terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Internet: um serviço público


Marcos Dantas
blogdaboitempo.com.br/

A Internet está aí mesmo, usada por pessoas, empresas e governos, como se os computadores centrais da rede não estivessem nos Estados Unidos, administrados e controlados por agências do governo dos Estados Unidos.

Marcos Dantas, A lógica do capital-informação, 1996.

Dois fatos recentes vieram a reforçar os argumentos a favor da regulamentação das assim chamadas “redes sociais”: as declarações do sócio principal da Meta, Mark Zuckerberg, segundo o qual a corporação não iria mais “moderar” os conteúdos postados em suas plataformas Facebook, Instagram e Threads; e um absurdo vídeo, postado por um nefando deputado, atacando com agressivas falácias uma simples medida de rotina administrativa do governo que visava reprimir a sonegação fiscal e outras contravenções financeiras. A esses fatos, pode-se somar a decisão de uma “plataforma” de transporte urbano de oferecer seu serviço na cidade de São Paulo, desafiando posturas municipais e decisões tomadas pela autoridade legal e legitimamente constituída. Ela se acha acima dos poderes públicos e outros interesses sociais.

O debate sobre regulação da internet parece limitado quase apenas às “redes sociais”, centrado em algumas poucas palavras-chaves: liberdade de expressão, privacidade, “fake news“, discursos de ódio, entre outras. É basicamente do que trata o projeto de lei que pretendia regulá-las (PL 2630/2020), engavetado pelo presidente da Câmara dos Deputados. Porém, como demonstra a forte resistência das corporações digital-financeiras, proprietárias das plataformas sociodigitais, à regulação europeia, e também os recentes desafios de Musk e, agora, de Zuckerberg ao Estado brasileiro, esse enorme problema está a merecer tratamento muito mais amplo e muito mais profundo. Tratamento radical. É preciso ir à raiz do problema. Sair da “superestrutura” dos debates liberais sobre “liberdade de expressão” e temas afins, para a própria estrutura político-econômica, também geopolítica, que modela esse debate, define sua pauta, determina seus limites, estabelece, portanto, também os temas que não devem ser abordados, são como que proibidos – as agendas não-agendadas.

É deles que falaremos neste artigo.

De público a privado. Como é sabido, a internet se originou de um projeto do Estado militarista estadunidense que, com recursos do Pentágono, em 1968, encomendou a um grupo de cientistas projetar e construir uma rede de comunicações por computadores que fosse capaz de sobreviver às piores condições de uma guerra nuclear. Os primeiros enlaces começaram a funcionar no ano seguinte. Nasce a Arpanet.

Em 1983, 45 dos, àquela altura, 113 enlaces da Arpanet são dela desconectados para constituir a Milnet, rede de uso exclusivo das Forças Armadas. O que sobrou, passou para a gestão e supervisão da Fundação Nacional da Ciência (NSF), agência de natureza pública regulatória que, nos Estados Unidos, cumpre função similar ao nosso CNPq, de fomento ao desenvolvimento científico do país. Dela continuaria a sair o dinheiro necessário para prosseguirem as pesquisas, logo, também, ela assume poderes de orientar seus rumos estratégicos.

Entre as muitas soluções técnicas que precisaram ser inventadas, uma das mais necessárias e decisivas tratava do endereçamento: garantir que uma mensagem pudesse trafegar de um ponto a outro da rede, chegando ao destino certo sem degradação. O sistema de endereçamento foi desenvolvido pelo cientista John Postel (1943-1998). Os primeiros registros encontravam-se em seus próprios computadores no Instituto de Ciências da Computação da Universidade da Califórnia do Sul. Ele atribuiu a cada país um código de duas letras (exemplo: “.br” para Brasil) e para grandes segmentos de atividades, um código de três letras: “.com” para comércio, “.gov” para governo, “.edu” para universidades etc. Esses códigos, a partir dos quais, numa estrutura em árvore, se penduram os demais “nomes de domínio”, são conhecidos como “country code top level domain”, ou ccTLD e “generic top level domain”, ou gTLD.

