Sergio Moro e Deltan Dallagnol (Foto: Marcos Corrêa/PR | Pedro de Oliveira/ALEP)
Segundo analistas, além de intenções jurídicas e políticas, havia um interesse de impacto que ajudava financeiramente o governo estadunidense
Sputnik - A colaboração secreta e ilegal entre o Departamento de Justiça dos EUA e os procuradores de Curitiba gerou críticas, evidenciando uma possível interferência estrangeira nas investigações da operação Lava Jato.
Revelações de conversas vazadas no Ministério Público Federal do Paraná, que já são conhecidas pelo público, apontam para uma subordinação a interesses estrangeiros, especialmente dos Estados Unidos. Dez anos depois, a Sputnik Brasil conversa com especialistas que dão visões acerca dos impactos e interesses por trás do envolvimento dos EUA na operação que impactou a Justiça, a política, a economia e a sociedade do Brasil.
Lier Pires Ferreira, pesquisador do Laboratório de Estudos Políticos de Defesa e Segurança Pública da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LEPDESP/UERJ) e do Núcleo de Estudos dos Países BRICS da Universidade Federal Fluminense (NuBRICS/UFF), trouxe à tona questões controversas sobre a cooperação entre autoridades americanas e brasileiras durante a operação Lava Jato.
"Conversas vazadas no Ministério Público Federal do Paraná revelam que um dos aspectos mais controvertidos da Lava Jato foi sua subordinação a interesses estrangeiros, em particular dos Estados Unidos. Há que se lembrar que, anos antes, no governo [do presidente americano Barack] Obama, a presidente Dilma Rousseff e a Petrobrás haviam sido alvos de espionagem ilegal dos americanos", relembra o especialista.
As discussões se concentram em como essa influência impactou não apenas as dinâmicas políticas e legais internas no Brasil, mas também a economia nacional.
A Petrobrás, principal alvo da Lava Jato, aceitou pagar uma multa significativa, parte da qual seria destinada a um fundo de combate à corrupção. No entanto, a tentativa dos procuradores de Curitiba de gerir esse fundo foi barrada pelo STF. A ação teve consequências devastadoras para grandes empresas brasileiras, como Petrobrás, Odebrecht e JBS, resultando na perda de valor patrimonial, fatias de mercado e desemprego em massa.
Arquitetura jurídica montada pelos EUA - À Sputnik Brasil, Fábio de Sá e Silva, autor de estudos sobre a Lava Jato, pesquisador e doutor em direito, política e sociedade da Universidade de Northeastern (EUA), e professor associado de estudos internacionais e professor Wick Cary de estudos brasileiros na Universidade de Oklahoma (EUA), relembra que muitas das opiniões e inferências acerca da influência dos EUA na operação foram tratadas como teoria da conspiração, mas que houve, de fato, uma ingerência por parte do governo norte-americano.
"O que é um fato — e muito bem documentado — é que os EUA construíram toda uma arquitetura jurídica de combate à corrupção no mundo alinhada com os interesses nacionais e a Lava Jato se deu um pouco a partir dessa arquitetura. [...] De certa forma, os americanos fazem o que é bom para eles. O que me interessa questionar é por que os brasileiros — procuradores, juízes, veículos de imprensa — fizeram o que fizeram na Lava Jato, cujas consequências para a economia, o direito, a política e o próprio combate à corrupção no país são terríveis", indaga Silva.
Questionado sobre o interesse dos EUA na operação, Lier Pires destaca que, para além de intenções jurídicas e políticas, era um interesse de impacto que ajudava financeiramente o governo norte-americano.
"O interesse dos EUA direcionava-se prioritariamente à Petrobrás, cujos desvios de conduta impactavam investidores norte-americanos, já que as ações da petrolífera brasileira eram negociadas em bolsas americanas. Não por outro motivo, em 2018 a Petrobrás aceitou pagar uma multa superior a US$800 milhões [aproximadamente, R$ 4 bilhões de reais]. Como se sabe, cerca de 80% desse dinheiro retornaria ao Brasil. Os procuradores de Curitiba pleiteavam a gestão dessa verba, que seria destinada a um fundo de combate à corrupção. Quase tiveram êxito. Todavia, a manobra foi abortada pelo STF", vaticina Ferreira à Sputnik Brasil.
'Ninguém é inocente' - O especialista destaca, ainda, que a interferência dos EUA na Lava Jato revela a importância de Washington na política brasileira. Além disso, ressalta a falta de visão estratégica das autoridades judiciais brasileiras, criticando a abordagem que prejudicou empresas em vez de focar mais nas pessoas físicas envolvidas.
