quinta-feira, 12 de novembro de 2020

A vida pelo retrovisor


Omar dos Santos

Nasci na roça, ouvindo o murmurar do Ribeirão Buriti, 
Num rancho de pau a pique, coberto por palha indaiá, 
Feito à sombra refrescante de um frondoso ingazeiro, 
Rodeado por damas-da-noite, dálias e um mandiocal. 

Muito cedo, a vida me carregou para uma cidade, 
Mas meu espírito folgazão e ledo, teimoso que só, 
Continua por lá, voejando sobre o rincão querido, 
Bisbilhotando desarranjos trazidos pelo progresso. 

Tanto tempo passado e o olhar oblíquo e já avelhantado 
Esgravata, na caderneta amarelecida de minha memória, 
Tantas e belas, e doces, lembranças ali experimentadas, 
Em parelha, o grande rosário de outras tantas inventadas. 

Neste homem inacabado, mas quase em final de construção, 
Ainda vivem e revivescem, e acredito que seja para sempre, 
Sensações atempadas pela roda do tempo, o chofer da vida, 
Abaetando com doces alentos o eterno menino que persiste. 

Nos mormaços, homens sesteiam à sombra fresca das árvores, 
Mulheres e meninos aprestam o amanhã na comezinha labuta, 
Aqui, a passarada miúda faz um alarido com as sobras no chão, 
Na capoeira, cigarras adivinham a chegada do tempo de chuva. 

O ressoar das mós, o ruído da roda d’água e o troar do monjolo, 
O arrozal já emborrachando, esparramando-se perto do terreiro, 
O hálito da tarde que chega amornando a noite que cai serena, 
O pisca-pisca das estrelas amainando o negror do céu profundo. 
Do brejo, chega o dueto melancólico de um casal de três-potes, 
Lá da capoeira, se escuta a melódica anunciação da fogo-pagou, 
Logo ali no roçado, na palhada que rodeia a banca de bater arroz, 
Os vigilantes e desconfiados quero-queros colhem sobras caídas. 

A brisa fresca que sopra pra longe a prosa animada dos vizinhos, 
Temperada com café e quitandas assadas em forno de cupinzeiro, 
Amigos que vêm guiados pelo facho luminoso dos lampiões a gás, 
se aboletam nos madeiros dispostos no chão batido do avarandado. 

A meninada a caçar vagalumes pelos verdes pastos em frente: 
– “Vagalum tum tum seu pai tá aqui, sua mãe também”.
Pula carniça, pique será, cobra cega, caí no poço, adivinhas... 
– “Boa noite gente! É hora de dormir. Meninos... já pra cama!” 

Nas noites de Lua Cheia, a campina se tinge em tons azulados 
Até que a Estrela D’alva inaugure a frescura da alvorada rompida. 
A vida acorda o mundo: mulheres, homens, meninos e bichos, 
Para mais um dia inteiro quarando ao sol e o suor a correr na testa. 

Surgida a manhã, ao pouso d’olhar atento, vêm assentar na retina 
Os reflexos do sol passados pelos diamantes múltiplos facetados, 
Urdidos com lágrimas congeladas pelo frio da frígida madrugada, 
Caídas sobre róseos e fulgurantes cabelos das bonecas de milho. 

À beira da velha estrada empoeirada, depois da curva da capelinha, 
A chuva dourada do imponente Ipê Amarelo, extasia passantes dali. 
Na várzea mais distante, dispara o coração no peito dos caminhantes, 
A estonteante beleza azulada do jacarandá-mimoso coberto de flores. 

Imponentes, as palmeiras Buriti, com sua lindeza e elegância singelas, 
Jogando suas esvoaçantes cabeleiras aos amenos afagos do vento, 
Urdem arranjadas graciosas alamedas, que pegam o Ribeirão no colo 
E o levam a seu destino, o Grande Rio, que o levará ao mar longínquo. 

Não sei como e nem o porquê, mas a vida, mansamente, pouco a pouco 
Tange do paraíso o menino que não só mora, mas que quer viver em mim, 
Carregando para cada vez mais distante do frescor das manhãs risonhas, 
das diáfanas e fagueiras tardes e do silêncio das deleitosas noites do sertão; 
Coisas que aqui na cidade, só existem na televisão ou pendurada na parede.

 

                                                                                  Omar – Primavera, 2020.


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