Em 1988, o governo dos Estados Unidos institui a Internet Assigned Numbers Authority – IANA, por contrato entre o Pentágono e o instituto de Postel. Ele permaneceu à frente desse órgão público (“authority” = “agência” no Brasil) até seu prematuro falecimento em 1998. Em 1995, no governo Bill Clinton (1993-2001), auge da hegemonia ideológica e política neoliberal, a NSF decidiu terceirizar para uma empresa privada, a Network Solutions, a gestão e, por óbvio, comercialização dos registros da IANA. Postel e a comunidade acadêmica reagiram negativamente, dando origem a uma polêmica com reflexos no Congresso, no Pentágono e na Casa Branca. A solução finalmente encontrada foi a constituição de uma entidade privada, porém sem fins lucrativos, à qual a IANA se reportaria, que assumiria o desenvolvimento e evolução o sistema de “domínios” e demais sistemas técnicos necessários ao bom funcionamento da internet: a ICANN (Internet Corporation for Assigned Numbers and Names). Essa entidade foi constituída por mandato do Departamento de Comércio dos Estados Unidos. Noutras palavras, o governo estadunidense, sem abrir totalmente mão da última palavra se fosse o caso, privatizava de vez a gestão e desenvolvimento da internet, não só nos Estados Unidos mas mundo a fora. I can

Uma vez constituída, a ICANN chegou a um acordo com a Network Solutions (certamente vantajoso para ambas) que prosseguiu comercializando os gTLDs “.com” e “.net”. Em 2000, esta empresa foi adquirida pela Verisign, por USD 21 bilhões. Em 2023, a receita operacional da Verisign comercializando os “.com” e “.net” foi de USD 1,49 bilhão. Seu lucro líquido, de USD 817,6 milhões. Seu principal acionista é a Bershire Hathaway, com 13,34% das ações, um fundo gestor de ativos financeiros do qual o oligarca Warren Buffett é o principal acionista. Outros fundos que detêm mais de 36% do capital da Verisign são Vanguard, Blackrock, State Street, Morgan Stanley, Geode, mais alguns, nomes que também se repetem, em proporções semelhantes, no controle do capital da Alphabet, Meta, Amazon etc. Na era do capital-informação, vender letras tornou-se um grande negócio…

Moral dessa história: nos seus primeiros tempos, a internet era uma rede pública, ainda que nas condições da constituição democrático-liberal dos Estados Unidos. Em 1998, tempos áureos do neoliberalismo, ela foi privatizada. 

Uma outra história (anterior). A história das comunicações a longa distância por tecnologias eletroeletrônicas, ou telecomunicações, tem origem em meados do século XIX, com a invenção e evolução da telegrafia, primeiro com fio, depois também sem fio. Na década 1840, existiam várias empresas telegráficas na Inglaterra prestando serviços com diferentes padrões de qualidade e de preços. Sob o argumento de que o acesso à informação deveria obedecer a um mesmo padrão neutro, indiferenciado, de preço e qualidade, relativamente aos demais agentes do mercado, o Parlamento inglês, em 1868, nacionalizou as redes telegráficas. Nos anos seguintes, a França e outros países europeus tomariam decisões similares. Pode-se dizer que tem início aí a tradição de se considerar as infraestruturas de comunicação um serviço público, um direito de toda a sociedade, daí ser sua oferta e gestão uma obrigação do Estado, a ser prestada direta ou indiretamente.

Quando chegaram a telefonia e a radiodifusão, nos primeiros anos do século XX, seria uma tendência natural incorporá-las aos departamentos estatais de correios e telégrafos, como aconteceu na Alemanha, em 1923. Entretanto, a história do rádio, em seus primórdios, nos traz outras interessantes lições. Após a Primeira Guerra Mundial, na década 1920, a apropriação social da tecnologia de transmissão de som por radiofrequências se assemelhava a uma internet avant la lettre. Era fácil montar domesticamente um aparelho conhecido como “rádio de galena” e, com ele, milhões de pessoas (6 milhões nos Estados Unidos em 1927) podiam ouvir e emitir sons através das frequências atmosféricas. O acesso a essas frequências era absolutamente aberto e livre a qualquer um que se dispusesse a operar um aparelhinho doméstico de rádio.

