sábado, 21 de setembro de 2024

“Identidade”, invenção colonial


É só a partir da invasão organizada dos “novos continentes”; do avanço do mercantilismo, por meio do tráfico atlântico de gente; e da hegemonia burguesa que entra na história da filosofia a noção de um sujeito acompanhado pela identidade cultural

por Douglas Barros
outraspalavras.net/

Título original: O que é identidade?

Por Douglas Barros

A identidade, mais do que uma porta de entrada para o mundo simbólico como pensada na psicanálise, dá sentido à ação do indivíduo. A esperança de encontrar uma identidade sólida impregna nossas escolhas organizando as possíveis identificações que faremos. Felizmente essa esperança logo se transforma numa ilusão perdida.

Felizmente por quê? Imagine se toda nossa experiência, nossa vivência e nossas transformações subjetivas ao longo de nossa existência fossem reduzidas a algo como uma identidade sólida e transparente. Imagine se você, que me lê, se enquadrasse naquilo que o olhar das pessoas projeta a seu respeito, ou se toda sua experiência se reduzisse aquilo que você uma vez acreditou ser… Um inferno, não?

Sim, a identidade é uma ilusão, mas achar que podemos encontrar algo de sólido na nossa experiência anima a relação que temos com o mundo/Outro, sempre marcada pelo fracasso desse intento. Ilusão não é erro, nesse sentido, mas algo absolutamente produtivo como o velho Freud pensava n’O futuro de uma ilusão ao refletir sobre o cristianismo.

Voltando à identidade: nada nos contentará, nossa completude identificatória não será realizada e mesmo assim não desistiremos de tentar. Abandonar, porém, a neurose da identidade sólida como intuito de nossas escolhas é abrir-se ao diferente em si e a diferença do outro. Como assim? Descobrir que não somos, mas estamos sendo é fundamental para livrar-se da ideia de ser algo em definitivo. Saber-se que se é como um rio que sempre muda e violenta as margens que o comprimem… eis a beleza de existir.

Há quem lamente à conclusão. O fato é que a identidade é uma objetificação do outro e de si: uma redução da experiência múltipla e diversa que cabe ao destino humano numa ideia pré-concebida de limites. Pelo retrovisor da história é possível concluir que a prisão identificatória tem momento certo de sua produção na história: o colonialismo. Você que me lê separe isso de lado e vamos juntos à digressão:

Pelo menos desde Platão esse papo anima a filosofia: como não levar em consideração o mito do andrógino presente no Banquete? Outro exemplo: em Hegel a busca ilusória da identidade é aquilo que impulsiona a ação da consciência. O alemão sabe, entretanto, que a passagem do tempo unida às suas diversas ilusões perdidas, na busca pela identidade, faz com que ela apreenda sua própria ilusão. Eis, a lição fundamental: não temos redenção. No fim não seremos idênticos a nós mesmos, mas um outro do que fomos. Se isso não é lindo, não sei o que é.

A lição fundamental que a filosofia traça, quando pensa na ilusão da identidade, é demarcada pelo fato de que justamente por não nos encerrarmos num processo estanque de identificação é que conseguimos atravessar a história, pensar criticamente à individualidade e escapar às amarras da tradição. A humanidade é sempre um excesso de algo não abarcado nem pela natureza nem por aquilo que a linguagem consegue apreender. Se não um erro do que chamamos de natureza, pelo menos algo que escapou do script.

Então, há uma tragédia constitutiva ao sujeito marcado pela presença da morte (finitude) e pela ausência nas suas ações de qualquer essencialidade ou natureza pressuposta. Eis algo sob o qual a psicanálise avança de maneira vertiginosa: não temos instintos senão pulsões que se organizam porque adentramos no mundo da linguagem. Uma vez aí… já era! O idêntico abre caminho para a alteridade.

O hipotético-leitor dessas linhas pode concluir comigo que há, portanto, uma dialética da identidade: nem essencial, nem abandonada como sentido de ação individual. Eu a nomeei como uma ilusão subjetivamente necessária que anima a investigação do que há no horizonte comum, talhando a identificação do sujeito no campo da cultura e na relação com a alteridade. Então, para além da identidade no nível subjetivo, é preciso pensá-la como identificação cultural

Uma vez que abandonamos qualquer essencialidade instintual por entramos no campo da linguagem, a formação da identidade cultural terá um peso fundamental. Ela vai implicar o reconhecimento de si no outro – através da partilha de um mundo em comum. Para apreender sua complexidade teremos que nos envolver com a própria ideia de cultura ligada à esfera da produção simbólica. Claro que nesse texto não teremos espaço para tal, se você que me lê for audaz o suficiente dê uma olhada na antropologia estrutural e depois a gente conversa.

Acima eu havia afirmado que o processo de identificação que projeta identidades estanques tinha tido um início histórico: o colonialismo. Agora voltamos a esse ponto. Meu intuito argumentar que a identidade é uma criação e não uma descoberta como pode soar à primeira vista. Uma criação que não vem da cabeça do filósofo, mas dos arranjos e manejos sociais necessários à administração.

Lembrei de um exemplo encontrado no livro de Zygmunt Bauman a respeito da descoberta da identidade nacional pelos poloneses. Nesse livro, ele nos narra uma história cheia de lições.1 A Polônia, sua terra natal, antes da Primeira Guerra eclodir, realizou um censo – algo, para nós, no século XXI, não só corriqueiro como necessário à administração pública. Ocorre, porém, que, para aqueles poloneses no início do século XX, a ideia de responder a um censo era algo completamente sem sentido.

