Jean Seberg em Acossado de Jean-Luc Godard / Reprodução YouTube
Por LAURA MULVEY*
As mulheres em Godard ainda hoje são uma mina de ouro para a curiosidade feminista
No texto publicado em Cahiers du Cinéma, “Defesa e ilustração da construção clássica no cinema”, Jean-Luc Godard associa à beleza feminina ao cinema, quase que da forma ontológica: “Um belo rosto, tal como escreveu La Bruyère, é a mais bela das visões. Existe uma lenda famosa que diz que Griffith, emocionado com a beleza de sua atriz principal, inventou o close-up só para captar esse rosto com mais detalhes. Consequentemente, de forma paradoxal, o mais simples dos close-ups é também o mais emocionante. Nele nossa arte revela sua transcendência de maneira mais forte, fazendo com que a beleza do objeto significado exploda em direção ao signo. Os olhos enormes, semiabertos, denotando discrição e desejo; os lábios fugidios; tudo o que vemos nessa angústia é o desenho sombrio que eles implicam, e nesse reconhecimento vemos apenas as ilustrações que eles escondem. […] O cinema não questiona a beleza de uma mulher, mas dúvida de seu coração, registra sua perfídia (é uma arte, afirma La Bruyère, de toda a pessoa colocando uma palavra ou ação de maneira a provocar a mudança), vendo apenas seus movimentos”.[i]
Lendo essas palavras é impossível não deixar de pensar na beleza profundamente cinematográfica das atrizes de Godard, da traição despreocupada de Jean Seberg em Acossado (1960) e, mais forte que todas, Anna Karina com seu olhar lânguido para a câmera em O Demônio das Onze Horas (Pierrot, le Fou, 1965). A dicotomia entre superfície e segredo, artifício e verdade, é paradoxal. A superfície artificial da beleza feminina pode disfarçar um interior que pode ser desvelado apenas para revelar o perigo da mulher fatal. Mas a superfície artificial da ilusão cinematográfica pode disfarçar um interior, que, por sua vez, pode ser desvelado para revelar a beleza real de sua materialidade e seu potencial para analisar a realidade política.
A mudança de Jean-Luc Godard em direção a uma estética materialista no período militante do final dos anos 1960 foi acompanhada de uma mudança em direção ao marxismo. Durante seu período marxista, Godard reformulou as oposições superfície/segredo, beleza/decepção, que caracterizavam suas representações da mulher, em coerência com a luta contra uma sociedade capitalista, mercantilizada. É dessa luta que ele desenvolveu seu outro cinema, politicamente radical e esteticamente de vanguarda. No lugar de uma feminilidade do mistério, surgiu uma feminilidade de enigma, cujo artifício e ilusão poderiam ser esvaziados, em conjunto com o artifício e a ilusão do cinema e da sociedade de consumo.
Numa fase posterior, pós-marxista, o cinema de Godard dos anos 1980 abandonou o enigma e retornou ao mistério, longe da curiosidade e investigação, em direção a uma nova forma de reverência. Tais mudanças políticas afetaram tanto seu cinema quanto a representação das mulheres. As mudanças podem ser mapeadas através de seu engajamento doloroso, porém obstinado com o sexo, a diferença sexual e a feminilidade ziguezagueando pelo seu cinema e sua política. Por que Godard nos ensina a questionar esses sons e imagens?
Em Ave Maria (1982), Maria visita o médico da família. Antes de examiná-la e constatar sua virginal gravidez, o médico dirige-se para trás de um biombo para lavar as mãos, comentando alguma coisa que ela não consegue ouvir direito. A câmera situa-se num plano geral, enquadrando Maria sentada na mesa de exame, em roupas de baixo. Ela pede a ele que repita o comentário e a câmera é reposicionada no médico, em plano médio, que então afirma, aparentemente mais voltado para o espectador que para Maria: “sempre me indaguei sobre o que se pode conhecer de uma mulher e aí descobri que tudo o que você pode saber é o que os homens já conhecem: há um mistério ali”.
Diante da Virgem Maria, naturalmente Mistério. É como se Jean-Luc Godard tivesse lutado durante tanto tempo para romper a superfície que, neste filme, ele acaba por recuar para examiná-la com reverência, ainda que com certa ironia. Entretanto, ao fazê-lo, ele instala um conceito fetichista de beleza, suave e completo, no cinema, no corpo da mulher, e um conceito de natureza que inclui o que não se pode conhecer.
O cinema, o corpo da mulher, “natureza”. A estética que surge desta tríade é muito diferente da estética encontrada nas fases políticas de Jean-Luc Godard. Em meados dos anos 1960, no que pode ser definida como a fase Guy Debord,[ii] especialmente Uma Mulher Casada (Une Femme Mariée, 1964) e Duas ou Três Coisas Que Sei Dela (Deux Ou Trois Choses Que Je Sais D’elle, 1966) a tríade era, ao contrário, cinema, o corpo de mulher, sociedade de consumo. Em sua fase marxista (por exemplo, British Sounds, 1969, e Tout Va Vien, 1972), Godard tentou ir além do consumismo ao investigar o próprio processo de produção de mercadorias. O cinema, o corpo, a fábrica.
Embora tais tríades sejam necessariamente redutoras do ponto de vista conceitual, elas chamam atenção para um aspecto importante da estética godardiana, em que a mulher continua a desempenhar um papel central, a despeito de mudanças e alterações nas agendas políticas de Godard. Nos anos 1980, a relação significativa entre os dois primeiros termos se alterna de forma a permitir o aparecimento daqueles elementos que haviam contribuído para a enorme influência teórica de Godard nos anos 1960 e 1970, agora numa mistura diferente com Passion (1981), Prenome: Carmem (1982) e Ave Maria. Passion é um divisor de águas, momento em que as mudanças estéticas e prioridades políticas de Godard ganham forma. Carmem é um filme de transição, um filme de crise, que estabelece a distância existente entre Passion e Ave Maria.
Duas topografias diferentes sublinham a rede de ligações entre ideias, lapsos de significado, deslocamentos e condensações que se intercambiam nas tríades. Por exemplo, tanto o cinema quanto o corpo feminino erotizado e a mercadoria compartilham do atributo do espetáculo. Eles se reforçam e se superpõem numa série de analogias. Por outro lado, pode criar uma rede de interconexões, em especial na linha da metonímia, de forma a que a relação mulher e mercadoria sejam mais um alinhamento social do que uma analogia ou metáfora. Por outro lado ainda, na forma da prostituta, a relação da mulher com a mercadoria é análoga. Ambas se oferecem à venda no mercado; ambas têm de produzir uma superfície desejável; ambas têm de circular destituída de qualquer história além do momento de troca.
Em Duas ou Três Coisas Que Sei Dela, Juliette/Marina Vlady é uma dona-de-casa operária que se torna prostituta a fim de comprar bens de consumo para ela e sua família. Dessa forma, ela condensa, numa única figura, a analogia metafórica da mercadoria e a metonímia, o ato de comprar. Obviamente, ela também consome para produzir a superfície desejável, o “visual” que surge através de roupas e maquiagem, que, por sua vez, implica o poder de sedução de uma superfície erotizada, que implica algo escondido, um segredo, um mistério. Ao chamar atenção para a mercantilização da mulher, tanto nos anúncios do capitalismo consumista quanto, literalmente, na prostituição, Godard também chama atenção para a erotização da mercadoria.