Tamanha experimentação social chamou a atenção para o enorme potencial educacional, político, ideológico, também comercial da tecnologia. Em países com diferentes regimes políticos, democráticos ou ditatoriais, leis foram sendo adotadas para regulamentar o acesso às frequências hertzianas que passaram a ser entendidas como um recurso público. O objetivo dessas regulações, ainda que observando discrepantes interesses nacionais daqueles tempos entre guerras (décadas 1920-1930), era tornar o uso das frequências um meio a serviço da elevação educacional e cultural da sociedade em seu conjunto, propagação de hábitos sociais civilizados, também o fortalecimento da coesão e identidade nacionais. Assim, nas condições políticas e geopolíticas da época, a radiodifusão acabou monopolizada pelo Estado, dando origem às rádios e (depois) televisões públicas, a exemplo da paradigmática BBC britânica. Nos Estados Unidos, permitiu-se o uso comercial das frequências hertzianas por agentes privados, mas ainda como concessão pública conforme regras definidas pela Comissão Federal de Comunicações (FCC na sigla em inglês), estabelecida em 1927.

Haveria, porém, alternativa. Em 1927, Bertold Brecht (1898-1956) defendeu, num pequeno texto intitulado Teoria do Rádio, que o sistema fosse organizado para permitir maior participação dos “ouvintes” no processo produtivo de conteúdo visando “colocar a arte e o rádio à disposição de finalidades pedagógicas”.1 Para isso, a “radiodifusão”, além de “emitir” informações, deveria também “organizar a maneira de pedir informações”. Ou seja, os “diretores artísticos” dos programas agiriam como moderadores (para usar uma expressão muito atual), organizando e coordenando as intervenções dos radiouvintes. A radiodifusão seria um meio de efetiva comunicação, mas alguém responderia pela orientação e qualidade dos debates.

Por maiores que possam ser as críticas que façamos ao funcionamento real da radiodifusão publicamente regulada no mundo e, em particular, no Brasil – pois tal, por óbvio, depende das condições políticas inerentes às qualidades e defeitos das democracias liberais –, é inegável que o seu processo produtivo, aí incluído o modelo de negócios, é transparente e responsabilizável. Toda uma hierarquia profissional responde pela produção, hierarquia esta composta por pessoas formadas e treinadas para as suas diferentes tarefas, conhecedoras de seus limites, inclusive éticos, inseridas, por sua vez, em relações e compromissos sociais maiores e mais abrangentes, sejam os poderes reguladores, sejam valores básicos que estruturam o cerne da vida social civilizada. Pode não existir censura da parte dos poderes do Estado, mas sempre haverá autocensura (aquilo que Bourdieu chamaria habitus) da parte dos profissionais que programam, editam, roteirizam, falam diante de microfones e câmaras filmadoras. Se os poderes reguladores estão cumprindo o seu papel, ou se os valores civilizatórios estão, ou não, logrando intimidar, na presente quadra histórica, certas manifestações que deveriam ser inaceitáveis, isso seria assunto para além das dimensões deste artigo.

