Canção - Song (Foto: Mr. Fish)
Os poderosos impedem que aqueles que eles exploram conheçam quem eles são, de onde vieram e ignorem os crimes da classe dominante
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Artigo de Chris Hedges publicado em seu SubStack em 16/10. Traduzido e adaptado para o português por Rubens Turkienicz.
August Wilson escreveu 10 peças de teatro, fazendo a crônica da vida negra dos EUA no século XX. A sua favorita, ‘Joe Turner’s Come and Gone’ (Joe Turner Veio e Foi), se passa em 1911, numa pensão no Distrito Hill de Pittsburgh. O título da peça vem do “Blues de Joe Turner”, composto por W. C. Handy em 1915. Aquela canção refere-se a um homem chamado Joe Turney, o irmão de Peter Turney – que foi o governador do estado do Tennessee de 1893 a 1897. Joe Turney transportava prisioneiros negros, acorrentados em uma fila, ao longo das estradas que vão de Memphis à Penitenciária Estadual do Tennesse em Nashville. Enquanto fazia a sua rota, ele entregava alguns dos convictos – por uma comissão – aos fazendeiros brancos. Os prisioneiros que ele alugava aos fazendeiros trabalhavam durante anos num sistema de aluguel de convictos – escravidão, sob um outro nome.
Na peça de teatro de Wilson, Herald Loomis – um convicto que trabalhou na fazenda de Turner – chegou em Pittsburgh depois de sete anos de escravidão com a sua filha Zonia, à busca da sua esposa. Ele luta para lidar com os seus traumas. Ele encontra em uma pensão um prestidigitador chamado Bynum Walker, o qual lhe conta que, para enfrentar e superar os demônios que o atormentam, ele precisa encontrar a sua canção.
Walker diz a ele: É a sua canção, a sua voz, a sua história, que lhe dá a sua identidade e a sua liberdade. E a sua canção, Walker lhe diz, é o que a classe dominante branca busca erradicar.
Esta negação da canção de cada um é instrumental para a escravidão. O analfabetismo negro era essencial para a dominação branca no Sul dos EUA. Era uma ofensa criminal ensinar pessoas escravizadas a ler e escrever.Os pobres, especialmente as pessoas pobres de cor, permanecem rigidamente segregadas dentro dos sistemas educacionais. A retaliação contra a teoria crítica de raça (CRT – Critical Race Theory), as explorações das identidades LGBTQ+ e a proibição de livros de historiadores como Howard Zinn e escritores coo Toni Morrison são extensões desta tentativa de negar aos oprimidos a canção deles.
PEN America reporta que as ordens de mordaça educacional propostas aumentaram em 250% comparadas com aquelas emitidas em 2021. Os professores de escola e de universidades que violarem estas ordens de mordaça podem ficar sujeitos a multas, perda de financiamento estatal para as suas instituições, demissão e até indiciamentos criminais. Ellen Schrecker, a principal historiadora da era McCarthy ampla purga do sistema educacional dos EUA, chama estes projetos de lei de mordaças são “piores que o Macarthismo”. Schrecker, que é a autora dos livros ‘No Ivory Tower: McCarthyism and the Universities, Many Are the Crimes: McCarthysm in America’ [Nenhuma torre de marfim: o Macartismo e as universidades, muitos são os crimes: Macartismo nos EUA] e ‘The Lost Promise: American Universities in the 1960s’ [A promessa perdida: as universidades estadunidenses nos anos de 1960], escreve o seguinte:
A atual campanha para limitar aquilo que pode ser ensinado nas classes do ensino médio e das universidades é claramente planejado para distrair eleitores raivosos dos problemas estruturais mais profundos que obscurecem os seus próprios futuros pessoais. No entanto, este também é um novo capítulo na campanha de décadas para reverter as mudanças que trouxeram o mundo real para estas classes. Os políticos reacionários e oportunistas estão se juntando, em um estado após o outro, à campanha mais ampla para reverter a democratização da vida estadunidense dos anos de 1960. Ao atacar o bicho-papão da Teoria Crítica de Raça e ao demonizar a cultura acadêmica contemporânea e as perspectivas críticas que estas podem produzir, as atuais limitações sobre o quê pode ser ensinado colocam em perigo os professores em todos os níveis, enquanto que o saber-nada-ismo destas medidas coloca em perigo a todos nós.