Mais uma vez, uma superfície sedutora implica algo escondido. Os dois compartilham uma semelhança de estrutura, que pode também ser estendida ao cinema e seu investimento na superfície fascinante que esconde seus próprios mecanismos. E o cinema é ele mesmo, uma mercadoria que circula com sucesso através de seu poder de sedução, em geral contido na presença do corpo feminino erotizado na tela. A semelhança de estrutura cria um canal através do qual, processos de deslocamento podem circular e, neste sentido, relações metafóricas ou metonímicas são estruturadas por uma homologia fantasmática.
A homologia reforça movimentos de ideias e estabelece ligações profundas e subliminares entre figurações que, na superfície, não pareciam assim tão intrincadamente imbricadas. A figuração da feminilidade é central e o enigma feminino permite Godard sugira outros enigmas (estéticos, cinematográficos, socioeconômicos) da mercadoria. A homologação da superfície, e sua sugestão da “profundidade” fantasmática projetada por trás, canalizam ideias e imagens numa rede de deslocamentos e condensações intercruzados.
Surge aqui a questão da visibilidade. O exterior opaco, plácido e passivo de Juliette enquanto objeto sexual é justaposto a seus pensamentos interiores na trilha sonora, transmitidos somente à plateia e não às personagens, enquanto a voz de Godard, sussurrante, intermedia e comenta a ação na tela, questionando sua espontaneidade e autonomia. Na introdução de Duas ou Três Coisas Que Sei Dela, feita por Marina Vlady, ela, ou talvez (provavelmente) Godard, cita Bertold Brecht. A citação também cria uma ponte entre o desmantelamento brechtiano da “plenitude” do espetáculo, da função do cinema enquanto mercadoria para ser consumida, e a estrutura e função do fetichismo mercadológico na sociedade capitalista avançada. Embora a mediação seja possibilitada pela figura da prostituta (ela mesma também estrela de cinema, espetáculo e mercadoria), a preocupação primeira de Godard é com os aspectos fetichistas do cinema.
Se a fascinação com a superfície brilhante e acetinada da tela pudesse ser desmascarada para revelar o processo de produção aí escondido, o cinema seria desnudado de seus aspectos fetichistas. Em Jean-Luc Godard, este desejo de libertar o cinema em direção à complexidade espaço-temporal da referência intertextual, da interpelação direta, da autorreflexividade, da especificidade material, e assim por diante, é paralelo ao desejo marxista de desfetichizar a mercadoria, tornando visível, através de uma análise política, a especificidade de seu processo de produção. O materialismo de uma estética modernista encontra-se com o materialismo marxista em Brecht e, através deste, em Godard.
Em sua fase radical, o cinema de Jean-Luc Godard almejava reformular a fruição cinematográfica, tentando criar e interpelar uma plateia que ficaria excitada pela imagem, por sua especificidade cinematográfica e pela decodificação de seu significado. Já argumentei que o impulso de curiosidade pode ser uma resposta crítica ao chamariz do voyeurismo. O crítico tenta transformar imagens fascinantes em imagens enigmáticas e decifrar seu significado. Um contracinema tenta criar imagens que fascinam porque despertam a curiosidade e desafiam a plateia a decifrar significados.
Nesse sentido, a curiosidade gerada por um segredo, algo escondido e proibido, amplia-se para a curiosidade gerada por um quebra-cabeça, por alguma coisa que precisa ser desvendada. Imagens da mulher, por muito tempo associada à fascinação e ao enigma, ocupam o centro da tela. Agem como signos que, tal qual num quebra-cabeça, podem ser decifrados para revelar alguma coisa que previamente era incompreensível, uma fonte de mistério. Na imagem da prostituta, Godard submeteu o mistério à materialidade da sexualidade, da produção capitalista e, de forma implícita, do cinema.
Em duas cenas complementares, Godard usa a figura da prostituta para forjar outras cadeias de referências entre dois aspectos contrastantes do capitalismo e da sexualidade. Em Duas ou Três Coisas, as duas prostitutas são chamadas para a suíte do hotel de um homem de negócios americano. O cliente lhes pede para que andem à sua frente, uma com a sacola de voo da Pan Am e a outra com a da TWA enfiadas nas cabeças, enquanto ele as fotografa. O investimento erótico do americano em sua cara e poderosa câmera, bem como as mulheres cobertas pelos dois enormes logotipos, transformam a relação prostituta/cliente num ritual que celebra, de forma grotesca, a dependência do capitalismo americano diante da representação de seu poder fálico enquanto fetiche do prazer sexual, e funde mercadoria com sexualidade.
Na segunda cena de Salve-se Quem Puder (1979), a prostituta e outros empregados subalternos criam uma “máquina de sexo Heath Robinson” feita de gestos eróticos frios, impessoais, “taylorizados”, sob a direção do patrão, para seu proveito e satisfação. Enquanto a primeira cena gira em torno de imagens de consumo, a segunda imita a linha de montagem; enquanto a primeira explora o fetichismo da mercadoria, a segunda é uma caricatura das relações de produção que o fetichismo esconde.
Entretanto, a máquina de sexo é ela própria, a um só tempo, profundamente fetichista. Ela emprega os movimentos mecânicos sincronizados do robô através do qual o processo de produção – que de outra feita estaria muito próximo da exposição da teoria trabalhista do valor – pode mascarar seus segredos. Robert Stam descreve a cena da seguinte maneira: “Como um diretor de cinema (o patrão) pede movimentos precisos de seus atores […] Os participantes da orgia, como operários na linha de montagem, são reduzidos a movimentos, espasmos, gemidos e tremores bem definidos”.[iii]
Raymond Bellour e Pascal Bonitzer, da mesma maneira, chamaram atenção para a analogia. Bellour salientou que os fotogramas congelados de Salve-se Quem Puder privilegiam momentos particulares do filme e “impossibilitaram a pausa imaginária que a imagem necessita para satisfazer sua falsa plenitude”, e que eles geram “o renascimento da imagem, um impulso em direção a uma pintura-escrita liberada da ilusória plenitude imaginária prescrita pelo movimento de avanço da máquina”.[iv] Há também uma sensação de perda terminal, sugerindo que Godard, desta vez, não está assim tão envolvido na desconstrução da máquina-cinema, ou em sua liberação, mas, ao contrário, no registro do bloqueio destes processos. A imbricação do cinema, da fábrica e do corpo está ali, visivelmente em movimento, mas não significa nada mais além daquilo.
Fábrica-corpo-cinema. Últimos traços de um Godard analítico, politicamente radical, especialmente personificado na personagem de Isabelle Huppert, em ambos os filmes, esvaem-se em algum ponto entre Salve-se Quem Puder e Passion. Em Passion estes três grandes temas que preocuparam Godard por tanto tempo, ocupam três espaços distintos que inundam um e outro através dos fios interligados da narrativa. Trabalho-sexo-som/imagem. A esfera da fábrica é representada por Isabelle Hupert como trabalhadora, e Michel Piccoli como patrão. A personagem de Piccoli é reminiscente do patrão/cliente na cena da máquina do sexo em Salve-se Quem Puder.