Os “portos seguros” das big techsA evolução institucional da internet seguiu caminho oposto ao da radiodifusão. E não deve sequer ser confundida com a teoria de Brecht. As consequências estão aí, à vista de todos…

Em meados da década 1990, congressistas conservadores estadunidenses começaram a se preocupar com a irresponsabilidade ética e moral, para dizer elegantemente, que se difundia através de uma internet na qual, porém, ainda não existiam “redes sociais” como viríamos a conhecer uns poucos anos depois. A conexão se fazia através de organizações que tão somente ligavam algum computador pessoal a uma rede da internet através de linhas telefônicas. Essa simples possibilidade estava permitindo que não pouca gente se achasse no direito de dizer em público (ou melhor, “vitualmente”) o que até então, quase sempre, só se conseguia dizer em estreitos ambientes privativos. Para “piorar”, a internet vinha viabilizando a criação e evolução de tecnologias que permitiam compartilhar arquivos de áudio e vídeo ou, na prática, possibilitavam a reprodução infinita e gratuita de peças musicais e audiovisuais protegidas por direitos autorais. A poderosa indústria fonográfica dos Estados Unidos vinha sofrendo pesados prejuízos por causa disso.

Projetos de lei começaram a tramitar no Congresso dos Estados Unidos visando combater a “obscenidade” e proteger a “propriedade intelectual”. Em 1996, foi aprovada uma nova lei de Telecomunicações, praticamente revogando a legislação vigente desde os anos 1920, que continha um capítulo sobre “Obscenidade e Violência”. Na sua Seção 230, esse capítulo estabelecia que os “provedores” (“providers“) de acesso à internet não podiam ser responsabilizados pelos conteúdos postados através deles pelos seus clientes. Essa seção da lei buscava garantir a “liberdade de expressão” dos usuários (punindo os excessos a posteriori, dependendo dos tribunais) e, ao mesmo tempo, isentar de problemas as organizações que prestavam o serviço de acesso. Esses provedores, àquela época, eram de fato neutros em relação aos conteúdos que por eles transitavam, assim como uma operadora de telecomunicações ou os correios são neutros em relação ao conteúdo das mensagens que, por cabos, torres ou nas costas dos carteiros, transitam pelos seus sistemas.

Já quanto à propriedade intelectual, o Congresso não deixaria o tema ser entregue às chicanas jurídicas. A Lei de Direitos Autorais do Milênio Digital de 1998 (DMCA) reafirmou que os “direitos intelectuais” são invioláveis, sendo criminosos tanto os usuários que consumam produtos “piratas”, quanto também todo aquele que desenvolva tecnologias ou sistemas capazes de violar esses direitos. Essas duas leis viriam a ter importantes consequências político-econômicas. Segundo  o especialista estadunidense Christian M. Dippon, a existência, hoje, de corporações do tamanho da Amazon, Alphabet, Meta e outras, muito deve ao abrigo desses dois “portos seguros”, como as definiu: a Seção 230 e o DMCA.  Ele adverte que se, no mundo, começarem a avançar leis ou regulamentos que anulem ou limitem os seus efeitos em outros países, a economia dos EUA poderá sofrer um golpe razoável. Segundo seus cálculos, os preços para os consumidores estadunidenses desses serviços subiriam; as receitas dos serviços de “nuvem” e de publicidade cairiam 7,8%; poderiam ser perdidos 425 mil postos de trabalho; e o PIB dos Estados Unidos poderia perder 44 bilhões de dólares, anualmente. “Os intermediários da internet são cruciais tanto para a economia doméstica quanto para as exportações dos Estados Unidos para o resto do mundo”, garante Dippon.2 É, pois, perfeitamente compreensível a declaração de Mark Zuckerberg, segundo o qual a Meta trabalhará com o governo Trump para “combater governos ao redor do mundo que estão atacando empresas americanas e as pressionando para censurar ainda mais”.3 Em 2023, 63,1% das receitas de USD 134,9 bilhões da Meta vieram de fora dos Estados Unidos, gerando-lhe um lucro líquido de USD 39,1 bilhões, distribuído entre Zuckerberg, Vanguard (8,5%), Blackrock (7,2%), Fidelity (6,2%) e ainda outros fundos também igualmente sócios da Verisign, e da Alphabet, da Amazon…  Está explicado porque a plutocracia digital-financeira do Vale do Silício aderiu em peso ao novo presidente dos Estados Unidos, exibindo-se vaidosa, como quê vitoriosa, nas fotos do dia da sua posse.

