Como um perfil no X sobre investimentos criado por um angolano surpreendeu o mercado financeiro de São Paulo
Tania Menai
Era junho de 2022 quando Cláudio Pascoal da Silva, então com 27 anos e vestindo terno e gravata, entrou no JK Iguatemi, shopping center paulistano por onde circula a nata do PIB brasileiro. Ele acabara de sair de uma entrevista de emprego em um banco, e escolheu o restaurante Varanda Grill para almoçar. A garçonete, então, aproximou-se de sua mesa e o abordou em inglês. “Também falo português”, respondeu ele à atendente.
Com 2 metros de altura, o angolano está acostumado com esse tipo de reação. “Os brasileiros pensam que sou jogador de basquete, já chegam falando em inglês. Não estão habituados a ver um negro circular nas rodas do mercado financeiro. Eu vi pouquíssimos. O pessoal se assusta”, conta ele à piauí por chamada de vídeo de sua casa, em Luanda.
Silva também surpreendeu alguns executivos da Faria Lima quando revelou ser o autor do perfil Snowballer (@snowballer8), que tem mais de 11 mil seguidores no X (antigo Twitter) e foi criado para dar pitacos sobre o mercado de ações. É pequeno, mas influente. Entre os seus seguidores estão Nelson Barbosa, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento de Dilma e atual diretor de Planejamento e Relações Institucionais do BNDES, e Pedro Mota, gestor de portfólios do Nu Asset, fundo de investimentos do Nubank.
Silva mantém ainda a newsletter Curiosidades de um Snowballer, publicada na plataforma Substack e enviada por e-mail aos cerca de 4 mil assinantes três vezes na semana. O material é gratuito, com versão mais robusta para assinantes, que pagam 29 reais mensais, com conteúdos adicionais e acesso ao arquivo de publicações.
Na newsletter, ele discorre sobre investimentos e empresas, dissecando assuntos como Stablecoins (uma categoia de criptomoedas de baixa volatilidade) e o value investing (a forma de buscar títulos em baixa ou fora do radar, mas que podem despontar no futuro breve). Além disso, gosta de escrever textos apresentando perfis de magnatas, como o norte-americano Nelson Rockefeller e os investidores brasileiros Victor Lazarte, ex-CEO da empresa de jogos Wildlife Studios, e Ronaldo Cezar Coelho, acionista da Vibra Energia (ex-BR Distribuidora). Recentemente, abordou a trajetória de Todd Boehly, um norte-americano que se juntou a um grupo de bilionários para comprar o Chelsea, time britânico de futebol que pertencia ao oligarca russo Roman Abramovich, por 5,4 bilhões de dólares.
O nome Snowballer é inspirado no livro The Snowball: Warren Buffett and the Business of Life (A bola de neve: Warren Buffett e o negócio da vida), uma biografia de quase mil páginas sobre a trajetória de Warren Buffett, hoje com 94 anos e fortuna estimada em 146 bilhões de dólares. “Sou fissurado pela história. Para mim, a Berkshire Hathaway [conglomerado multinacional liderado por Buffett desde 1965] é a melhor empresa do mundo.”
Tanto no X quanto na newsletter, Silva optou por não usar sua foto. Ali figura uma ilustração do rosto de Buffett. “Sou tímido”, justifica. Ele acredita que seus seguidores são influenciados por sua filosofia de investir sem afobação ou desespero. “As decisões de longo prazo darão maior retorno do que tentar ser um gênio e adivinhar ‘o que está legal para comprar agora’.”
O perfil deslanchou na rede social entre 2020 e 2021, durante a pandemia, época do boom das contas “FinTwit” – uma junção entre Fin, como abreviatura de financeiro, e Twitter. São usuários que utilizavam a rede social para palpitar sobre o mercado financeiro e o valor dos papéis em um momento no qual a compra online de ações estava em alta, assim como a prática do day trade (compra e venda no mesmo dia). Outros perfis com a mesma vertente deslancharam, como o popular Faria Lima Elevator, que soma 293 mil seguidores, e o Arthurito da Faria Lima, com mais de 10 mil seguidores. Ambos mantêm a identidade em sigilo.