A personagem de Isabelle liga-se apenas àquela cena pela presença da atriz e pelo fato de que sua personagem está, no começo do filme, dentro da “esfera” da fábrica/máquina e sujeita ao poder do patrão. A “esfera” do cinema é representada pelo diretor, seu elenco, equipe e estúdio (“o mais caro da Europa”), onde rodam um filme, chamado Passion. A analogia fábrica/cinema continua, e acontecem várias superposições entre as duas esferas. A presença de Piccoli, embora aqui do lado da fábrica, traz consigo um traço espectral de seu papel como roteirista em: O Desprezo (Le Mépris, 1963), reescrevendo a Odisséia, mais ou menos como, neste filme, o diretor tenta recriar quadros dos grandes mestres. Tanto no comportamento quanto nos gestos sociais, as dramatis personae da equipe do filme ecoam a hierarquia da fábrica e a divisão do trabalho. Jerzy, o diretor é autoritário e peremptório no set de filmagem. Sophie, a assistente de produção, comporta-se muito mais como supervisores de fábrica; ela insiste nas regras, na importância da produtividade e no lugar da narrativa no cinema.
Patrick, assistente de direção, comporta-se muito mais como um chefe de seção; ele ameaça e admoesta os extras no sentido de “trabalhar”, arregimentando-os e supervisionando a administração do set, literalmente “caçando” as mulheres. A “esfera” do sexo/corpo é representada por Hanna Schygulla, esposa de Piccoli e dona do hotel, onde elenco e equipe se hospedam, e o mundo do cinema se sobrepõe ao da fábrica vizinha. Jerzy passa o tempo com Hanna em vez de dirigir o filme, obrigando-a a assistir um vídeo de seu rosto em close-up, gravado sob intensa emoção, quando ele tenta persuadi-la a entrar para o mundo do cinema e fazer um papel no quadro de “Rubens”.
Isabelle, a operária fabril, é demitida no início de Passion. Sua narrativa concentra-se primordialmente na luta que empreende pela readmissão ou compensação, e, assim, aparentemente, está em sintonia com o compromisso anterior de Godard para com a luta de classes. Sua personagem é física e emocionalmente vulnerável. Sua leve gagueira transmite uma falta de domínio da língua e dos discursos da cultura que a isolam do mundo do cinema e da arte. Mais para o final do filme, Piccoli capitula e a paga, exaurido pela tosse torturante que a impede de continuar a briga.
De repente, de operária, Isabelle é transformada em agente livre, uma empresária potencial, apta a decidir seu futuro, como se a narrativa houvesse decidido abandonar o significante da classe operária e sua luta, num gesto em direção a outro tipo de produção ꟷ a artística, ao invés da econômica ou política. O cinema, entretanto, permanece como ponto central de investigação e questionamento, mas o “como” agora se volta mais em direção a questões de criatividade, embora o econômico e o técnico continuem presentes.
O relacionamento entre Jerzy e Isabelle aponta para paralelos entre a luta desta com o patrão da fábrica e a luta daquele para reconciliar as exigências industriais de produção e distribuição com autonomia criativa. Num outro nível, existe um paralelo entre a gagueira de Isabelle (sua luta por uma fala articulada) e a perda de controle, pelo diretor, sobre o projeto fílmico. Ambos tentam achar uma forma de expressão fluente, mas encontram-se bloqueados.
O diretor deve buscar uma saída no filme sem ter de recorrer a um enredo, por exigência dos investidores, de Sophie e de uma expectativa geral. Ele está obcecado por sua inabilidade em dominar a iluminação no set. Quer recriar tableaux para, em seguida, filmar em três dimensões algumas das pinturas mais célebres da arte ocidental. Criadas pelo pintor numa superfície plana, com a ilusão de profundidade e movimento congelados por um segundo, estas imagens têm de mover-se do trompe-l’oleil da superfície do quadro ao trompe-l’oeil da superfície da tela. Neste processo, o diretor, tal qual Michelange em Tempo de Guerra (Les Carabiniers, 1963), tenta penetrar no espaço implícito dessas pinturas famosas, transformando-as em volumes para a exploração e participação da câmera.
Belíssimos tableaux são recriados em grandes cenários como labirintos, que canalizam e assim bloqueiam a fluidez do movimento de câmera. Um técnico com uma câmera de vídeo pode romper com esse trompe-l’oeil mágico ao mostrar seus processos de produção na tela. Enquanto a metáfora do “desnudamento” evoca a dicotomia superfície/segredo sugerida pelo fetiche, a metáfora mais apropriada aqui seria “penetração”, não atrás, mas dentro da superfície. A superfície agora possui um canal próprio atrás de si, desvinculado de qualquer modo de produção ou de algo que a ela se sobrepõe, numa celebração da fetichização da superfície como tal. A fuga do dilema do fetichismo, da necessidade radical de desfetichizar a produção cultural, é um signo do final da era da máquina, do fim da problemática do modernismo e da política que caracterizava a ambos.
O reconhecimento mútuo entre Isabelle e Jerzy é como um último traço que resta da condensação teórica dos processos de produção, no capitalismo e na arte, que caracterizava a estética anterior de Godard, desconstrutiva e brechtiana. Em Passion, as prioridades de Godard parecem mudar de rumo. Como se ele descrevesse a mudança de ênfase em seu trabalho, afastando-se do modernismo materialista em direção a uma exploração da arte dos próprios problemas da criatividade.
Nesta perspectiva, Isabelle representaria (até sua vitória) o passado com relação à própria guinada na trajetória política de Godard e a mudança geral do clima político dos anos 1980, quando se proclamava, nas palavras de André Gorz, o “adeus à classe trabalhadora”. Jerzy descreve a si mesmo como alguém que busca uma solução para os seus problemas com o cinema entre duas mulheres “tão diferentes como o dia e a noite”. O problema do cinema se imbrica no corpo feminino, numa reversão estranha daquelas preocupações dos anos 1960 com a desmistificação da sociedade do espetáculo e seu investimento na sexualidade.
Em Passion, Jean-Luc Godard começa a reconstituir o corpo feminino como um acessório cenográfico do cinema. Ao final do filme, num gesto que assinala seu afastamento do cotidiano da luta política, Jean-Luc Godard abandona o cotidiano em direção a um mundo “real” de ficção e fantasia. Uma jovem, dançarina e acrobata, que trabalha como camareira no hotel, é quem dá um final ao filme. Jerzy é o seu “príncipe” e ela, “princesa”, que aceita uma carona em seu carro quando ele a informa que aquele não é um simples carro, mas um tapete mágico que os levará de volta à Polônia. O filme termina com a fuga diante do espaço do cinema e da fábrica, enquanto que o espaço do corpo, significado pelo feminino, é incorporado na fantasia escapista típica de um conto de fadas.
Depois de Passion, Jean-Luc Godard realizou dois filmes consecutivos que tratam diretamente dos mitos do mistério feminino e do enigma do corpo da mulher. Estes também formam um díptico através do qual Godard retorna à sua velha obsessão pré-marxista com a dualidade do cinema: a magia versus a realidade. As duas mitologias do feminino são, diante disso, diametralmente opostas uma a outra.