"O fato que me parece mais relevante é que a influência dos EUA na Lava Jato revela primeiramente a importância de Washington na vida política brasileira, como já denunciava estridentemente o ex-governador Leonel Brizola. [...] Ela traz à tona a total falta de visão estratégica das autoridades judiciais brasileiras, míopes em aspectos básicos do Geodireito e do constitucionalismo estratégico. [...] O fato é que as punições devem pesar mais sobre as pessoas físicas do que sobre as empresas", avalia.
Para Rafael Ioris, professor de história moderna da América Latina na Universidade de Denver, existia uma combinação realizada entre os agentes brasileiros e norte-americanos. Segundo ele, "ninguém é inocente".
"Os atores do governo dos Estados Unidos, especialmente, o departamento de Justiça, tinham uma narrativa e perspectiva de que a corrupção era um grande problema na América Latina e já haviam criado treinamentos, cartilha de como combater a corrupção na América Latina. [...] Havia um interesse [dos EUA] na operação. [...] Ninguém é inocente. Um começou a ajudar o outro [Brasil e EUA]", crava.
A queda de uma farsa - Rafael Ioris continua destacando que, embora a grande mídia norte-americana legitimasse o que a mídia brasileira veiculava, com o tempo essa narrativa começou a ser desconstruída. Afinal, as coberturas tanto brasileira quanto norte-americana tinham o objetivo de disseminar que a corrupção era o problema principal da América Latina.
"Aos poucos, especialmente depois das eleições do [ex-presidente Jair] Bolsonaro, muita gente começou a perceber que havia uma conexão entre o discurso antiestablishment, antipolítica que resultou na eleição de Bolsonaro [...] Houve uma certa preocupação com o resultado [...] e houve uma percepção de que precisávamos [o Brasil] investigar mais um pouco [a Lava Jato], [...] foi um processo com grandes danos para a economia brasileira", arremata.
A 'corrupção sistêmica' e o interesse por trás - À Sputnik Brasil, Larissa Liz Odreski Ramina, professora de direito internacional público da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora de Iniciação Científica da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da mesma instituição, ressalta que houve uma sistematização do que consideraram, à época, corrupção sistêmica, fazendo uso seletivo.
"Utiliza-se desse discurso da corrupção sistêmica de forma seletiva para atacar apenas governos, forças políticas e líderes do chamado progressismo latino-americano. Ou seja, aqueles que se opõem aos ajustes neoliberais ditados pelo Fundo Monetário Internacional. [...] A guerra jurídica foi utilizada contra todos os modelos alternativos às políticas neoliberais e essa narrativa da corrupção sistêmica teve o efeito de considerar a corrupção como um crime transnacional [...] da mesma forma que o tráfico de drogas e o terrorismo internacional são considerados — numa perspectiva militar como ameaças à segurança nacional dos Estados Unidos", evidencia.
Para o pesquisador Lier Pires Ferreira, há aspectos legais na cooperação judiciária entre EUA e Brasil que não podem ser ignorados.
"Algo diverso ocorre nas ações interventivas, ainda que não tenham caráter direto, i.e., político ou militar. Essas ações são ao mesmo tempo ilegais e ilegítimas, pois ferem a soberania nacional. A submissão brasileira aos interesses norte-americanos no contexto da Lava Jato não apenas apequenou o Brasil, mas feriu sua soberania e imagem perante o conjunto das nações. Além disso, como já dito, teve um imenso custo econômico, muito superior aos recursos financeiros que conseguiu repatriar. A Lava Jato é um exemplo de que um país soberano jamais deve prostrar-se aos interesses estrangeiros, ainda que travestidos de nobres ideais", sobreleva Pires.
O historiador Fábio de Sá pontua que essas tais formas importadas pela Lava Jato sequer são dominantes no direito americano.
"Por exemplo, Moro condenou Lula utilizando decisões de tribunais federais americanos que diziam que não é preciso ato de ofício para configurar corrupção. Mas essa não é a 'lei da terra' nos EUA; a Suprema Corte decidiu, em 2016, que para se punir alguém por corrupção é preciso identificar com clareza um ato de ofício correspondente (quid pro quo). Então o que vejo em tudo isso é um apelo aos EUA que serve para legitimar abusos, o recurso aos EUA como fonte de legitimação simbólica — o que funciona bem num país com elites e imprensa que padecem do complexo de vira-latas", afirma o professor.
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