Brasil. Quando esses fatos vinham acontecendo nos Estados Unidos, também na Europa, no Japão, no Brasil e em outros países, o Estado e laboratórios universitários de pesquisa igualmente investiam no desenvolvimento de tecnologias visando construir redes telemáticas (palavra que saiu de moda). No Brasil, em agosto de 1984, a Embratel, então uma empresa estatal, lançou a Rede Nacional de Pacotes (Renpac) destinada a empresas e pessoas. Também distribuiu, entre os seus mais de 2 mil funcionários à época, microcomputadores domésticos conectados em rede que eles poderiam usar como bem entendessem.4 Esse projeto, denominado “Ciranda”, visava estudar qual poderia ser o comportamento cotidiano de uma “comunidade informatizada”. Experiências semelhantes também eram feitas na Suécia, na Espanha, no Japão, outros países. Eram protótipos de “redes sociais”.

Mas aí veio a redemocratização do País. Com ela, a “globalização neoliberal” redefine o nosso lugar na divisão internacional do trabalho: deveríamos renunciar a disputar a vanguarda da revolução científico-técnica em andamento, volver à economia primário exportadora. O capitalismo brasileiro aceitou seu destino de bom grado, e Fernando Henrique Cardoso encarregou-se de cumprir a tarefa. Nas telecomunicações, tratava-se de entregar para as grandes operadoras transnacionais de redes, muitas delas ex-estatais como a Telefónica de España ou Italia Telecom, a excelente infraestrutura brasileira, construída do quase zero a partir de 1965 (fundação da Embratel), e levada a todo o país nos 20 anos seguintes.

A essa altura, como acontecia no resto do mundo, a internet vinha entrando país adentro, sem pedir licença, através de iniciativas de núcleos acadêmicos ou de ONGs que se conectavam, logicamente através da infraestrutura da Embratel e seus enlaces internacionais, a provedores de acesso, nos Estados Unidos. Pareceria natural que a Embratel investisse no crescimento de sua oferta de serviços de acesso à internet. Mas o governo FHC já estava se movendo para privatizá-la. Seu ministro das Comunicações, Sergio Motta, em maio de 1995, baixou um ato administrativo conhecido como “norma 4” que interditou a expansão da Embratel para esse novo serviço. A internet, no Brasil, seria definida como “serviço de valor adicionado”, prestado sobre a infraestrutura de telecomunicações. Posteriormente, a Lei Geral de Telecomunicações, de 1997, que esquartejaria a Telebrás e entregaria a Embratel, com seus quatro satélites, para uma operadora estadunidense, confirmaria a separação entre telecomunicações, ainda um serviço público regulado, mesmo que prestado por operadoras privadas para tal autorizadas, e a internet total e completamente desregulada.  Exceto pela ICANN…

E agora? Ultrapassada a fase de experimentações sociais, nas décadas 1980-90, a internet começou a ser colonizada pelo capital fictício. Na virada do século, nascem e se expandem, em velocidade astronômica, alavancadas por especuladores financeiros que enxameavam no Vale do Silício farejando boas oportunidades de negócios, o Google, o YouTube, o Facebook, a Amazon, outras conhecidas plataformas sociodigitais. Ao mesmo tempo, também se expandem os problemas sociais e políticos, culminando com os escândalos da Cambridge Analytica e as denúncias de Edward Snowden. Na Europa, começavam a avançar os primeiros projetos regulatórios. Já a China, desde os primórdios, havia fechado suas fronteiras à internet da ICANN (ou estadunidense), com ela mantendo apenas as conexões estritamente necessárias: três portas para o mundo inseridas numa muralha digital soberana.

