Com derrota de Trump, Brasil precisa fazer correção de rumos sem mais perda de tempo e prestígio
MARCOS DE AZAMBUJA
Ilustração: Carvall
Em 2016, Donald Trump mostrou que era um vencedor mesquinho e rancoroso. Agora, em 2020, mostra que é um perdedor mesquinho e rancoroso. A vitória não lhe inspirou grandeza e generosidade, e a derrota não lhe ensinou humildade e sabedoria. É um homem perigoso e que, por temperamento e convicção, tem uma relação desconfortável e frágil com a verdade, com a decência e com os valores democráticos.
Não causou apenas danos a seu país, cuja estatura internacional diminuiu. Contagiou outros com o vírus de seu populismo autoritário e seu desprezo pelas grandes causas de seu tempo: a proteção do meio ambiente e o reforço dos direitos humanos. Se não tivesse sido agora afastado do poder teria sido possível imaginar que mais quatro anos de sua administração poderiam ter causado danos talvez irreversíveis para uma ordem internacional liberal que procurou, por muitos caminhos, desconstruir.
Não consigo colocá-lo com naturalidade em algum ponto da linha de pensamento político tradicional que se estende da esquerda à direita. Trump não é um conservador de moldes clássicos, e suas posições, impulsivas e teatrais, parecem antes a consequência de considerações táticas do que reflexo de um pensamento estruturado. Não quero conferir a seu oportunismo qualquer rótulo que sugira alguma forma de respeitabilidade intelectual. Isso não o torna menos perigoso como um operador inescrupuloso e audacioso.
A eleição americana que acaba de se realizar mostrou que a democracia norte-americana guarda suficiente vitalidade para afastá-lo legalmente do poder pela força dos votos sem lhe dar a oportunidade de um segundo mandato. A vitória de Biden aconteceu, entretanto, por uma margem mais tênue do que as pesquisas antecipavam, e fica a preocupação de que, apesar de tudo, 71 milhões de eleitores viram em Trump e em sua promessa o caminho a ser seguido. Não é pouca coisa.
Ao fazer sobre ele o mais severo julgamento, não devo também esquecer que seus eleitores tinham muitas e boas razões para se sentirem ignorados ou excluídos. A Guerra Fria terminou sem que aquela brilhante oportunidade histórica fosse bem aproveitada. A derrota do comunismo não levou o campo vitorioso a procurar, com empenho, novos caminhos para aperfeiçoar o desenho das sociedades democráticas. Pelo contrário: valorizou-se o unilateralismo em detrimento do multilateralismo; cresceu a arrogância dos vencedores e a escala da corrupção e acentuaram-se ainda mais as disparidades de renda e oportunidades entre uma pequena minoria e grandes contingentes que se sentiram marginalizados.
A isso se somou, especialmente nos Estados Unidos mas também na Europa Ocidental, o temor provocado por uma nova dinâmica migratória, a percepção da perda de empregos e competividade para potências emergentes e o medo de que o eixo do poder se deslocasse, de forma rápida e inexorável, em direção a Ásia e, em particular, em favor da China. Trump soube explorar esses temores e preocupações. Mas foi, finalmente, sua insensibilidade frente à pandemia que deu o empurrão que faltava para que ele perdesse a Casa Branca, contrariando a tendência quase que invariável que favorece o ocupante do cargo na luta por um segundo mandato.
Nos dois meses e pouco em que Trump continuará a ocupar a Casa Branca, haverá espaço e oportunidade para que cause ainda grandes estragos. Pela via judicial no desafio ao resultado das urnas, pela concessão de perdões presidenciais para os seus mais próximos e, talvez, quem sabe até para si mesmo. Não irá respeitar, suspeito, a liturgia da transferência construtiva do poder de uma administração para outra. Vai preferir deixar os ventos da desordem como herança para seu sucessor. Ainda nos reserva surpresas que consigo temer sem conseguir claramente prever.
Deixa órfãos aqueles líderes autoritários que o viam como inspiração. Orbán na Hungria, Kaczynski na Polônia e, sobretudo, Bolsonaro no Brasil. Erdogan na Turquia e Putin, na Rússia, embora afins em boa medida em estilo e vocação autoritária, tinham outras referências. Netanyahu em Israel mais usou Trump do que foi usado por ele. Não são tantos esses líderes que possam parecer uma tendência inevitável dos novos tempos. Também não são tão poucos que sua influência deva ser ignorada.
Desse grupo, Bolsonaro se destaca como aquele que expressou de forma mais subserviente uma admiração não crítica por Trump e procurou, de forma deliberada, usá-lo como modelo e referência. O Brasil é importante demais para que o governo Biden venha agora a tomar atitudes que causem prejuízo a eles e a nós. Mas creio que a política exterior e a política ambiental do Brasil vão ter que voltar a expressar, não por pressões que caberia resistir, mas levadas pela inexorável natureza das coisas, aquelas posições e discurso de racionalidade construtiva que são as de nosso interesse, cultura e tradição. Com os Estados Unidos regressando ao Acordo de Paris sobre o clima e agindo em questões de direitos humanos em maior sintonia com as forças vitoriosas nas recentes eleições, certas posições recentes brasileiras em foros internacionais ficam ainda mais difíceis de serem defendidas e devem ser abandonadas. O nosso isolamento, tanto no âmbito regional quanto no mundial, ficará ainda mais evidente e oneroso.
A correção de nossos rumos pode e deve ser feita sem mais perda de tempo e prestígio. O nosso discurso deve ser revisto e alguns votos reformulados. Não é trabalho difícil para uma diplomacia profissional e tudo pode ser feito com umas poucas substituições de atores que ficaram comprometidos, de maneira irremediável, com o que está sendo descartado. Para o Brasil, haverá a satisfação do retorno ao que somos, e, para a sociedade internacional, o prazer de nos ter de volta como atores racionais e construtivos. Dessas eleições do dia 3 de novembro nós também podemos sair vencedores ao recuperar uma autonomia comprometida com atitudes de subordinação incompatíveis com o que somos e pretendemos ser.
O crepúsculo do poder costuma ser atenuado por gestos generosos de quem se retira. A perspectiva passa a ser a dos longos prazos da história e do desejo de ser lembrado com afeto e respeito por quem permanece e por quem virá. Não vejo o presidente agora derrotado sabendo ou querendo desempenhar esse papel. Vai continuar a mentir e espernear. A boa notícia é que, com a derrota de Trump, estamos, enfim e simplesmente, chegando ao fim de um turbulento e inglório episódio.
MARCOS DE AZAMBUJA
Diplomata, foi secretário-geral do Itamaraty e embaixador em Buenos Aires e Paris. É conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais.
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