Uma, Prenome: Carmen, retrabalha em seu principal fio condutor o romance de Prosper Mérimée de 1845, cuja heroína, graças ao sucesso da ópera de Bizet de 1875, rapidamente transformou-se num ícone da sedução e infidelidade femininas, além de uma exuberante sexualidade. A outra, Ave Maria, de forma ousada, reconta o mito da Anunciação e do Nascimento, e a história de Maria, ícone da cultura cristã referente à castidade feminina, submissão a Deus e espiritualidade. O problema do cinema uma vez mais encontra uma analogia ou uma representação metafórica no mistério da mulher. Os dois tipos de cinema, o cinema da magia/desejo (Carmen) e o cinema da espiritualidade/verdade (Maria), são retrabalhados através de metonímias relacionadas ao lugar ocupado pelo corpo feminino nos trabalhos anteriores de Godard e representam um momento de crise. Há uma súbita compreensão de que a criatividade depende do desejo, mas de que o desejo desvia a criatividade.
Em Ave Maria, Godard encontra um meio aparentemente paradoxal de restaurar o espiritual (a natureza não natural do Nascimento pela Virgem) para o cinema. Não é bem um novo caminho, mas sim um retorno a uma tradição espiritual de realismo cinematográfico e a alguns mentores que antecederam Godard: Dreyer, Rossellini, Bresson. Godard subordina a magia, implícita na crença do Nascimento pela Virgem, ao mistério e devolve seu cinema à natureza pelas mãos de Deus. A representação cinematográfica da natureza passa a ser misteriosa destituída cinicamente de sua aspiração realista anterior. Somente o conhecimento instintivo que Jean-Luc Godard tem das contradições inerentes ao cinema, seu profundo envolvimento com os debates a respeito da natureza desse meio, poderiam colocar tal paradoxo de forma tão precisa. E somente uma obsessão desesperada pelo enigma do feminino poderia invocar Virgem Maria como um paradoxo em sim mesmo. Assim, na medida em que os dois filmes polarizam o feminino numa oposição binária, o carnal e o espiritual, fantasmas de polarizações anteriores também retornam.
As atitudes dualistas, quase maniqueístas de Jean-Luc Godard estão presentes desde o começo de sua carreira como diretor, ou mesmo até antes, enquanto crítico, ao articular sua concepção de cinema. Como crítico, Jean-Luc Godard veiculou suas ideias através de nomes (“a crítica nos ensinou a amar tanto Rouch quanto Eisenstein”), constantemente reiterando uma oposição entre pesquisa e documentário (Lumière) e espetáculo ou ficção (Méliès); de um lado Rossellini, de outro Nicholas Ray.
Através destas oposições, Jean-Luc Godard tentava negociar o problema da verdade e da estética no cinema. Desde o início, isto é, desde a traição de Patrícia a Michel Poiccard em Acossado, a divisão entre a aparência sedutora feminina e sua essência enganadora, ou misteriosamente desconhecida, era um tema recorrente na obra de Godard. Não apenas mais uma figura dramática e sim uma metáfora para o problema filosófico mais profundo da divisão entre essência e aparência. Trata-se de um problema de inscrição. Ave Maria é um retorno a este problema, porém por uma estranha via mapeada por/através da questão da verdade enquanto presença do invisível e do espiritual manifestados por/através do corpo da mulher.
A homologia que Godard faz entre a sexualidade feminina, o artifício e o engano, possui, naturalmente, uma rica história na cultura ocidental; e existem inúmeras mulheres fatais que poderiam representar o mito que ele realizou com a história de Carmen, ao passo que somente uma mulher, a própria Virgem Maria, poderia representar o outro lado desta antinomia. No mito da Mãe de Deus, o mistério enigmático e perigoso da sexualidade feminina é exorcizado, mas só através de outro mistério, o poder de Deus. E, paradoxalmente, o mistério pode ser compreendido somente através de subserviência cega à crença irracional. A crença em Deus depende da crença na virgindade impossível da mulher, que representa sua “inteireza”, uma evisceração do “interior” psicologicamente ameaçador e fisicamente repugnante. É somente como “um todo” que a mulher pode retirar a máscara do artifício com a qual ao mesmo tempo engana o homem e oculta a verdade de seu corpo.
A simples polarização, contudo, compreenderá sempre a união, assim como a oposição, e os atributos que separam Carmen e Maria ocultam apenas superficialmente o “encaixe” subjacente entre elas. Ambos os mitos gravitam em torno de mistérios do corpo feminino e seu definitivo estatuto do não-cognoscível. Ambos os mitos simbolizam o ponto zero para Godard, no qual o mistério do feminino, profundamente destrutível em um nível, torna-se o limiar para e o significante de outros mistérios mais profundos. Existe uma completa fusão entre as propriedades enigmáticas da feminilidade e os mistérios das origens, particularmente as origens da criatividade sejam a criação da vida ou os processos criativos da arte.
Em ambos os filmes as forças da natureza têm uma presença sem precedentes no cinema de Godard. Embora a paisagem tenha sempre desempenhado seu papel em seu cinema, ao lado de citações e obras de arte (a viagem através da França em O Demônio das Onze Horas, o Mediterrâneo em O Desprezo, o passeio de bicicleta de Denise em Salve-se Quem Puder, o céu em Passion), nestes dois filmes a paisagem evoluiu para a natureza, e em ambos, encontra-se associada ao feminino.
Por outro lado, feminilidade não pode ser separada de performance, Nietzsche termina “Sobre o problema do ator” em A Gaia Ciência com as seguintes palavras: “Finalmente, mulheres. Pense em toda a história da mulher: não tem ela que ser antes e acima de tudo uma atriz? Escute os médicos que hipnotizaram mulheres; finalmente, ame-as – deixe-se ser hipnotizado por elas! Qual é sempre o resultado final? Elas ‘vestem algo’ mesmo quando se despem totalmente. Mulheres são tão artísticas”.[v]
É fácil ver a frase “mulheres são tão artísticas” no olho da mente de Jean-Luc Godard. Em que ponto a arte transforma-se em artifício e este em arte? O problema estético colocado pela natureza dissuasiva do ator preocupava Godard no espírito do comentário de Nietzsche: “Falsidade com boa consciência; o prazer na simulação explodindo como um poder que coloca de lado o chamado ‘caráter’ de alguém, inundando-o e às vezes o extinguindo; o anseio interior por um papel e uma máscara, por aparência”.[vi]
Em Uma Mulher Casada, Charlotte interroga seu ator/amante mostrando as mesmas dúvidas sobre como ler o seu ser interior através da aparência, que é usualmente projetada pelo homem sobre a mulher. Foi essa desconfiança na performance que empurrou Godard em direção à separação distanciada e visível entre ator e papel, característica de seu cinema no final dos anos 1960.[vii] Tal desconfiança se estende, então, à simulação e ficção do próprio cinema. A simulação da mulher, como a do cinema, é espetáculo, e o que pode apenas ser visto como uma superfície ainda esconde seus segredos.