Silva nasceu em 1995, em Lobito, uma cidade costeira e turística com cerca de 490 mil habitantes. Ele diz pertencer a “uma geração um pouquinho privilegiada”, por não ter presenciado a violência da guerra civil angolana entre 1975 e 2002, com número estimado de 500 mil a 1,5 milhão de mortes. O pai, um militar aposentado, conseguiu um emprego como professor de física em curso técnico um ano antes de ele nascer. Sua mãe, enfermeira, morreu quando ele tinha 10 anos, no nascimento do seu irmão mais novo – ele tem ainda um irmão mais velho.
“Venho de uma família de classe média que, se comparada aos padrões internacionais, é considerada pobre”, pondera. “Angola é tão pobre que se o seu pai e a sua mãe trabalham, provavelmente eles têm um nível de vida melhor que o restante da população.”
Seu pai era apaixonado por tecnologia e tinha “um computadorzinho antigo” em casa, algo incomum entre os conhecidos da família na época em que os filhos eram crianças. Além de professor, ele também foi funcionário público da Angola Telecom, a empresa pública de telecomunicações. “Tudo ao mesmo tempo, eu quase não o via”, lembra o jovem. Foi o esforço que fez para que os filhos estudassem em uma escola particular. “Meu irmão e eu éramos da ala mais humilde da turma – ao mesmo tempo, tínhamos as melhores notas.”
Entre as mulheres da família, todas enfermeiras, a referência era a tia, Zeida Pascoal, que fez especialização em cirurgia vascular na Universidade de São Paulo. “Ela sempre me apoiou e foi por causa dela que nasceu meu interesse pelo Brasil”, conta Silva, que anos depois visitaria o país após os relatos da tia.
Entre 2014 e 2015, no hiato do ensino médio e da faculdade, Silva fez uma pausa para estudar inglês na Namíbia. De lá, cursou economia por um ano na Midrand Graduate Institute, na África do Sul, país que considerou “muito mais desenvolvido”. Depois, retornou a Angola para cursar economia no Instituto Superior Politécnico Jean Piaget de Benguela. A formação era paga, mas ele obteve ajuda de custo por causa das boas notas – a mensalidade era complementada pela avó. Enquanto isso, a tia Zeida, que naquele período estudava em São Paulo, enviava pelo correio os livros que ele pedia: recebeu Sonho Grande, de Cristiane Correa sobre os sócios do 3G Capital, Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira, Marcel Telles, e Fora da Curva, de Florian Bartunek, Pierre Moreau e Giuliana Napolitano, acerca das experiências de investidores brasileiros. “Meu pai se preocupava muito comigo. Dizia que os outros garotos estavam passeando e namorando, e eu voltava da faculdade para ficar trancado no quarto lendo. Ele achava que eu estava deprimido, mas eu explicava que era curioso e queria aprender. Mas dou razão a ele: eu deveria ter curtido mais os anos escolares.”
Silva se formou em economia no fim de 2019. Foi nessa época, por volta dos 23 anos, que despertou para o então Twitter. Até então, usava outras plataformas, como Reddit e Instagram. Mas foi na rede social do finado passarinho azul que passou a compartilhar suas teses de investimento. Um ano depois, esbarrou, no próprio X, com uma vaga anunciada pelo gestor Pedro Cerize, sócio-fundador da Skopos Investimentos. “Fiz a inscrição e tuitei: ‘pô, vamos rezar aqui, pessoal’”.
A prece não passou despercebida por outro gestor, Davi Khattar, fundador da Atlas One Investimentos, uma gestora de fundos de investimentos a longo prazo sediada em São Paulo. Khattar, que seguia o Snowballer, enviou uma mensagem avisando que tinha uma vaga em seu time e que gostaria de conhecê-lo. “Eu seguia o Snowballer, mas não sabia que ele era angolano. Aliás, não sabia nada sobre ele”, afirmou Khattar à piauí. “Quando nos reunimos por Zoom, tive uma surpresa”, continuou o gestor. “Ali estava um cara super curioso e muito tímido. É estudioso, autodidata ao extremo, com muita sede por conhecimento e por criar relacionamentos, mesmo com toda a timidez. Ele tem uma visão clara de aonde quer chegar.”
Contratado, Silva escrevia o conteúdo sobre finanças nas redes sociais da empresa, remotamente, num fuso quatro horas à frente do Brasil. Davi relembra uma passagem curiosa na relação com o antigo subordinado. “O Cláudio [Silva] gosta muito de ler. Então, comprei uma caixa com trinta livros para ele. Como era inviável enviá-la por correio para a Angola, guardei debaixo da minha mesa até ele visitar o Brasil, e dei pessoalmente.”
