A nova cédula do Banco Central, de 200 reais, é apresentada oficialmente nesta quarta-feira. 02/09/2020. (Foto: REUTERS/Adriano Machado)
Por Eleutério F. S. Prado
(Publicado no site A Terra é Redonda)
Como se sabe, a crítica da Economia Política consiste num objetivo conjugado da apresentação dialética do sujeito automático na obra de Karl Marx O capital, o déspota sistêmico que rege o funcionamento do modo de produção capitalista e condiciona tanto as instituições como os comportamentos dos indivíduos na sociedade burguesa.
Essa crítica, como também se sabe, parte de uma diferença que foi indicada pelo próprio Marx numa nota de rodapé do primeiro capítulo desse livro monumental: a economia política clássica distingue-se porque “investiga o nexo interno das condições de produção burguesas”, enquanto que a economia vulgar visa apenas “o nexo aparente (…) oferecendo um entendimento plausível dos fenômenos”. Também se sabe que a economia vulgar foi consagrada como tal já nas últimas décadas do século XIX, pois se passou a considerar esse saber como ciência positiva por excelência.
A crítica marxiana, portanto, consiste, por um lado, em mostrar a aparente veracidade ou mesmo a falsidade das formulações da economia vulgar e, por outro, em retificar as teorias clássicas, eliminando as suas confusões, mas especialmente vinculando de maneira correta a forma e o conteúdo, a aparência e a essência das relações de produção capitalistas. Um elemento central dessa crítica, como atualmente se admite sem contestação, consiste em mostrar como toda essa cientificidade, vulgar ou não, cai no fetichismo da mercadoria, do dinheiro e do próprio capital. Não há dúvida, ademais, que esse modelo de crítica continua importante no século XXI, mesmo se se pode considerar que se tornou insuficiente.
A razão pela qual se tornou necessário ir além da crítica da economia política vem da necessidade de fazer uma crítica da economia tecnocrática, a qual ainda não existia como tal no tempo de Marx. Eis que a primeira foi substituída aos poucos, a partir do último quartel do século XIX, por uma cientificidade que se vale dos recursos do cálculo diferencial para criar um saber cada vez mais apropriado à governança do capitalismo.
Passou, assim, a se denominar simplesmente de Economia sob o argumento de que se constituía a partir de então como um saber positivo, altamente rigoroso, isento supostamente de orientações normativas. Entretanto, a supressão da qualificação de saber político dá-se apenas na aparência. O ocultamento de seu caráter de saber do interesse das classes e do Estado apenas favoreceu o desenvolvimento de um saber tecnocrático – o qual acabou se impondo, mas não já no final do século XIX e começo do século XX. De fato, adquiriu esse caráter só depois.
Desprezando o passado frutuoso dessa ciência, Stanley Jevons, por exemplo, declarou que, “se a Economia deve ser em absoluto uma ciência, deve ser uma ciência matemática”. Alfred Marshall, que também empregou o cálculo na construção da economia neoclássica nascente, relegando, entretanto, as formalizações aos apêndices, considerou que “o papel do raciocínio científico sistemático na produção de conhecimento assemelha-se ao que a máquina desempenha na produção de bens”. León Walras considerou que a teoria do valor de troca tinha de se inspirar na mecânica clássica com o objetivo de construir “uma ciência em tudo semelhante às ciências físico-matemáticas”.
Todos esses autores empregaram a matemática com o objetivo principal de formular uma teoria das decisões econômicas, de compra e venda de mercadorias em particular, saber esse baseado no papel dos incrementos marginais na maximização da utilidade ou dos lucros. Só depois, porém, é que a estrutura teórica assim construída se tornou um saber instrumental voltado para a política econômica. De qualquer modo, o homem econômico passou assim, já nos textos desses autores, a ser pensado como uma máquina computacional perfeita, autômatos que personificam de maneira ideal o ser humano que se tornou suporte nas tramas concretas da relação de capital. Esse homem, em última análise, resume-se num cálculo de otimização.
Uma coisa é certa, a matematização da economia política buscou desde o início se beneficiar do prestígio das ciências naturais que foram capazes de empregar métodos exatos no domínio do conhecimento da natureza, precondição para que esse domínio também se tornasse efetivo e extensivo na indústria. O efeito performativo dessa transformação foi evidente desde o princípio.
A economia pode almejar, assim, tornar-se parecida com as ciências “físico-matemáticas”, mesmo se a sua falta de rigor conceitual tenha ficado camuflada atrás dessa exatidão formal. A redução das utilidades dos diversos bens diferentes entre si, incomensuráveis em princípio, à uma medida abstrata de utilidade é, por exemplo, uma operação lógica que nunca foi esclarecida. No entanto, um enorme e pretensioso edifício teórico foi construído e lançado em cima desse abismo teórico. Como os gatos no desenho animado, ele se levanta e paira no vazio apenas porque não permite, dentro dele, que se olhe para baixo.
Desde o princípio também estava inscrito na matematização da Economia o seu futuro como saber tecnocrático que visa a governança das organizações privadas e estatais do capitalismo. Pois, a lógica matemática empregada na formulação da teoria econômica daí em diante será a lógica do algoritmo, da automatização dos procedimentos, da transformação do humano em máquina. E ela é evidentemente consentânea com a busca da eficiência e da eficácia, aparentemente dedicada à elevação do bem-estar social, mas que está voltada na verdade sobretudo à acumulação de capital. E esta, porque é regida por um princípio de desenvolvimento infinito, tem como contrapartida o esgotamento inexorável da natureza humana e não humana.