Ao assistirem a Prénom: Carmen, muitos críticos surpreenderam-se com a semelhança de Myriem Roussel com Anna Karina. Como Virgem Maria em Ave Maria, Roussel transforma perfídia em pureza, transformando Marianne (O Demônio das Onze Horas) em Nana (Viver a vida), cuja sexualidade foi apagada. A beleza de seu corpo ainda pode fascinar a câmera, mas ela age como um condutor para um novo tipo de cinema, que pode transcender a materialidade. O homem e o cinema podem fantasiar a libertação diante da escravidão da sexualidade. Enquanto Carmen encerra o tema da beleza e da falta de fé na mulher fatal e, por extensão, no cinema de Hollywood, o tema do espiritual na natureza, representado por Maria, ressuscita o fantasma de outro cinema e o significado de Rossellini para Godard durante certa época.
Em entrevista para Cahiers du Cinéma, em 1962, ele disse: “Rossellini é algo mais. Nele um plano é belo porque é correto: na maioria dos outros um plano torna-se correto porque é belo. Eles tentam construir algo maravilhoso e se de fato isso é alcançado, pode-se ver que houve razões para assim fazer. Rossellini faz algo para o qual, de início, tinha alguma razão para fazê-lo. É belo porque é”.[viii]
O cinema é a única arte que, como Cocteau diz (em Orfeu, creio), mostra a “morte trabalhando”, frase reelaborada por Godard como “morte a vinte e quatro vezes por segundo”. Esta citação ressuscita outra influência menos óbvia sobre Godard: André Bazin, católico devoto, cofundador de Cahiers du Cinéma e seu editor de 1951 até sua morte em 1958. Bazin argumenta, em “A ontologia da imagem fotográfica”, que as origens da arte residem no desejo humano de superar a morte, mumificar o corpo e conquistar o tempo: “a preservação da vida através de uma representação da vida”. Na história da arte, essa “criação de um mundo ideal na semelhança do real” foi adulterada pela necessidade de ilusão, a “propensão da mente à dimensão mágica”, e foi somente Niépce e Lumière que redimiram a arte desse pecado. Bazin escreveu: “Pela primeira vez apenas a instrumentalidade de um agente não vivo intervém entre o objeto de origem e sua reprodução. […] A fotografia nos afeta como um fenômeno na natureza, como uma flor ou um floco de neve cujas origens vegetais ou terrestres são parte inseparável de sua beleza”.[ix] Ele compara a natureza compartilhada entre objeto e sua foto com a impressão digital.
Nas categorias semióticas de Charles Peirce, a impressão digital é um índice, o signo no qual o objeto deixa seu propósito vestígio não mediatizado, assim como a luz na fotografia transporta a imagem para o celuloide. Peter Wollen associa a estética do índice de Bazin a seu interesse pelo espiritual: “Foi o vínculo existencial entre fato e imagem, mundo e filme, que mais contou para a estética de Bazin, e não qualquer qualidade de similaridade ou semelhança. Daí a possibilidade – ou mesmo a necessidade – de uma arte que pudesse revelar estados espirituais. Havia, para Bazin, um duplo movimento de impressão, de moldagem e imprensa: o primeiro – o sofrimento espiritual interior – era estampado na fisionomia exterior, depois, a fisionomia exterior era estampada e impressa sobre o filme sensível” [x].
Aqui, o problema da relação entre interior e exterior, entre uma aparência e aquilo que ela possa ocultar, é apagado na medida em que a presença do divino é inscrita no mundo, na natureza e na alma, inscrita na face do homem. O cinema, por sua vez, encontra uma integração entre sua natureza mecânica e sua habilidade de registro. A cisão entre o cinema como uma ilusão de superfície e a mecânica de ilusão que o produz é apagada. Para Jean-Luc Godard, porém, há uma tensão difícil entre a imbricação do cinema com a beleza da mulher, e, portanto, sua perfídia, e a realização da estética de Bazin. Quando, em Viver a Vida (1962), Anna Karina, como Nana, chora ao ver o rosto de Falconetti em A Paixão de Joana d’Arc (1927), de Dreyer, Godard está prestando um tributo à imagem de Dreyer, no qual a espiritualidade da alma não se distingue da espiritualidade do cinema.
A Maria interpretada por Myriem Roussel poderia ter nascido da brecha entre Karina/Nana, inocente, mas uma prostituta, irrevogavelmente subordinada ao corpo e ao sexual, e a Joana de Falconetti, não contaminada pelo sexual no poder espiritual de Deus. Peter Wollen notou que Bazin viu nos filmes de Bresson “a revelação de um destino interior’ e, na dos filmes de Rossellini, ‘a presença do espiritual’ é expressa com ‘uma obviedade surpreendente’. O exterior, através da transparência de imagens despidas de tudo que não é essencial, revela o interior. Bazin enfatizou a importância da fisionomia, sobre a qual – como nos filmes de Dreyer – a vida espiritual interior era talhada e impressa”.[xi]
Raymond Bellour mostra que o índice é, ao mesmo tempo, o mais material e o mais espiritual dos signos. Em seu período marxista, Jean-Luc Godard buscou a realidade por meio do materialismo, em vez de um cinema que se estabelecesse na cúspide da ilusão e espiritualidade. Do ponto de vista materialista, a verdade está na revelação das relações de produção, sejam aquelas da sociedade capitalista ou as do próprio cinema. Nesse sentido, a beleza da imagem fílmica não vem do registro de algo misticamente inerente ao pró-fílmico, mas à inscrição da presença normalmente apagada dos processos de produção cinematográfico.
A presença da câmera, sua inscrição na cena, ilumina o agora do momento fílmico em sua indicialidade e, quando as personagens de Godard falavam diretamente para a câmera, não apenas o documentário transformava-se em ficção, mas aquele momento era então trazido para a verdadeira projeção do filme acabado, e a tela falaria, a cada projeção e naquele exato momento, ao espectador do futuro. Seria como se com o reconhecimento da presença do aparato do cinema tudo que é usualmente ocultado e polido no processo feitura de um filme pudesse desvendar o espaço secreto da verdade cinematográfica. A referência direta à câmera, portanto, revelaria o espaço obscurecido da plateia. As estéticas realistas de Brecht não são as mesmas de Bazin. Além disso, enquanto Godard foi capaz de desfetichizar o cinema e lançar uma luz sobre a imbricação fetichista entre a mulher enquanto aparência e a natureza dissimulada da mercadoria no capitalismo tardio, sua iconografia do feminino na tela nunca se libertou do polimento fetichista.
Acima descrevi Passion como um divisor de águas no trabalho de Jean-Luc Godard. As esferas do espaço narrativo, separadas em faixas temáticas, substituíram a estrutura em capítulos que Godard usou em Salve-se Quem Puder, é frequentemente também em filmes anteriores. Em Passion, a nova busca de Godard pela pureza, antes transmutada em materialismo, ganha a forma de uma divisão das diferentes partes narrativas constitutivas do filme em esferas distintas, quase autônomas. As divisões são ainda mais significativas em Prenome: Carmen. Carmen e o erotismo são uma função da imagem, enquanto Claire e a pureza materializam-se através da música. É como se os elementos do filme, normalmente apresentados juntos em determinada organização hierárquica, tivessem sido desenrolados de maneira a quem o som se aposse da imagem e esta venha a gerar a trilha sonora.