O conteúdo produzido por Snowballer nas redes sociais também seduziu Leonardo Otero e João Vitor Valladares, os fundadores da gestora carioca Arbor Capital, também focada no retorno de investimentos a longo prazo. Otero, então, chamou o jovem para uma conversa. “Ao vê-lo no Zoom, tive a mesma surpresa de quem o conhece pela primeira vez: ele não era da Faria Lima. Era de Angola”, disse à piauí.
O gestor ofereceu a Silva uma posição de analista de ações internacionais focadas em ambiente digital. Semanalmente, o angolano fazia resumos sobre empresas estrangeiras com bons desempenhos econômicos, além de resumir longos documentos em inglês.
“Identifiquei-me com ele por sermos outsiders. No nosso caso, jovens empreendendo e gerenciando recursos, em um mercado que prefere homens de cabelos brancos”, explica Otero. “De forma alguma a minha vida se compara à dificuldade que o Cláudio [Silva] enfrenta. Sou branco, o que torna tudo muito mais fácil. Então quis muito apoiar um cara com uma história tão bacana.”
Em 2021, aos 25 anos e vivendo em Luanda, Silva passava boa parte do dia trabalhando remotamente de casa para Atlas One e Arbor Capital. Entre as duas funções, ainda arrumou tempo para fazer um MBA na PUC-Rio, também à distância, sobre Gestão de Investimentos. O curso com previsão de dois anos foi concluído em apenas um por causa da pandemia.
Mas, paradoxalmente ao avanço nos estudos, o angolano teve seus contratos com a Atlas One e a Arbor encerrados. A justificativa de ambas foi a mesma: as incertezas do pós-pandemia e o encolhimento no quadro de funcionários. Após concluir o MBA, em meados de 2022, Silva voou para o Brasil para buscar seu diploma. No Rio, visitou a Arbor Capital, no Leblon, e depois conheceu Gilvan Bueno, ex-sócio da Órama Investimentos e comentarista econômico da CNN Brasil. “Ele, que é um dos únicos profissionais negros bem-sucedidos nesse setor, seguia o Snowballer, mas não sabia que o perfil era de um rapaz africano.”
De lá, Silva passou em São Paulo, na Atlas One, para conhecer Davi Khattar pessoalmente e resgatar a caixa de livros que o antigo chefe havia guardado para ele – entre eles, A Jornada de Um Banqueiro, sobre a vida de Edmond J. Safra. Aproveitou para encontrar Lucas Abreu, investidor de venture capital com 15 mil seguidores no LinkedIn e fundador do Sunday Drops, uma plataforma focada em tecnologia que produz um podcast e uma newsletter dominical com mais de 9 mil assinantes. “O Snow é um intelectual. O mais incrível é que a grande maioria de seus leitores não sabe quem ele é”, disse Lucas à piauí. “Durante o auge da FinTwit , eu tinha poucos seguidores, e ele compartilhava meu conteúdo para os milhares de seguidores dele, sem me conhecer ou pedir nada em troca.”
Durante algumas semanas, Silva procurou emprego em São Paulo. Diz ter feito entrevistas no J.P. Morgan, BNP Paribas e Goldman Sachs, todas sem sucesso. “Coleciono e-mails dizendo ‘infelizmente, não vamos avançar com o processo,’” lamenta. Em paralelo, teve dificuldades para conseguir um visto de trabalho no Brasil. Foi nessa ocasião que, ao deixar uma das entrevistas, ele surpreendeu a garçonete ao falar português no restaurante dentro do JK Iguatemi. Ele retornou para Angola no fim de 2022.
Em abril de 2023, ele voltou ao Brasil para estudar marketing na ESPM, curso que não concluiu. No mesmo período, criou sua newsletter. Conta ter recebido propostas de venda. “Levei muito tempo para criar o formato do conteúdo e o personagem Snowballer, e não queria entregar esse produto tão facilmente.”
Silva retornou para Luanda em maio do ano passado. Ele continua produzindo conteúdos para seu perfil no X e para a newsletter, além de trabalhar como consultor financeiro para empreendimentos locais. Quem se interessar, no entanto, ainda vai encontrar a foto de Buffet ilustrando os perfis. Disso ele não abre mão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12