No Brasil, sucessivos problemas de invasão da privacidade alheia ou agressões a honras pessoais, sobretudo à de políticos, provocou o Congresso a discutir os primeiros projetos de leis regulatórias nos primeiros anos da década 2010. A assim chamada “comunidade da internet”, a essa altura já expressiva em nosso país, se assusta e reage sugerindo ao governo a adoção da lei que viria a ser o Marco Civil da Internet (MCI), promulgado pela presidenta Dilma Rousseff, em abril de 2014, na esteira das revelações de Snowden que, inclusive, denunciava ter sido ela também espionada pelo governo dos Estados Unidos.  A lei, no que se refere à infraestrutura da internet, legitima o que já existia, ignorando, como a China não ignorou, as questões jurisdicionais e de soberania nacional. Afinal, vivíamos em um “mundo sem fronteiras”…

O grande problema do MCI seria o artigo 19, hoje sob julgamento constitucional no STF. Ele replica no Brasil, a estadunidense Seção 230, ignorando que, em 2014, já não se podia desconhecer fenômenos como blogs, YouTube, Orkut, Facebook… Ou seja, sobre a internet se instalara uma camada de negócios cujas maiores empresas, decididamente, não funcionavam como meros “intermediários de aplicações”. De lá para cá, pode-se afirmar que ninguém mais acessa diretamente a internet: as pessoas e empresas acessam o Facebook, o Google, o YouTube, o WhatsApp, a Amazon etc. Não raro, têm de fazê-lo não porque queiram, mas porque são literalmente obrigadas. Exemplo: empresas, inclusive bancos, que só aceitam dialogar com algum cliente se for através de contato via WhatsApp. Igual a serviços de luz elétrica, de água encanada, de telecomunicações, de saúde, educação, outros tantos, alguns desses grandes fornecedores de serviços sobre a internet tornaram-se essenciais à vida quotidiana, gostemos ou não. Porém, ao contrário, da luz elétrica, água encanada ou educação, esses serviços não foram até hoje, no Brasil e no mundo, minimamente regulados como serviços públicos. Numa completa distorção dos princípios democráticos, mesmo liberais, mas muito coerentemente com a hegemonia político-ideológica neoliberal destas últimas décadas, eles foram convenientemente protegidos de maior regulação pública, no espírito aliás da “ideologia californiana” que acalentou os Zuckerberg, Musk, Bezzos e que tais.

Alguém dirá: “temos o MCI, temos a LGPD”. Na Europa, também, aprovaram-se leis regulatórias que, porém, na essência, tão somente reconhecem e se rendem a uma situação de fato. E mesmo assim, as corporações resistem. O acesso e uso de um serviço como o WhatsApp, no Brasil, não pode, a essa altura, estar sujeito à aceitação compulsória de “termos de uso” unilaterais que contemplam, apenas, o interesse comercial da Meta, proprietária da plataforma. Um serviço como o YouTube não pode chegar às residências já pré instalado nos aparelhos terminais de televisão ou nos celulares, sem estar submetido a regras de outorga pública às quais se submetem as emissoras de rádio e televisão tradicionais. A “liberdade de expressão” não pode continuar sujeita à “moderação” ou falta de, conforme entendida pela cabeça de algum oligarca estadunidense.

Desprivatizar a internet. A epígrafe deste artigo reproduz um parágrafo do meu livro A lógica do capitalinformação, publicado em 1996 quando quase ainda não se falava de internet. Logo, sinto-me muito a vontade para escrever estas linhas. Se, ao invés de “norma 4”, tivéssemos, no Brasil e no mundo, discutido a regulação pública dessa àquela época nascente tecnologia social, a história poderia ter sido muito diferente – e bem menos problemática. Voltando a lembrar Brecht, a internet não deixaria de ser interativa e participativa mas, institucionalmente, ainda dependeria de outorgas públicas, respeitaria as soberanias nacionais e os pactos multilaterais que as regulam, e organizar-se-ia num sistema que contaria com a devida “moderação”, melhor dizendo, edição, de pessoas socialmente responsáveis.