Note-se que governança é usualmente entendida como a maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos sociais e econômicos de uma empresa, de um aparelho do Estado e do sistema econômico como um todo. Ora, o propósito da governança consiste invariavelmente na automação dos procedimentos em geral, na automação dos comportamentos humanos e, assim, da própria existência social.
Pois, consiste na gestão das organizações em geral em prol da acumulação de capital. A governança em princípio, portanto, trabalha para produzir sofrimento e não prazer, vida ruim e não vida boa, ainda que o sistema que ela regula possa compensar parte dos sujeitos frustrados e permanentemente insatisfeitos que cria por meio de um consumismo compulsivo e desvairado.
A Economia contemporânea se apresenta como ciência positiva, ou seja, como um saber que busca um conhecimento sobre os funcionamentos aparentes do sistema econômico. E nesse sentido parece se adequar perfeitamente à noção de economia vulgar criada por Marx ainda no século XIX. No entanto, assim se oculta o seu verdadeiro caráter de saber normativo, ou melhor, técnico-normativo que trabalha no interesse central e dominante da reprodução das estruturas do capitalismo.
Em consequência, ela não aplica um saber neutro sobre um objeto que lhe é indiferente. Ao contrário, trabalha sempre com dois objetivos: primeiro, educar os atores relevantes na universidade, no governo e no setor privado para que passem a atuar, mecanicamente se possível, em conformidade com supostas necessidades de reprodução do sistema; segundo, para instituir normas regulatórias que estabelecem as condições dentro das quais esse sistema funciona.
No entanto, como bem se sabe os funcionamentos do capitalismo também não são neutros. Em primeiro lugar, porque privilegiam sempre as classes dominantes em detrimento das classes dominadas, as quais, entretanto, podem ser mais ou menos protegidas da insaciabilidade exploradora do capital – em benefício, em geral, do próprio capital. Ademais, mesmo no interior dessas grandes composições sociais, eles podem favorecer determinadas frações sejam das classes dominantes sejam mesmo das classes subordinadas. É por isso que o saber econômico está inexoravelmente atravessado por interesses; os economistas são sempre funcionários zelosos desses interesses mesmo que o neguem peremptoriamente com a finalidade de obter legitimidade para o saber que professam.
Mesmo o preceito metodológico de que o saber supostamente científico deve orientar e reger a prática utilitarista e tecnocrática é frequentemente violado pela Economia. Eis que é mesmo mais verdade nesse campo que teorias sejam construídas – adaptadas, moldadas – com a finalidade precípua de apoiar determinadas práticas previamente julgadas adequadas para atender certos interesses. E isto é permitido pela natureza dos modelos empregados em Economia.
Como as suas premissas, são em geral altamente irrealistas, podem ser arrumadas adequadamente ao talante do formulador tecnocrata, para obter determinados resultados. E estes, evidentemente, provêm por encomenda de certos interesses particulares, que muitas vezes se expressam na forma de dinheiro. É por isso que autores como Franco Berardi acusam a Economia de se apresentar como ciência, quando já deixara de ser, para se tornar uma prédica de interesses inconfessáveis.
E aqui é preciso dar um exemplo. O crescimento das dívidas públicas nos países de capitalismo avançado nas últimas décadas tornou-se um motivo de preocupação para os interesses financeiros que, como se sabe, dominam no capitalismo contemporâneo. Logo, os economistas do mainstream, Robert Barro, por exemplo, trataram de formular uma teorização “séria” para mostrar que os déficits públicos não estimulavam a expansão do sistema econômico. E que, portanto, deveriam ser evitados para não prejudicar o curso do crescimento econômico, cuja força supostamente vem do setor privado.
Deram-lhe um nome bonito a essa “teoria”: “teorema da equivalência ricardiana” e a apresentaram por meio de modelos matemáticos altamente sofisticados, os quais não são acessíveis à compreensão das pessoas em geral e mesmo dos economistas que não querem perder tempo com a escolástica da economia matemática. Segundo esse “teorema”, os déficits fiscais, mesmo quando financiados pelo crescimento da dívida pública – e não, portanto, por aumentos de impostos – seriam compensados rapidamente pela redução dos gastos do setor privado. Assim, o que um põe, o outro mais dinâmico tira, de tal modo que o efeito final pode ser bem desastroso. É então com base nesse tipo de “teoria” que os economistas mainstream costumam assustar os políticos com a exigência imperiosa de que eles devem optar pela austeridade fiscal e monetária.
Ora, essa proposição supostamente positiva não é sustentada por quaisquer dados históricos das economias capitalistas em geral. As estatísticas macroeconômicas mostram simplesmente que ela não é verdadeira [1]. No entanto, os economistas que formularam essa conjectura se basearam numa evidência imaginária: segundo eles, os agentes do setor privado formam expectativas racionais sobre o comportamento do governo: se hoje o setor público se financia por elevação do seu déficit, amanhã ele aumentará os impostos para equilibrar o seu orçamento; logo, a única conduta racional do setor privado é contrair imediatamente o seu dispêndio. Supõem, assim, que os agentes privados aprenderam essa lição não da experiência prática evidentemente, mas nos “tratados” que esses economistas altamente competentes escreveram com a esperança de ganhar um prêmio (ig)nobel de Economia.
Diante desse quadro, para aquele que aqui escreve, não é possível ter convivência democrática com os economistas que optaram pela Economia tecnocrática. Note-se que eles, em virtude da fragilidade de suas posições, costumam se comportar de modo extremamente arrogante. Ao contrário, é preciso criticá-los para que se contenham em suas práticas de ensino e de governança que, em última análise, minam a democracia e mesmo o bem-estar da maioria da população, assim como provavelmente o futuro da civilização.
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