Prenome: Carmen é dividido em espaços diferentes de acordo com “fios” formais, em vez de narrativos ou temáticos. A música é tirada dos últimos quartetos de cordas de Beethoven. Um quarteto de músicos é usado com a intenção de mostrar uma performance informal e a “câmera”, espaço no qual os componentes do quarteto ensaiam, materializa-se, ao longo do espaço da história, a fim de dar uma imagem à música na trilha sonora[xii]. Jean-Luc Godard, em entrevista, definiu o som nesse filme como uma “escultura”.
Em Prenome: Carmen, a única personagem da esfera musical que tem contato com a narrativa é Claire (Myriem Roussel, que apareceria como Maria no próximo filme), embora o quarteto esteja presente, como de fato todo o resto do elenco, na cena final do hotel. Enquanto o céu e o campo criam uma trilha de som e imagem, estabelecendo um contraponto a Beethoven (e Claire), e agindo como uma extensão metafórica de Carmen. Da mesma maneira, a faixa da narração – ou a paixão pelo cinema – é personificada na presença do diretor na tela. Ele existe em um tipo de limbo, ocasionalmente sobrepondo-se ao espaço da própria história, dominada por “Carmen”. A participação do narrador na narrativa já existia na história original de Mérimée, mas a presença de Jean-Luc Godard também surge através da materialização de sua voz sussurrada, tão familiar das trilhas sonoras anteriores, e, mais uma vez, como reverso de suas aparições desconstrutivistas anteriores, como parte do processo de produção.
Em Prenome: Carmen, Jean-Luc Godard aparece como o diretor do filme, que se refugia em uma clínica (para doentes físicos e mentais) porque não pode fazer filmes. Não está propriamente doente. Ao contrário, a febre que necessita para ficar hospitalizado parecer ser a mesma que lhe falta para fazer filmes. Para o diretor, subentende-se, o cinema é um objeto necessário, sem o qual o mundo seria insuportável. Embora sua câmera especial esteja com ele, como um objeto fetichizado, ali no quarto do hospital ela não tem condições de sozinha, invocar o cinema. Quando a enfermeira vem para ver a temperatura, suavemente estimulando seu desejo pela febre, ele replica: “Se enfiar meu dedo em seu cu e contar até trinta e três será que conseguirei ter febre?”.
Na cena seguinte, Carmen aparece, por assim dizer como se fosse chamada. Diferente da enfermeira, que parece funcionar mais como um canal para o desejo, Carmen representa o feminino como que “para ser olhada”. E tal investimento, em sua sedução, cria o sentido de superfície, de resplendor e brilho, que teóricos dos anos sessenta e setenta associaram ao fetichismo de ambos, mercadoria e cinema, e que teóricos feministas associaram à especularização do corpo feminino. Carmen é sobrinha do diretor, a quem ele desejava desde quando ela era menina. Ela pede ajuda ao tio Jean para um filme que está fazendo com amigos, e assim marca o início do desejo, da ficção, da aventura e da fantasia.
Como a torre que começa a ruir no início de O Sangue do Poeta (1930) e desaba no final, colocando parênteses em toda a ação intermediária como subjetiva, fora do tempo e espaço, a enfermeira parecer colocar a ação narrativa em Pronome: Carmen igualmente entre parênteses. Quando o casado do tio Jean precisa ser remendado durante uma reunião da produção, a enfermeira reaparece como membro da equipe do guarda-roupa e permanece como constante e inseparável companhia, atuando (no sentido de ter um papel, com gestos e frases apropriados) como assistente de produção – um resíduo do papel de Sophie em Passion. No final do filme, tio Jean lhe diz: “Foram longos trinta e três segundos”.
A situação de Jean-Luc Godard é irônica, triste e asperamente autoparódica, como que para esvaziar as acusações que seu cinema mais recente provavelmente receberia, digamos, de setores feministas ou políticos. Ele retrata o dilema do diretor de cinema como incorrigivelmente dependente, masoquista, exploradora. Cinema e sexualidade fundem-se em uma condensação desavergonhadamente masculina, ao mesmo tempo apologeticamente impotente. A febre do diretor sobe com e através do corpo feminino, como se, no momento zero de criatividade, Jean-Luc Godard confrontasse com alicerces e nada encontrasse exceto o desejo pelo desejo. O cinema que se materializa lentamente, como um gênio masturbado para fora de sua garrafa, é, portanto, uma destilação, quase uma abstração ou um devaneio nos próprios limites da fantasia do cineasta. E o gênio aparece sob a forma de mulher fatal, Carmen, invocando também, de forma genérica, a primeira grande paixão de Jean-Luc Godard: o film noir.
Quando vi Prenome: Carmen, pela primeira vez, fiquei emocionada. Não por causa do filme. Foi a história ou a problemática do diretor que me emocionou. Foi, provavelmente, a situação do filme na própria história de Jean-Luc Godard, o salto da autorreferencialidade à nostalgia. O título final “In memoriam dos pequenos filmes” trouxe à mente a dedicatória à Monogram Pictures de Acossado. Há então, um duplo palimpsesto, uma camada desvendando seus primeiros trabalhos e, mais ao fundo, os traços do cinema de Hollywood, que fora seu ponto original de partida. A ponte ligando o passado ao presente ainda inscreve a presença dos assuntos que se cruzaram. Assim como Jean-Luc Godard representa o apogeu do cinema radical dos anos sessenta, também seu trabalho vem a levantar a questão do que acontece após a inovação.
O cineasta político, trabalhando dentro do ethos de uma conjuntura histórica particular, tem de trabalhar diretamente com o tempo – sua passagem e propensão – como um mar a varrer um movimento radical, uma vanguarda, deixando seus membros encalhados acima da linha da maré. O tema e imagens de “estar encalhado” são centrais em Prenome: Carmen. Aparece nos planos repetidos do mar. E a sensação do diretor de ter sido abandonado pelo cinema é reencenada de modo dramático quando José é definitivamente abandonado por Carmen. O próprio cinema ou, mais propriamente, a câmera de vídeo é usada apenas pelos jovens, sinteticamente, como que para mascarar sua tentativa de sequestro.
Se Pronome: Carmen marca um momento de crise na história de Jean-Luc Godard, também revela os elementos constitutivos essenciais de seu cinema mais recente, aquilo que permanece quando tudo o mais é retirado. No início dos anos oitenta, com Prenome: Carmen, a volta de Jean-Luc Godard ao cinema “como tal” ganha a forma de um retorno desesperador ao zero, ironicamente invertendo a excitação do retorno ao zero de 1968. O retorno ao zero é um retorno às origens do próprio desejo primal do diretor pelo cinema, e não ao ponto zero que investiga a circulação e significação sociais das imagens como, por exemplo, em Le Gai Savoir (1968). Sua luta é agora no sentido de representar o que faz a elaboração cinematográfica possível: seu controle obsessivo, romântico, ilusório sobre o diretor, e não uma luta brechtiana, modernista, para representar o processo de produção cinematográfica e o processo de produção de sentido.