É possível que muita gente ainda não esteja preparada para essa conversa mas a clara ameaça – não há outro termo! – que o momento presente suscita para o nosso País, obriga-nos a começar a avançar o debate regulatório para além da pauta dos “direitos”: é de soberania que estamos falando. Sem esta, não há “direitos”. Considerando a realidade concreta, que sempre precisa ser o ponto de partida de qualquer proposta objetiva, alguns tópicos podem ser considerados:

i. iniciar, com base nas estruturas já existentes, a exemplo de Telebrás, RNP, NIC.Br e outras, a construção de uma infraestrutura de internet pública, sobre a qual se apoiarão todos os serviços do Estado (federal, estaduais, municipais, e os Três Poderes da República), hoje absurdamente entregues às “nuvens” da Alphabet, da Microsoft, da Amazon, ou satélites do Musk; e a partir da qual também se poderá fomentar a expansão de serviços comerciais realmente demandados pela sociedade brasileira;

ii. reconhecer, com base em resolução da ONU de 3 de junho de 2011 segundo a qual o acesso à internet é um “direito humano”; e da PEC 47/2011, em tramitação no Congresso Nacional, de autoria da Senadora e atual ministra do Planejamento Simone Tebet, estabelecendo que compete “ao poder público promover políticas que visem ampliar o acesso à internet em todo território nacional”, que a internet é um serviço de comunicação a distância, vulgarmente denominado “telecomunicações”, cujo portanto pode e deve ser incluído entre as competências da União nos termos do artigo 21, XI e XIIa, a ser explorado “diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão”;

iii. definir as grandes plataformas sociodigitais como uma camada de negócios sobre a internet e, não, conforme a confusão corrente, como “provedores de aplicações”, logo a elas não cabendo aplicar o polêmico artigo 19 do MCI mas, sim, regulá-las como já são regulados muitos outros ramos empresariais de amplo impacto na nossa vida econômica e social, a exemplo do financeiro (Banco Central), farmacêutico (Anvisa), elétrico (Aneel), de saúde privada (ANS) etc., etc. Nem um remédio, por exemplo, chega nas farmácias e, daí, nas nossas casas, sem a permissão da Anvisa. Mas o Instagram ou YouTube, com seus deletérios “influenciadores”, chegam livremente aos celulares dos nossos jovens e crianças sem pedir licença a ninguém. Nem aos pais…

O projeto político, pois, deve ter por objetivo restaurar a internet e todo o seu macro ambiente como um serviço efetivamente público. Desprivatizar a internet. Tal como chegou a ser em seus anos de recém nascida.

Notas

  1. Bertold Brecht, Teoria do Rádio, tradução de Regina Carvalho e Valci Zuculoto, acessado em 23/01/2025. ↩︎
  2. Christian M. Dippon, “Economic Value of Internet Intermediaries and the Role of Liability Protections”, acesso em 24/11/2024. ↩︎
  3. Tim Bradshaw e Yassemin Craggs Mersinoglu, “Meta encerra programa de checagem de fatos, à espera de Trump na Casa Branca”, Valor, 8/01/2025, pg. B4. ↩︎
  4. Sobre a atuação pioneira da estatal Embratel na primeira metade da década 1980, no desenvolvimento da comunicação digital no Brasil, ver Marcia Dementchur e Percival Henriques, Pássaros voam em bando: a história da internet do sec. XVIII ao sec. XXI, João Pessoa: ANID, 2019. ↩︎


O valor da informação: de como o capital se apropria do trabalho social na era do espetáculo e da internet, de Marcos Dantas, Denise Moura, Gabriela Raulino e Larissa Ormay
Com a ótica da teoria marxiana do valor-trabalho, revela como a informação se tornou mercadoria fundamental nas relações de produção e consumo. Explora os aspectos da propriedade intelectual, trabalho não remunerado em plataformas digitais e a produção de valor nos campeonatos de futebol.

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Marcos Dantas é professor titular (aposentado) da UFRJ, integra o Conselho de Administração do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.Br) e integrou por nove anos (três mandatos) o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br). É autor de A lógica do capital-informação (Ed. Contraponto, 1996; 2ª ed. 2002) e (com D. Moura, G. Raulino e L. Ormay) de O valor da informação (Boitempo, 2022).




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