Quanto mais cresce a desigualdade social, mais a classe dominante procura manter o grosso da população dentro dos confins estreitos do mito estadunidense: a fantasia de que nós vivemos em uma meritocracia democrática e somos um farol de liberdade e da iluminação para o resto do mundo. A meta deles é manter a subclasse analfabeta, ou apenas alfabetizada, e de alimentá-la com a comida-lixo [junk food] da cultura de massas e as virtudes da supremacia branca – incluindo a deificação dos homens brancos escravocratas que fundaram este país.
Quando são banidos os livros que dão voz aos grupos oprimidos, isto adiciona o sentimento de vergonha e indignidade que a classe dominante procura transmitir [às massas], especialmente com relação às crianças marginalizadas. Ao mesmo tempo, os banimentos mascaram os crimes executados pelas classes dominantes. A classe dominante não quer que nós saibamos quem nós somos. Ela não quer que nós saibamos sobre as lutas conduzidas por aqueles que nos precederam, as lutas que viram muitas pessoas serem incluídas em listas negras, serem encarceradas, feridas e mortas para abrir um espaço democrático e conseguir ter as liberdades civis básicas – do direito ao voto à organização sindical. Elas sabem que, quanto menos nós soubermos sobre aquilo que foi feito à nós, mais maleáveis nós nos tornaremos. Se nós formos mantidos na ignorância daquilo que está ocorrendo mais além dos confins das nossas comunidades e ficarmos encurralados num presente eterno, se não tivermos acesso à nossa própria história – quanto mais aquela de outras sociedades e outras culturas – menos seremos capazes de criticar e compreender a nossa própria sociedade e a nossa própria cultura.
W.E.B. Du Bois argumentou que a sociedade branca temia muito mais os negros educados do que temiam os criminosos negros.
“Eles conseguem lidar com o crime através das gangues de presos acorrentados e a lei dos linchamentos – ou, pelo menos, eles pensam que conseguem -, mas o Sul não consegue conceber nem a maquinaria, nem o lugar para o homem negro educado, autossuficiente e autoconfiante”, ele escreveu.
Aqueles que, como Du Bois, foram colocados em listas negras e levados ao exílio, aqueles que desvelam os nossos olhos, são especialmente mirados pelo estado. Rosa Luxemburgo. Eugene V. Debs. Malcolm X. Martin Luther King. Noam Chomsky. Ralph Nader. Cornel West. Julian Assange. Alice Walker. Eles dizem a verdade que os poderosos e os ricos não querem ouvir. Assim como Bynum, eles nos ajudam a encontrar a nossa canção.Nos EUA, 21% dos adultos são analfabetos e assombrosos 54% tem uma educação abaixo da 6ª série do fundamental. Estes números pulam dramaticamente para cima no sistema prisional dos EUA, o maior do mundo – totalizando estimados 20% da população prisional global – apesar de nós [EUA] sermos menos de 5% da população global. Na prisão, 70% dos presos não conseguem ler acima do nível da 4ª série do fundamental – deixando-os capazes de trabalhar apenas nos trabalhos que pagam menos e são trabalhos braçais depois que saem da prisão. Você pode assistir a uma discussão em duas partes do meu livro ‘Our Class: Trauma and Transformation in na American Prison’ (A nossa classe: trauma e transformação nas prisões estadunidenses) e sobre a importância da educação nas prisões, aqui e aqui.
Assim como Loomis, aqueles libertados da escravidão se tornam párias, membros de uma casta criminal. Eles são incapazes de ter acesso às habitações populares, são barrados de centenas de trabalhos, especialmente qualquer trabalho que exija uma licença, e lhes são negados os direitos sociais. Num novo relatório, o Bureau de Estatísticas de Justiça dos EUA (BJS – Bureau of Justice Statistics) estima que 60% dos ex-encarceirados e estão desempregados. Das mais de 50 mil pessoas libertadas de prisões federais em 2010, 33% não encontraram emprego algum em mais de quatro anos, e que em qualquer momento dado, não mais que 40% dos seus próximos estava empregado. Isto é conforme o planejado. Mais de dois terços são presos novamente dentro de três anos após a sua libertação e pelo menos a metade deles são reencarcerados.