Embora haja uma coragem obstinada no “autorretrato” de Jean-Luc Godard, como o diretor que vê o cinema escorrendo por entre os dedos, e um heroísmo poético em sua habilidade de transformar até essa alusão de perda em novos “sons e imagens”, a pergunta permanece: por que, em momento de crise, deveria ele retornar a tais sons e imagens específicos? E, acima de tudo, qual o significado da justaposição de Carmen sobre Claire/Marie como dois ícones polarizados do feminino?
Meu ímpeto de nostalgia ao assistir a Prenome: Carmen enfocava sobretudo O Demônio das Onze Horas. Este filme já fora uma versão da história de Carmen. Isto é, uma história de amour fou, na qual um herói essencialmente respeitável e cumpridor das leis é levado por uma mulher infiel, irresistível, a descer ao submundo e à vida do crime, fugindo da polícia. O final é a morte. Ferdinand mata Marianne e suicida-se; Dom José mata Carmen, que prefere a morte a perder sua liberdade, e, no original de Mérimée, como em Prenome: Carmen, Dom José/José entrega-se à polícia. A história de Carmen gravita em torno da separação de uma vida quotidiana e ajustada do herói em face de outra de um inferno de paixão, violência e aventura. A ponte que une os dois lados desse vão é o feitiço lançado sobre Ferdinand por Marianne, sobre José/Dom José por Carmen, sobre Michel O’Hara por Else Bannister em A Dama de Shangai (1948). Em todos esses casos a paixão do herói pela heroína é ambivalente.
“Carmen” volta a “Pierrot” não apenas através de referências quase subliminares, como a frase assobiada de “Au clair de la lune” ou a recusa repetida de José a ser chamado de Joe (“Je m’appelle Ferdinand/José”), mas através de um retorno ao tipo de cinema definido no início de Demônio das Onze Horas por Sam Fuller, que aparece como ele próprio: “Um filme é um campo de batalha. Amor. Ódio. Ação. Violência. Morte. Em uma palavra: emoção”. O roubo de banco encenado por Carmen desloca Joe – do lado da lei para o lado da criminalidade – assim como o confronto entre Marianne e os contrabandistas de armas de fogo desloca Ferdinand da posição de um respeitável membro da burguesia para o submundo.
O deslocamento é um efeito do cinema de Hollywood, que muito impactou os críticos de Cahiers. Ferdinand esquecera que era aguardado em uma festa com a esposa e mandara a empregada assistir Johnny Guitar (1954). Na ausência da empregada, Marianne aparece como babá. Assim como Sterling Hayden e Joan Crawford encontram-se de novo após cinco anos de separação, Marianne e Ferdinand reencontram-se e voltam cinco anos no tempo. Em ambos, O Demônio e Carmen, o amour fou leva à violência e ao caminho do crime, perseguição e morte (“Une saison en enfer”). A “emoção” é também movimento, imagens em movimento, movimento da narrativa, a aventura que toma conta de herói, e a fascinação exercida pela heroína, que junta todos os outros níveis de movimento. Ambos, Joe e Ferdinand, são abandonados na história quando já não são desejados pela heroína. Ferdinand é explorado no roubo final, e sua impotência sexual é combinada com sua impotência narrativa.
Para ambos os Josés (o Dom e o Santo) o desejo sexual é como um escravo emasculado do feminino, levando ao aviltamento, seja com a exaltação reconciliada, em Maria, ou com a agressão antagônica, em Carmen. Os dois homens são objeto do irracional e do desconhecível na mulher, e as duas mulheres são descritas como “tabu”. A referência em Prenome: Carmen é derivada das palavras de Carmen Jones (1954) de Preminger: “Você me procura e eu sou tabu – mas se você é difícil – eu é que lhe procuro, se eu fizer isso – você está liquidado – porque se o amo é seu fim!”. Em Ave Maria o anjo explica a José que “o tabu sobrepuja o sacrifício”. Os dois homens têm de suportar extremos de ciúme.
Carmen quer descobrir “o que uma mulher pode fazer com um homem”, Maria tem de ensinar a um homem a relacionar-se com o corpo dela sem sexualidade. Em cada filme a iconografia da personagem feminina central contrasta com a iconografia de uma personagem feminina secundária. Enquanto Claire, em Prenome: Carmen prenuncia Maria, e é distanciada do mundo carnal de Carmen pela abstração espiritual da música, Eva, em Ave Maria, é a presença da sexualidade. Ela é uma estudante tendo aulas sobre as origens do universo com um professor tcheco exilado, por quem se apaixona. Eva é mostrada primeiro sentada sob o sol tentando solucionar o quebra-cabeças do cubo de Rubik. Ela representa a curiosidade de seu homônimo, mas, ao mesmo tempo, o quebra-cabeça reflete o tema global do mistério e enigma que atravessa o filme.
Em justaposição ao enigma maior, a gravidez e o dar à luz de Maria, o mistério das origens da vida é discutido pelos estudantes. O professor mantém a visão de que o início da vida foi “organizado e desejado por uma inteligência resoluta” que interagiu com o acaso em dado momento para superdeterminar o curso da natureza. Para provar o ponto de vista do mestre Eva levanta-se por trás de Pascal, cobrindo seus olhos, e o guia, passo a passo, pelo quebra-cabeças do cubo de Rubik. Suas instruções: “sim… não… não… sim… sim… sim”, são repetidas por Maria ao guiar a mão de José por sua barriga, ensinando-lhe a lidar com seu corpo sem tocá-lo e a aceitar o mistério que a envolve.
Enquanto Carmen é associada ao movimento incessante do mar, às ondas na praia e à maré. Maria é associada à lua e às superfícies serenas da água, às vezes perturbadas por ondulações. A lua e a água são sintomas antigos do feminino (opostos ao sol e à terra), e a lua e a maré coexistem em um tempo cíclico de repetição e retorno, que rompe radicalmente com o tempo linear da história, por exemplo, e sua aspiração utópica em direção ao progresso. Godard associa o cíclico ao sagrado e ao feminino. A forma redonda da lua é reduplicada no atributo iconográfico de Maria, a bola que ela carrega consigo para o time treinar e que José tira de sua mão sempre que ele desafia sua castidade. A bola é redonda e completa, o círculo do feminino mais uma vez, impenetrável, sem qualquer orifício. Nesse sentido, a bola funciona como um objeto de rejeição, não no clássico roteiro do fetichismo, que nega e encontra um substituto para a falta do pênis da mãe, mas, em vez disso, uma negação de ferida, da vagina aberta, do buraco.
Em um dos planos mais complexos e belamente orquestrados de Passion, a câmera move-se entre o espaço da equipe do filme e o espaço do cenário, contrastando o trabalho envolvido na produção da imagem consiste em uma linda menina nua, que, a pedido do diretor, flutua espalmada em forma de uma estrela, em um lago oriental. À medida que a câmera se movimenta lentamente pela superfície da água, esta parece opaca pelo reflexo de pequenos pontos de luz como as estrelas ondulantes refletidas na abertura de Ave Maria.
