numa nova
geração de militantes aprendendo a se articular. Eles parecem ter noção da
necessidade de ações coordenadas sem perder o enraizamento. Há uma diferença
com a outra geração de militantes: o protagonismo das mulheres. Isso dá às
lutas uma radicalidade maior, porque às pautas do momento se agregam valores de
emancipação antipatriarcal”.
Democracia versus repressão
A violência física para convencer
os estudantes a abandonar sua luta não foi usada apenas por policiais. Em
inúmeras escolas, professores e diretores foram denunciados por agredir
adolescentes ou mobilizar vizinhos na tentativa de retomar as unidades de
ensino. Em um dos casos mais extremos, o diretor da Escola Estadual Deputado
João Dória, na Zona Leste de São Paulo, Ranieri Ribeiro Rabello, convocou um
grupo de homens munidos com martelos, correntes e canos para retomar a escola.
A ação foi filmada por um aluno de 17 anos que foi agredido no rosto com uma
corrente por Rabello. O caso teve registro no 50º Distrito Policial e o diretor
foi afastado de sua função pela Secretaria da Educação do Estado.
O educador Allan da Rosa resume o
que considera como as necessidades mais profundas reivindicadas pelos
estudantes: “Eles querem mais diálogo na condução da política pública de
educação e na tomada de decisões internas de cada escola. Têm fome de didáticas
e pedagogias que superem o tédio. Estudantes dizem não aguentar mais que toda
aula seja o mesmo blá-blá-blá de um professor falando sozinho em frente à lousa
sem mostrar o encanto da matéria e do conhecimento que trata. Estudantes
desejam que, da cozinha ao pátio, dos banheiros aos jardins, a escola toda seja
um espaço de ampliação e partilha de conhecimento, de criação e reflexão sobre
sua vida e nosso cotidiano, história e sociedade. Nas periferias há uma
efervescência cultural que tanto luta e anuncia temas indigestos aos poderosos
quanto já apresenta também a contradição entre a posição de currais eleitorais
e o extremo ceticismo com movimentos sociais, em geral esculhambados ou
invisibilizados pela mídia graúda. Os estudantes de 2015 traçaram elos com
lideranças comunitárias e pais e mães de alunos que encamparam a luta de seus
filhos”.
Feminismo, aborto, drogas,
racismo, gênero, violência policial, encarceramento. As aulas e atividades
culturais dentro das ocupações trouxeram para muitos também o primeiro contato
com debates que lhes dizem respeito e não são abordados por seus professores.
Cauê Silva Albuquerque, de 17
anos, que cursa o 2º ano do ensino médio na E. E. Diadema, entende os debates
como importantes para “romper preconceitos na sociedade e entre os próprios
alunos, que, muitas vezes, julgam uns aos outros pela roupa ou música que
escutam”.
Com uma “mãe muito mente aberta”,
Beatriz Gonçalves Ribeiro, de 15 anos, também estuda na E. E. Diadema e afirma
já ter tido contato com a maioria dos debates apresentados: “Ela sempre me
levou a protestos como a Marcha da Maconha e a debates sobre feminismo”.
Sobre as aulas alternativas
ministradas nas ocupações, Beatriz avalia: “Eu achei muito massa. Já conhecia
os argumentos que os expositores usavam, mas foi muito bom ver as pessoas à sua
volta mudarem de opinião depois de ouvir os argumentos. Isso mostra que elas
podem aprender e entender que estavam erradas”.
Um movimento de organização
política horizontal exige para o futuro escolas com educação igualmente
horizontal. “Barrar reorganização não é exatamente a luta, ela é um reflexo do
modo como funciona nosso sistema de ensino, que ignora os estudantes e pensa as
escolas como empresas que precisam cortar gastos. Enquanto estiver funcionando
desse modo, nós vamos lutar. E agora que conseguimos essa união forte entre as
escolas, acredito que esse foi só o começo para uma transformação muito maior”,
promete sorrindo a jovem estudante Joana Noffs.
Cristiano Navarro e Luís
Brasilino
Cristiano Navarro e Luís
Brasilino são editores do Le Monde Diplomatique Brasil
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