Você pode ver uma discussão em duas partes sobre os numerosos obstáculos colocados contra aqueles que são libertados da prisão, com cinco dos meus ex-estudantes do programa da faculdade [na prisão] NJ-STEP aqui e aqui.
Os membros brancos da classe trabalhadora, apesar de serem frequentemente usados como tropas de choque contra minorias e a esquerda, são igualmente manipulados – e pelas mesmas razões. Também a eles é negada a sua canção; eles são alimentados com mitos de excepcionalismo branco e supremacia branca para manter os seus antagonismos contra outros grupos oprimidos, ao invés das forças corporativas e a classe bilionária que orquestraram a sua própria miséria.
Du Bois assinalou que os brancos pobres – politicamente aliados aos ricos proprietários de plantações sulistas – foram cúmplices na privação dos seus direitos. Eles receberam poucos dos benefícios materiais ou políticos da aliança, mas eles se regozijaram com os sentimentos “psicológicos” de superioridade que advinham de serem brancos. Ele escreveu que a raça “inseriu uma cunha tamanha entre trabalhadores brancos e negros, como provavelmente não existe atualmente no mundo dois grupos com interesses praticamente idênticos que odeiam e temem um ao outro tão profundamente e persistentemente, e que são mantidos a tanta distância que nenhum deles vê coisa alguma de interesse comum”.
A vida mudou.
Os pobres não fazem faculdades, ou, se o fazem, eles contraem dívidas estudantis massivas – as quais podem levar toda uma vida para serem quitadas. A dívida de empréstimos estudantis – que totalizam quase US$ 1,75 trilhões nos EUA – é a segunda maior fonte de dívidas dos consumidores, após as hipotecas imobiliárias. Umas 50 milhões de pessoas têm dívidas pendentes com empresas de empréstimos estudantis. Estas pendências de dívidas força os formados a se especializarem em temas que são úteis às corporações; isto é uma parte da razão pela qual os estudos nas humanidades estão murchando. Isto limita as opções de carreira, porque os graduados devem procurar empregos que lhes permitam quitar os seus robustos pagamentos mensais dos seus empréstimos. A dívida estudantil média de US$ 130 mil de um estudante de direito joga, intencionalmente, os formados em direito nos braços das firmas corporativas jurídicas.
Neste ínterim, as taxas para cursar faculdades e universidades subiram como foguetes. O custo médio de matrícula e taxas nas universidades nacionais privadas aumentou 134% desde 2002. O custo de matrícula e taxas para estudantes de fora do estado nas universidades públicas estaduais aumentaram 141%, enquanto o custo para estudantes do mesmo estado aumentou 175%.
As forças de repressão, apoiadas pelo dinheiro corporativo, estão contestando na justiça a ordem executiva de Biden para cancelar algumas dívidas estudantis. Um juiz federal no estado de Missouri ouviu argumentos de seis estados que estavam tentando bloquear o plano. A fim de se qualificarem para o cancelamento das dívidas, os indivíduos devem ganhar menos de US$ 125 mil por ano, ou de US$ 250 mil para casais e famílias. Os mutuários podem receber até US$ 20 mil se forem beneficiários de uma doação Pell Grant e até US$ 10 mil caso não tenham recebido uma doação Pell Grant.
A educação deveria ser subversiva. Ela deveria nos dar as ferramentas e o vocabulário intelectual para questionar as ideias e estruturas dominantes que dão suporte aos poderosos. Ela deveria nos tornar em seres mais autônomos e independentes, capazes de fazer os nossos próprios julgamentos, capazes de compreender e desafiar a “hegemonia cultural” – para citar Antonio Gramsci – que nos mantém escravizados. Na peça de teatro, Bynum ensina a Loomis como descobrir a sua canção; uma vez que Loomis encontra a sua canção, ele está livre.
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