Assim que a câmera se aproxima do diretor, seu amigo lhe pergunta para onde está olhando. Ele responde: “para a ferida do mundo”, e então sai e tenta melhorar a iluminação do cenário. O tema retorna em Prenome: Carmen, quando, após fazer sexo com Carmen pela primeira vez, José diz: “Agora eu entendo por que prisão se chama ‘o buraco’”. O corpo virginal de Maria, por outro lado, é perfeito. Em determinado ponto de seu relacionamento agressivo, tempestuoso, o anjo pergunta a José: “Qual é o denominador comum entre o zero e Maria?”. E ele próprio responde: “O corpo de Maria, idiota”.
O zero, como ponto mágico de retorno a uma nova partida, o círculo perfeito, o espaço do útero, o interior do corpo feminino que não é o buraco/vulva/ferida. Quando a habilleuse cose o buraco do paletó de Godard em Prenome: Carmen, ele parece sugerir uma afinidade entre a função da sutura no cinema (o elemento considerado como o maior responsável, durante a desconstrução dos anos setenta, pela falsa coesão do cinema convencional e do resultado por ele produzido) e o medo do buraco vazio, da ferida. O fetichismo da superfície cinemática lisa – e a superfície perfeita do corpo da mulher – reanimam, mas somente na medida em que “sei apesar de tudo…”
Maria separa a sexualidade feminina, a genitália feminina que representa a ferida, da reprodução, do espaço do útero. A foto mais frequentemente reproduzida do filme adquiriu por si só, algo como que um status de fetiche. A mão de José dirige-se à barriga de Maria, esticada em curva e enquadrada precisamente na altura da virilha e dos ombros. José aceita o mistério, em relação e através do corpo de Maria, de modo a que os enigmas da feminilidade e da sexualidade feminina sejam resolvidos e saneados numa oposição polarizada em relação ao corpo sexualizado de Carmen, que tem de ficar basicamente impreciso e desconhecido.
Em Salve-se Quem Puder, a prostituta Isabelle faz sexo com o cliente Paul enquanto seu monólogo interior é ouvido na trilha sonora. Constance Penley pergunta: “No momento em que é apresentada exatamente como o ícone inevitável da cena pornográfica de amor, através do close-up de sua face gemendo como garantia de prazer, Isabelle é ouvida pensando sobre as tarefas que tem pela frente”[xiii]. Jean-Luc Godard ilustra o vazio entre o visível e o invisível, um artifício externo que junta a crença a uma interioridade que exige reconhecimento. Esse ponto cego no conhecimento do homem sobre o prazer sexual da mulher reforça a ansiedade de castração provocada pela genitália feminina, separada, tal como está, dos órgãos de reprodução feminina, carecendo de qualquer “signo” de prazer.
Gayatri Spivak discute o problema que a sexualidade feminina apresenta para os homens, como aquilo que não se pode conhecer. Ela cita Nietzsche opinando sobre mulheres como sendo “tão artísticas”: mulheres personificam a si mesmas como que tendo orgasmo até mesmo na hora do orgasmo. Dentro da percepção histórica de que a mulher é incapaz de orgasmo, Nietzsche argumenta que a personificação é o único prazer sexual da mulher. No momento da maior ‘autoposse mais êxtase’, a mulher se autopossui para organizar uma auto-(re)presentação sem uma presença real para (re)presentar o prazer sexual”[xiv]. É fácil ver, como disse acima, a frase “mulheres são tão artísticas” no olho da mente de Godard. Em que ponto a arte transforma-se em artifício e vice-versa? A simulação da mulher, como a do cinema, é espetáculo, e o que apenas pode ser visto como uma superfície ainda esconde seus segredos; o que quer que o espectador queira ver, poderá ainda suspeitar…
Bem no final de Ave Maria, Maria senta-se sozinha dentro de um carro; seu rosto em close. Tira o batom da bolsa e passa nos lábios. A câmera aproxima-se até preencher o quadro com a forma de sua boca, que se torna escura e cavernosa, circundada por seus lábios brilhantes e recém-pintados. Ela acende um cigarro. O ciclo se fecha: a Virgem transforma-se em prostituta, o buraco volta a quebrar a perfeição do zero. A representação da mulher associa-se simultaneamente à sexualidade, à aparência cosmética; e ainda a devolve ao seu lugar entre o conjunto de objetos definidos por uma topografia de dentro/fora, aparente/escondido.
Tentei aqui mostrar como uma estrutura topográfica comum facilita a construção de analogias que, embora mudem com o contexto, são centrais na estrutura de ideias de Jean-Luc Godard. É como se a analogia talvez fosse possibilitada pela homologia. A imagem de um invólucro protegendo da visão um espaço ou conteúdo interior usualmente implica que, se o exterior se rompe, o conteúdo interno pode desagradar e possivelmente danificar. De um ponto de vista psicanalítico, a superfície protetora é uma defesa construída pelo ego por meio do fetiche. Nega o interior, mas porque sabe que o exterior é um exterior que reconhece o interior. A beleza feminina, em certo sentido, preenche essa função ao fixar o olhar em algo que agrada e impede a psique de trazer à mente aspectos desagradáveis do feminino.
Portanto, mesmo se Carmen traz morte e destruição, a figura feminina que a personifica traz à tela uma imagem de perfeição jovial. Essa imagem na tela é uma foto projetada, uma sombra, eviscerada dos fluidos do corpo, associados ao corpo maternal. Contudo, o cinema igualmente possui interiores menos visíveis e menos fascinantes do que a tela. É uma máquina que trabalha apenas com dinheiro, e que produz uma mercadoria para circulação no mercado, que precisa disfarçar a mão-de-obra que a criou, bem como seu próprio mecanismo incontrolável e barulhento enquanto aguarda ser plenamente superada pela eletrônica.
Embora o cinema de Jean-Luc Godard torne-se cada vez mais concentrada na superfície, o autor não retorna a um cinema de plenitude e coesão. Rigorosamente decompõe os elementos do som, imagem e narrativa. Seus filmes ainda desnudam o processo, em especial através da relação da trilha sonora com a imagem. Todavia, o esforço para articular a contradição social com a luta pela mudança não mais existe. Em Ave Maria, a antiga preocupação política com o trabalho e com a relação de produção da sociedade capitalista contemporânea é substituída pela preocupação com a criatividade e com a relação do espiritual com as origens do ser. Tais mistérios, em particular a natureza e a mulher, são penetrados somente por Deus.
Os mitos, clichês e fantasias que circulam em torno de Carmen e Maria constituem não um mistério, mas um “rebus” para a crítica feminista a Godard. Mas ao contar de novo essas histórias, Jean-Luc Godard mostra não apenas que elas têm as feições de Jano, mas em especial, quão reveladoras são para a cultura. Embora tentando decodificar uma misoginia arraigada, porém interessante, penso que o cinema de Jean-Luc Godard conhece suas próprias amarras e ainda está tentando, esforçando-se para dar o som e imagem a mitologias que assombram nossa cultura, embora já incapazes de a desafiarem. Para a curiosidade feminista ainda é uma mina de ouro.
*Laura Mulvey é diretora e crítica de cinema. Autora, entre outros livros de Cidadão Kane (Rocco).
Tradução: Luiz Antonio Coelho e João Luiz Vieira.
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