O censo se debatia acerca da noção de nacionalidade. O curioso desse exemplo é que essa questão não era sequer inteligível aos poloneses, pois a Polônia era uma sociedade multiétnica. Os funcionários do censo, “instruídos a coletar informações sobre a autoidentificação nacional de todos os indivíduos do Estado polonês”2, não conseguiam obter respostas razoáveis para completar os dados. Curiosamente os entrevistados não entendiam o sentido da palavra nacionalidade e o mais paradoxal estava na resposta: “somos daqui!”.

Esse exemplo ilustra como o problema da identidade se coloca a partir da necessidade da autorreferência. A identidade, em seu nível cultural, como algo passível de ser pensado na modernidade, é uma ficcionalização imaginária baseada tanto na coerção externa como na autocoerção do indivíduo. Claro, há um real nessa ficção demarcado pela necessidade de reprodução da vida social e seu controle e isso na verdade mostra que a identidade cultural se efetiva pelo mecanismo de sociabilidade.

Aceitar a roupagem da identificação significa aceitá-la como uma organizadora de sentido à ação numa coletividade que reconhece o sentido atribuído pelo Estado. Eis o grande escândalo da história contada por Bauman; aqueles poloneses não se interessaram pela fantasia nacional recém-criada no seu território e, por isso, a resposta “somos daqui” diluía a ficção criada pelo Estado.

Esse exemplo mostra que a identidade é assumida como um problema na nova sociabilidade polonesa e serve para iluminar o resto. Ao promover a fantasia social da identificação, se tem, no interior da identidade, um núcleo duro do real3 – os limites da própria forma de reprodução social – e, por consequência, toda ficcionalização organizada pela identidade no campo da cultura é promovida pela produção do social.

É, por isso, que a identidade só pode ser pensada como um construto histórico: ela não é só uma ficção criada, mas ela recria a própria realidade que se torna também uma ficção, uma abstração real. Sendo assim, as identidades culturais resultam da síntese de múltiplas determinações pelas quais se estruturam a vida social.

Além de ser um resultado da construção imaginária, que organiza a sociabilidade, a identidade cultural é também a reafirmação da busca de uma unidade perdida por meio de um pertencimento individual na relação com o que é comum4. Se a identidade subjetiva é a porta de entrada à cultura, de maneira inseparável, a identidade cultural, historicamente organizada e experenciada pelo indivíduo, fornece o seu papel social.

No ritmo dissonante da história, os sistemas simbólicos de significação cultural que estruturam as identidades, erguem-se para logo em seguida serem substituídos e transfigurados. Isto significa que a identidade cultural é criação e transformação contínuas.

O problema surge quando se imagina que há uma sólida tradição capaz de sustentar essencialmente a identidade. Esse é o problema heideggeriano latente na construção de muitos teóricos atuais: pressupor a presença de uma essência perdida e a recuperação essencial do ser no homem. Uma construção de um problema dos anos 1920 que no fim deu em nazismo e que volta hoje como velha novidade.

O curioso é que só falamos de identidade cultural, só podemos nomeá-la, no interior de uma estrutura simbólica chamada modernidade. A identidade só se torna discutível quando o homem se apresenta como um indivíduo e a comunidade como uma sociedade; sendo assim, ela só se torna visível quando está em crise.

A identidade cultural, como forma de coerção e controle, do ponto de vista do desdobramento histórico é algo recente enquanto problema a ser investigado. Isto não significa que comunidades imaginadas não tenham se regulado, entrado em guerras e inclusive pensado o solo pátrio em tempos idos, mas essa identificação imediata, tributária e consanguínea à comunidade, eliminava a posição subjetiva tal como passamos a entendê-la na modernidade.

Podemos nos ver tentados, ao ler As confissões de Santo Agostinho, de notar ali formas embrionárias da individuação moderna5, mas essa impressão logo se dissipa ante a tendência agostiniana de diluir o eu na fé cristã. Basta ir até Cidade de Deus e ver o que acontece. Outro dia, aliás, vi meu companheiro de jornada, Vladimir Safatle, levantando essa hipótese sem dar essa volta no parafuso.

É só a partir da invasão organizada dos “novos” continentes, durante as “grandes navegações”, só depois do crescimento do mercantilismo, através do tráfico atlântico de gente, e só após o início da hegemonia burguesa, que entra na história da filosofia a noção de um sujeito acompanhado pela identidade cultural. O problema se retorce: se a identidade é uma ilusão produtiva da sociabilidade, o que acontece com aqueles que foram identitarizados pelos colonizadores e colocados na camisa de força da noção racial?

Esse é um problema para outros capítulos.

1 BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

2 BAUMAN, 2005, p.24

3 O real aqui é pensado como em Badiou: “se o acesso ao real é o ponto de impossível, tocar o real, alcança-lo, supõe que se possa transformar esse impossível em possibilidade.” (Cf. BADIOU, A. Em busca do real perdido. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2017, p.33). No sentido inventariado por Badiou, o real surge como aquilo que escapa a forma e, portanto, dá os seus contornos. O real como um infinito que escapa ao espaço finito.

4 A esse respeito ver: HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva e Guaira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.

5 SANTO AGOSTINHO. Confissões. In. ___________. Os pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1973.z




 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12